Sutileza escrita por Meduse


Capítulo 1
Único


Notas iniciais do capítulo

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S u t i l e z a



— Por .kkaixeta.

O molho de chaves cintilava sob a luz pálida do abajur improvisado que possuíamos ao lado da porta. Minhas têmporas vibravam, protestando por Tylenol, analgésicos ou mais bebida. A dor que costumo sentir quase todos os dias depois que chego do trabalho é o castigo por ter me aventurado em um caminho tão... Tão... Sujo. Eu não tive escolha. Estava no limiar dos meus dezessete anos quando os meus pais decidiram me abandonar no mundo com dívidas que eram incapazes de pagar e um irmão doente. Mesmo assim, sinto vergonha por ser dessa forma, tão... Miserável.

A fechadura finalmente cedeu. Um suspiro de alívio escapou de meus lábios enquanto forçava as vistas na penumbra do apartamento. Reconheci o vulto de moletom e All Star encolhido no chão antes mesmo de ver o violão em seu colo.

— Shhh. — Disse, pegando-me desprevenida e fazendo a cabeça latejar loucamente.

Os cabelos de Daniel cobriam as feições quase que por inteiro; eram escuros, lisos e estranhamente repicados. Combinavam com os olhos, dotados de um magnetismo que eu invejava secretamente há quase duas décadas. O indicador pressionado sob os lábios dava-lhe um ar psicótico, como se houvesse cometido um assassinato e só nós soubéssemos — ou então eu houvesse o surpreendido com as roupas ensopadas de sangue enquanto ele tentava eliminar os vestígios. Hesitei por um breve momento, encarando aquelas duas esferas azuis tão envolventes quanto o canto de sereias.

— Dan...? — Perguntei.

Tive dificuldades em encontrar o interruptor. O álcool já havia se dissipado quase que por inteiro de minha corrente sanguínea, mas ainda me sentia meio estúpida, fora de órbita. Implorei mentalmente para que ele não surtasse ou fizesse qualquer coisa do tipo. Não seria capaz de controlá-lo nesse estado. Pelo menos, não estava com cabeça para fazê-lo.

— Di. — Di era um apelido que ele deu para Deméter, a deusa da agricultura. Daniel, apesar do tratamento intensivo com a especialista, tinha incluído duas — e únicas — obsessões em sua rotina diária: mitologia e o seu violão usado. Infelizmente, ainda não havíamos conseguido fazer com que ele parasse de imaginar os tais deuses vigiando-o vinte e quatro horas por dia. Ontem foi Ar, um apelido para Ares, o deus da guerra.

Ao menos consegui uma velha ranzinza para tomar conta dele por hoje, e não um motoqueiro que perdeu uma luta para o tal Percy Jackson de quem ele tanto fala.

— Deméter, hein? Que bacana. — Comentei, deixando um dos saltos perto da porta. — Isso significa que teremos comida suficiente por um bom tempo.

Ele me encarou com os olhos semicerrados, tão azuis quanto o céu em um dia agradável.

— Lu...

— Eu estou bem. — Menti, revirando as gavetas do armário. Não gostava quando ele me chamava daquele jeito. Daniel sempre foi uma pessoa inocente, mas aquele era o apelido pelo qual mais me chamavam no trabalho. Lu, derivado de Luna, conhecida também como "aquela que pode te levar até à lua". Ridículo.

Soltei mais um suspiro quando encontrei uma ampola abastecida com uma dúzia de pílulas coloridas. Poderia tomar todas elas de uma vez e me livrar dessa droga de vida. Seria mais fácil, é claro. Mas eu tinha Daniel.

Peguei apenas uma e a engoli com a ajuda de um copo d'água.

— Certo, vejamos... A Miss Valentine foi comigo comprar o seu presente de Natal hoje à tarde. — Disse, remexendo na bolsa à procura do embrulho. — Não é lá grande coisa, mas se a sua pessoa quer ganhar uma guitarra no aniversário de dezoito anos, tem que ouvir música de qualidade, senhor Grigori...

Ele sorriu ao ouvir o sobrenome do anjo fictício que era seu xará. Às vezes — e com isso quero dizer quando não estava em seu próprio mundo ou dedilhando algo que compôs com o seu violão —, ele lia coisas como Percy Jackson, enciclopédias sobre criaturas místicas ou até mesmo histórias sobre anjos, principalmente quando se tratava de Daniel Grigori ou o pretensioso — e maravilhoso — Patch. Gostava de quando líamos juntos, mesmo que eu fosse obrigada a fazer hora extra ou atender clientes diferenciados para conseguir dinheiro suficiente para incluir os livros em nossos vários gastos. Afinal, era um dos únicos momentos felizes que possuía.

Não abriria mão disso também.

Entreguei o presente, agachando-me ao lado dele. Tinha o costume de se encostar à parede próxima ao balcão, em um ponto fixo, e tocar o violão até que os dedos começassem a sangrar. Normalmente, surtava quando isso acontecia, por isso evitava que o fizesse na maior parte do tempo. Eu evitava, não ele. Ele não tinha capacidade para evitar qualquer coisa que acarretasse em acidentes, como havia sido com os nossos pais.

Meu irmão era autista.

— É o CD? — Perguntou, espiando a minha expressão.

Sorri verdadeiramente pela primeira vez na noite.

— É sim.

O brilho em seus olhos era o mesmo que o dia em que o levei até à loja de instrumentos para escolher o violão. Na época, estava com os seus treze anos. Havia feito sete meses desde o acidente que tirou a vida de nossos pais e quatro desde o seu último aniversário. Estava tão distraída com a lembrança que nem percebi quando ele se cortou com o embrulho.

— Foi só um corte. — Antecipei, tentando me levantar para ajudá-lo a limpar o ferimento. Ele não deixou; suas pernas prendiam as minhas ao chão e o seu All Star fazia cócegas na minha coxa. — Daniel! — Repreendi-o, puxando o vestido que usava para baixo.

— Seu cabelo é claro.

Pisquei.

— É sim. — Concordei.

— Castanho-claro.

Assenti. Que rumo aquela conversa iria tomar?

— O meu cabelo é escuro. E os meus olhos são azuis.

— Os meus são castanhos. — Acrescentei, tentando ignorar a imagem que via todos os dias no espelho. — E os seus olhos são a coisa mais linda que eu já vi.

Piscou.

— Verdade?

— Verdade.

Silêncio. Sinceramente, não gostava de quando Daniel agia dessa forma. Às vezes, um Daniel falando pelos cotovelos era mais perigoso do que um Daniel extremamente quieto.

— Nós somos mesmo irmãos?

— Que tipo de pergunta é essa? — Perguntei de volta, um tanto magoada. Senti lágrimas se formando nos meus olhos. Ele estava me acusando de quê? O que a sua psicóloga estava dizendo sobre mim? Será que por ser uma prostituta estava correndo o risco de perder a guarda dele e ele queria saber sobre outros parentes? — É claro que somos irmãos!

Foi a vez dele tentar se levantar. Não permiti.

— Daniel. — Falei, virando o seu rosto em minha direção com uma das mãos. Ele tapou as orelhas e começou a gritar tão alto quanto os seus pulmões permitiam. Gritei de volta, mandando que ele parasse. — Daniel Delacour, pare já com isso!

Ele parou. Raramente o chamava pelo sobrenome, o que chamou sua atenção.

— Isso tem a ver com a psicóloga?

Negou várias vezes, tapando os ouvidos mais uma vez.

— Ei, olhe pra mim. Olhe pra mim! — Pedi. — Por favor, diga o que ela falou...

Daniel começou a dedilhar o violão, um gesto tipicamente nervoso. Deixei que ele tocasse até se cansar. Meus dedos e lábios tremiam; sentia que, se não dormisse nos próximos vinte minutos, acabaria desmaiando na frente dele — o que, sem dúvida, resultaria em mais uma série de berros. Chamei-o mais uma vez, esperando que ele me contasse o que havia acontecido.

— Somos irmãos.

— Eu sei que somos. — Disse. — Isso é tão ruim assim?

Ele piscou, encarando-me novamente.

— A psicóloga disse que, como você é minha irmã, você age diferente comigo.

— O quê? — Estava indignada. Ligaria para aquela maldita assim que pudesse. — É lógico que não, Dan... Eu te amo mais do que qualquer outra pessoa. Você é o meu irmão caçula. Eu vou cuidar de você até que eu não tenha mais forças. Se é por causa da sua doença, eu juro que... Que... A gente dá um jeito. Eu dobro os horários, posso até comprar mais livros pra você. Mas, por favor, eu não te trato diferente de ninguém...

As esferas azuladas em seu rosto pálido me encaravam com um ardor fora do comum. Ele se jogou em cima de mim de um modo tão inesperado que mal tive tempo de fechar os olhos. Ele não me deu um soco, não me sufocou e nem mesmo bateu com o violão em minha cabeça como era de se prever. Daniel surpreendeu-me ao me beijar com uma força que ele possuía e eu desconhecia. Depois disso, voltou a ficar quieto, encostado na parede próxima ao balcão, no mesmo ponto fixo. Violão no colo e cabelos repicados na frente do rosto. Nem parecia estar respirando direito, pra variar.

Beijei a sua testa e dei um abraço longo e caloroso antes de ir me deitar. Já não chorava; o rosto estava ruborizado. Meu irmão, sutil? Nem um pouco. Dei um meio sorriso. Virei-me em sua direção mais uma vez, e em um sussurro, ouvi ele dizer as últimas palavras de sua vida.

— Eu te amo, Lu. Feliz natal.


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura!