Páginas Esquecidas escrita por Napalm


Capítulo 2
Cersa


Notas iniciais do capítulo

Eis o primeiro capítulo!



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– Hey. – Aquela voz familiar me chamava mais uma vez. Uma voz infantil, vinda do meio do breu aonde eu me encontrava. – Venha pra casa.

Virei-me para tentar encontrar quem falava. Andei tateante pela escuridão em todas as direções, mas a voz parecia cada vez mais distante. E como eu esperava, um ponto amarelo aparecia ao longe. Corri para alcançá-lo e nas sombras, uma silhueta parecia estar se formando a cada passo que eu dava.

Até que acordei.

Já era a enésima vez que eu tinha aquele mesmo sonho. Não conseguia distinguir quem falava ou o porquê de pedir para que eu voltasse para casa. Eu estava em casa. Desde que nasci, vivo neste pacato vilarejo, situado distante de tudo numa pequena ilha, comumente chamado de Vila Cersa. Nunca saí daqui para ir muito longe. Não por não querer. Na verdade, a minha vontade era exatamente de deixar este lugar e ir para bem longe. Porém, sempre que eu falava alguma coisa do tipo, minha mãe, uma mulher com seus quarenta de nome Seline, me alertava:

– O mundo fora daqui não é seguro, Niele. Lá fora, tudo está em caos.

– Que caos? – Eu perguntava com indignação. Mas a conversa não continuava. Não sei se era por medo ou por preguiça, mas minha mãe não gostava de falar sobre “o mundo lá fora”.

Mas se não fosse minha mãe para me contar sobre os mistérios do mundo exterior, havia dezenas de pessoas querendo falar sobre ele, cada qual com sua versão.

Quando eu era menor, adorava ouvir o que os mais velhos contavam para gente sobre os continentes além do Grande Oceano do Leste. Não eram histórias fantásticas como os contos de fadas que os pais nos contavam, mas eram bem mais interessantes – e assombrosas.

“Além dos mares e das montanhas, existe a Grande Cidade. Um lugar extremamente perturbado e sem esperanças. Onde não há árvores, não há água. Não há dia. Somente noites. A população vive trancafiada em suas casas, com medo dos Guardas da Imperatriz. Tratam a todos com violência e fazem questão de lembrar que você não é uma pessoa livre e nunca será.”

“As crianças são proibidas de deixarem suas casas e recebem uma lavagem cerebral para que se tornem frias e cruéis quando adultas.”

“Durante o inverno, monstros alados surgem pela cidade e devoram a carne dos cidadãos que estiverem nas ruas.”

Mas, à medida que os anos iam passando, essas histórias iam perdendo a força. Nenhuma pessoa que residia em Cersa aparentemente jamais saíra do vilarejo, se não para ir a outros vilarejos na redondeza. Pessoas de fora não apareciam por aqui. E nunca sequer alguém ouviu falar algo que comprovasse a existência da Grande Cidade. Embora houvesse uma possível evidência.

Havia, num beco esquecido de Cersa, que antes teria sido uma praça de recreação, uma espécie de tubo metálico, da grossura de uma casa, implantado no chão. Diziam que homens da Grande Cidade estiveram aqui e implantaram aquela coisa ali. Ninguém sabia exatamente para quê, mas como eram todos medrosos, não se aproximavam e pouco se questionavam. No tubo, havia uma inscrição: dois “cês”, um em cima do outro, pintados com um azul-celeste estonteante, embora desbotado pelo tempo.

– Eu procurei em todos os livros por este símbolo. – Reeve me dizia certa vez, enquanto retirava uma mecha de seu cabelo esbranquiçado de cima de seus óculos quadrados. – E a única coisa que achei foi: queima de arquivo.

– Este símbolo significa “queima de arquivo”? – Perguntei, depois me senti idiota.

Reeve era um dos meus melhores amigos daqui de Cersa. Adorava passar o dia na biblioteca. Não devia haver um livro que ele ainda não tivesse lido.

– Não. – Ele riu. – O que eu quis dizer é que não há nada na biblioteca que fale sobre este símbolo. Ou sobre a Grande Cidade. Se esses livros existiam, foram destruídos ou escondidos do povo da vila.

E se houvesse alguma conexão entre aquele símbolo e a Grande Cidade, não seria com ajuda da biblioteca que descobriríamos.

E hoje, deveria ser um daqueles dias que Reeve não veria a luz do sol. Fui até a sua casa procurar por ele e não obtive resposta quando bati à porta ou gritei pelas janelas. Imaginei que estivesse na biblioteca.

Estávamos em período de férias escolar. Normalmente, passávamos os dias nós três: eu, Reeve e Jess. Esta última era uma garota muito excêntrica, que não era levada a sério pelas outras meninas da escola e ficava sempre sozinha num canto, embora jamais com um semblante triste.

– Oi, como você se chama? – Perguntei certa vez, quando a vi sentada num banco isolada. Seus cabelos pretos estavam sempre presos em ambos os lados da cabeça, o que lhe dava um ar mais infantil do que ela já tinha naturalmente.

– Oi! – Ela havia respondido, com um sorriso de orelha a orelha. – Meu nome é Jessica! Mas meus amigos me chamam de Jess.

– Ok, Jess. – Eu falei, perguntando a mim mesma se era eu a primeira a chamá-la daquele jeito. – Este é Reeve.

– Oi Reeve!

Reeve acenou alegre ao meu lado para a garota. Ao contrário dela, ele era visto como um jovem agradável, que as pessoas gostavam da companhia, embora ele passasse a maior parte do seu tempo fugindo delas. Certa vez, eu me perguntara como eu tinha conhecido Reeve e não consegui me lembrar. Até onde minha memória chegava, ele estivera sempre ali do meu lado. Havíamos crescidos juntos e ele sempre estivera lá. Sempre com seus óculos sobre o nariz, com sua mania de balançar seus cabelos esbranquiçados, com sua inteligência fora do comum.

– Oi, Jess. Quer vir com a gente numa aventura? – Reeve disse, sorridente.

Ela levantou e subiu no banco onde estava, dando pulinhos de emoção.

– Sim! Eu quero! Adoro aventuras! I-hu!

Desde então, nós três utilizávamos a maior parte do tempo, do qual deveríamos estar em aula, explorando cada canto da Vila Cersa, escalando os telhados e tomando sorvete que roubávamos do Sr. Georgio. Jess era ótima para correr e pular pelas telhas e, mesmo quando sentávamos para tomar o sorvete, ela continuava de pé, rodando como uma bailarina, nunca realmente parando. Ela certamente era a única pessoa na Vila Cersa que dançaria sobre o “assombroso” tubo metálico. As pessoas não gostavam de se aproximar dele, morriam de medo até de olhar. O que acabou tornando o local nossa base. Ficávamos ali durante a tarde e nada nos incomodava. Nada havia nos incomodado.

Pelo menos até hoje.

Sem sinal de Jess ou de Reeve, marchei sozinha no fim da tarde para nossa “base” e me deparei com uma pessoa sentada sobre o tubo, me olhando. Uma pessoa que eu nunca tinha visto na Vila, eu podia jurar, embora sua face me fosse estranhamente familiar.

O garoto devia ter a minha a idade, dezesseis anos, ou algo em torno. Ele se vestia com roupas pretas, bem justas ao corpo. Seu cabelo da mesma cor lhe alcançava os ombros. Ele balançava as pernas no ar e quando eu me aproximei a certa distância, ele anunciou:

– Você está bem diferente!

Ele sorria e me fitava os olhos. Seu sorriso me perturbava e eu não conseguia dizer o porquê.

– Eu te conheço? – Perguntei, sem me preocupar em não parecer grossa.

– Não, mas eu te conheço.

Ele desceu do lugar, pousando com os pés firmes no chão e se aproximou de mim. Ele agora parecia bem mais alto e esguio.

– Meu nome é Emmet. É um prazer. – Ele estendeu a mão. Percebi em seu braço pálido algumas marcas estranhas. Seriam marcas de queimadura, talvez?

– Niele. – Respondi, aceitando o cumprimento. – Você é algum tipo de admirador? Porque, sério, não estou interessada.

Ele riu.

– Eu sou de uma vila próxima daqui. Vila Gaela. Eu estou numa viagem pela ilha e pelas ilhas próximas para desvendar um mistério.

– Interessante. – Respondi, sem demonstrar nenhum real interesse.

Ele andou até o tubo e passou a mão sobre o símbolo de dois cês.

– Não tinha nada de muito diferente em cada vila que eu passei. As pessoas diziam as mesmas coisas, as lojas vendiam os mesmos produtos. As crianças pareciam as mesmas. – Ele dizia, sem tirar os olhos do símbolo. – Tudo parecia o mesmo. Uma chatice tremenda.

Ele deu uma gargalhada.

– Contudo, – Ele continuou, – havia uma coisa que se repetia, que não era pra ser repetida. Lá estava, majestoso em todas as vilas que passei, sem exceção: o símbolo dos dois cês, juntamente a essa coisa metálica aqui. – Ele disse, batendo a mão no tubo, fazendo ressoar um barulho metálico.

Quando assimilei o que ele disse, percebi que se tratava, realmente, de uma informação que me interessava. Mas havia algo no comportamento daquele garoto que não me descia. Havia em mim uma antipatia forte por ele, o que não era natural de minha parte para com os desconhecidos. Talvez fosse porque não havia muitos desconhecidos na Vila.

– Você disse que me conhecia. – Voltei à questão.

– Apenas de vista. – Ele disse, se aproximando e parando a centímetros em minha frente, como se quisesse me examinar melhor – O cabelo tingido de azul ficou espetacular.

– Você não me conhece. – Eu disse, agora certa daquilo. – Meu cabelo é naturalmente desta cor. Desde que nasci.

– É mesmo? – Ele perguntou, irritante. Olhou nos meus olhos por um momento, parecendo procurar por alguma coisa familiar. Certamente ele teria me confundido com alguém e só agora percebera isso. – Pode ser.

Ele passou por mim, me tomando pela mão e me virando para o lado de onde eu havia vindo:

– Estou indo embora, minha querida. Foi um prazer.

Ele se virou então e se distanciou com passos calmos.

Observei o garoto indo embora. Comecei a pensar que realmente já o tinha visto antes.

Não, isso é apenas neura. Você ficou com isso na cabeça porque ele estava insistindo que te conhecia, disse a mim mesma.

Eu não podia conhecer aquele garoto. O modo como se vestia, o sotaque em sua voz... era tudo completamente diferente de qualquer pessoa que eu havia conhecido.

Virei-me para admirar aquele grande tubo metálico. Senti-me tomada por uma assombrosidade que não sentia desde que eu era uma criança e ouvia os mais velhos contarem histórias sinistras sobre a Grande Cidade.

Aproximei-me para ver o símbolo mais uma vez, o mais perto possível, esperando ver alguma coisa que em todos estes anos eu teria deixado passar despercebida. Mas não havia nada além da tinta azul-celeste desbotada sobre o metal frio, como sempre fora.

O que raios você esconde?”


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Notas finais do capítulo

Curtiram? Até o próximo!



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