Impensável escrita por TheBlackWings


Capítulo 4
Fourth Chapter


Notas iniciais do capítulo

Este é o último capítulo. Mas é um fim?

O que é um fim?



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Amanheceu e ainda chovia forte, mas isso não importava mais. O importante é que ele havia parado de tremer. Que sua boca tinha perdido o tom azulado e não sangrava mais. Fênix pode respirar novamente. Foi uma longa noite.

Começou quando o encontrou naquele beco. Pelos deuses, sentiu seu coração parar de bater enquanto o levava nas costas para o hotel. Nunca sentiu tanto desespero. Teve que deitá-lo no chão e pressionar seu peito. Uma médica passou no momento exato. Teve muita sorte.

Ikki nunca sentiu tanto medo como naquela maldita noite. No quarto de hotel tirou as roupas molhadas daquele corpo fraco – apenas uma camiseta fina sobre o tronco, com todo o frio que fazia! – e o enrolou em cobertores. Era uma imagem que não queria ter visto. Ele ali deitado, os dentes tilintando de frio, mas a testa queimando em febre, soluçando, buscando ar, delirando. Só o deixou sozinho no tempo que levou buscando remédios.

Agora sentado na beira da cama ouvindo a respiração do irmão se acalmar e finalmente adormecer, se permitiu relaxar os músculos.

Voltou a pensar naquele momento tão estranho. Reviu em sua mente quando descrevia as feições de Shun para o senhor no bar. Então ouviu a estranha narrativa. O estrangeiro entrou no estabelecimento e bebeu apenas um copo de qualquer coisa, tinha uma expressão que o senhor não soube descrever, um sorriso... Engoliu a bebida e se dirigiu ao banheiro por onde permaneceu, seguindo o homem, quase a totalidade que passou na taverna.

Quando saiu ninguém soube dizer, pois foi muito rápido. Pelo que sabia, ele saiu cambaleando com a face irreconhecível, e voou porta a fora seguindo o caminho que descreveu ao cavaleiro pouco tempo depois. Mas o que teria ocorrido mesmo?

Pensaria isso depois, o importante é que tinha seu irmão ao seu lado, de verdade. Tudo aquilo que ouviu sua própria voz dizer tempos atrás seria passado. Todo seu esforço nos últimos tempos foi recompensado, ele estava ali agora e era Shun, não Hades. Era seu irmão.

Ikki abriu os olhos horas depois, mas como chovia parecia que tinha sido apenas alguns segundos. Havia deitado na cama ao lado na suíte onde estavam. Estava ansioso para que acordasse. Queria olhar nos seus olhos e não ver aquela frieza. Queria ouvir a sua voz, sem nenhum tom de ironia. Sentou-se novamente ao seu lado. Agora estava dormindo, respirando devagar. Seus músculos tinham espasmos de vez em quando e podia ver seus olhos se moverem mesmo fechados.

Agora com mais luz voltou a analisar sua face. Seu rosto estava muito fino, tinha cicatrizes e cortes nos lábios e um grande e recente olho roxo. Do outro lado do rosto a marca vermelha sobre a sobrancelha agora era só uma grande cicatriz. As olheiras estavam maiores do que se lembrava. Perguntou-se há quanto tempo não comia e dormia direito. Aquele parasita maldito.

Durante o dia ele tentou se virar algumas vezes, teve pesadelos, ou delírios, a febre não diminuiu, e não acordou. Tinha crises de tosse direto. A noite chegou novamente e a chuva diminuiu. Ikki viu as luzes da cidade se acender e o movimento nas ruas morrer aos poucos, mas nada de ver os olhos do irmão se abrir. Permaneceu sentado ao seu lado por muito tempo, quando viu suas pálpebras se apertarem e sua face se mover.

Finalmente, pensou Ikki. Havia passado o dia imaginando este momento. Agora Shun iria abrir os olhos e quando encontrasse os dele começaria a chorar – ele sempre chorava – abrindo um sorriso. Levaria suas mãos ao seu rosto e diria que estava tudo bem agora. No fim seria mais forte do que ele.

Então ele abriu os olhos devagar. As pálpebras pareciam pesadas demais. As íris esverdeadas fitavam o nada, se movendo quase imperceptivelmente. Quando encontraram a mão de Ikki sobre a sua cruzada em seu peito, seu rosto se contorceu como se sentisse uma dor terrível, quase voltou a fechar os olhos.

– Shun... Sou eu. – Ikki tentou evitar que seus olhos fechassem novamente. Eles permaneceram abertos, mas olhavam o lado oposto. – Olhe para mim, esta tudo acabado. Eu vou cuidar de você, vamos voltar para o santuário. Ele não vai mais se aproximar de você.

Apertou os olhos com força, teve outro ataque de tosse violento. Depois de quase um minuto de agonia, um filete de sangue escorria de sua boca. Continuava sem encarar o irmão.

– Você... não sabe... nada. – Balbuciou quase inaudível.

Foi só o que ouviu de sua boca durante toda a noite. O viu fitar o escuro, seus olhos se moverem algumas vezes sem rumo, sem dizer nada, mal ouvia sua respiração. Ikki passou a noite sentado no chão ao lado de sua cama. Não se lembra de ter pegado no sono, foram horas iguais. Perguntou se sentia dor, se tinha frio. Sem resposta. O que se passava em sua cabeça, será que... será que aquele maldito estava em sua cabeça? Queria poder fazer algo.

Não podia ficar ali parado. Não podia o deixar a mercê de seja lá o que estivesse havendo. Tinha que haver algo que pudesse fazer. Sentiu o ódio pela sua própria impotência voltar a sua pele. Era um inútil.

Na manhã seguinte abriu sol, a chuva cessou. A luz quente entrou pela janela banhando o quarto quando Fênix sentou-se novamente no canto ao lado de Shun. Este dormia, agora calmo, sem precipitações embora a respiração fosse difícil. Havia tossido sangue outra vez, Ikki limpou sua boca.

Ele se moveu, acordou com o toque do irmão, mas não abriu os olhos. O mais velho pegou o braço direito do irmão que estava caído na cama para ver melhor: Havia uma grande marca de queimadura por todo o antebraço. Aquele deus maldito.

– Onde foi isto? – Perguntou, sem saber o por que. Apenas queria interagir com Shun, mesmo que ele não respondesse. Sabia que estava ali.

– Não lembro. – A voz do Shun soou baixo segundos depois da pergunta, surpreendendo o cavaleiro. Agora os olhos pesados fitavam o próprio braço entre as mãos de Ikki, este não conseguiu evitar uma expressão aliviada.

– Ainda dói?

Dessa vez não ouve resposta. Mas o irmão mais velho continuou tentando. Não se mexeu enquanto fazia curativos em outros ferimentos. Não respondeu quando questionado se estava com fome. Negou com um movimento de cabeça quando Ikki perguntou se queria comer. Negou novamente, arrastou a mão à garganta quando Ikki insistiu que traria comida mesmo assim.

Ikki observou as manchas rochas no pescoço do irmão e perguntou se era sua culpa.

– Não. Esta... queimado... – Ele não queria falar, era visível seu constrangimento. Ikki cerrou os dentes, pensando em tudo que aquele demônio podia ter feito ao irmão.

O "impensável", como ele havia dito.

– Eu não queria que me visse assim. – Sua voz parecia doer. As palavras saíram sem motivo, sem levantar os olhos.

Ikki o havia convencido a se sentar na cama e se vestir, estava o ajudando a colocar uma camiseta sobre o tórax sem cor, onde viu muitos hematomas e cicatrizes antigas, a de um corte profundo e comprido e várias marcas circulares. Já havia até imaginado a voz de Hades dizendo: "a queima roupa".

Agora não sabia o que dizer. O menor ali encolhido, envergonhado de si, mas ele o que fez?

Sacrificou-se para o bem de todos. Estava pagando pela sua maldita bondade. Que mundo detestável.

Ikki respondeu puxando o tronco do irmão para si, envolvendo-o em seus braços e encostando sua testa entre seu queixo e seu ombro. Não se lembrava de quando foi a última vez que estavam assim.

– Não fale uma besteira dessas. Eu que devo me envergonhar. Eu que não estava perto de você quando precisou de mim, por que não sabia lidar com meus próprios medos. Não, por que era um idiota egoísta. Mas isso nunca mais vai acontecer. Eu vou ficar do seu lado, vou proteger você dele. – Apertou o irmão contra si. – Nunca mais te deixarei sozinho.

O menor permaneceu parado. Ikki o sentiu apertar os olhos.

Abriu os olhos num sobressalto. Estava sentado em um canto frio de um banheiro sujo, sua cabeça doía, ouvia sons estridentes e confusos. O que era dessa vez? A voz o deixou nervoso, atordoado. Doíam suas têmporas e todo o resto.

A voz gritava. Corra! Corra!

Só sabia que tinha que correr. Se não corresse... Tinha que correr. Iria correr.

Quando levantou suas pernas não queriam se mexer, deu um passo para frente e desabou com tudo. Veio-lhe um gosto ruim na boca e ali mesmo vomitou. Apenas álcool e sangue. "O que você quer? " pensou ou falou, não sabia direito, mas a voz continuava como uma sirene estourando em sua cabeça.

Levantou novamente. Correr, para onde? A voz estridente, confusa, isso doía. Por que ali e agora?

Não pensava mais nos pés, não via o caminho, apenas borrões. Correu, bateu em uma porta que se moveu, correu, bateu em uma porta dupla e sentiu o frio da noite e a chuva no rosto. Tateou a parede e correu dobrando ao lado, seguindo a parede. Tinha que correr.

Maldito, por que gritava? Estava correndo, não? Os pés tropeçavam sozinhos, quando tossiu se apoiou na parede para não cair. Guspiu o sangue. Cambaleou, virou uma esquina, esquerda ou direita, não saberia. Luzes, vozes, dores, tudo junto. Não agüentava mais as pernas.

Chocou-se com alguma coisa e caiu no chão molhado. Além dele e dos sons, tinha mais vozes agora, estavam xingando? Não entendia.

As vozes o seguraram e arrastaram. Sentiu os braços sendo forçados para trás. Quando levou o soco no lado do rosto, a voz começou a rir.

Sabia que não precisava mais correr.

Quando Shun abriu os olhos novamente, Ikki estava caído exausto na cama ao lado. Mas havia uma mão segurando a sua.

Virou devagar o rosto na direção inversa. A luz o cegou por um segundo, mas logo se acostumou. Observou a pele branca que exalava aquela luminosidade, com mãos macias sobre a sua mão ferida. Ergueu os olhos para ver melhor.

Há quanto tempo não fitava aquele par de jóias cor de violeta. Não lembrava. Os cabelos esvoaçantes da mesma cor caiam sobre seus ombros e sobre suas vestes brancas. A luz que emitia era tão tranquila. Sua face abriu um sorriso tão lindo. Aquela pessoa lhe era familiar... Queria se lembrar de seu nome.

Seria isso um sonho? Talvez. Há tanto tempo não conseguia diferenciar o que era sonho e o que não era.

Ikki acordou acreditando ter sonhado que havia alguém mais no quarto. Mas, bem, foi apenas um sonho.

Outro dia acabou e a noite agora exibia uma grande lua cheia, a cidade estava movimentada para àquela hora da noite. Ikki estava acostumado com aquele fervor nas ruas, e agora após ficar um período de um lado a outro, se sentiu em casa novamente.

E ter seu irmão ao seu lado era o mais importante.

Estava agora voltando ao quarto de hotel. Continuava frio lá fora, um pouco mais e em vez de chover teria nevado. Entrou pela porta tirando o casaco e pendurando em qualquer lugar. Olhou em volta e procurou o irmão com os olhos.

Agora se encontrava sentado na cama. Parece que havia tentado se levantar, pois estava totalmente descoberto. As pernas cruzadas sobre a cama e o tronco arcado sobre elas, sua cabeça baixa. Em sua mão direita, apertava entre os dedos um cigarro aceso.

Por um minuto, parecia que tinha sido um pesadelo. Nunca havia se livrado dele.

Ele estava o enganando esse tempo todo...?

Então viu que se moveu ao notá-lo chegando. Agora pode ver que tremia muito. Quando foi notado parado em frente à porta do quarto foi encarado por dois grandes olhos.

Dois grandes olhos verdes, injetados de sangue, cheios de água. Desde aquela noite, foi a primeira vez que o irmão mais jovem o encarava diretamente. Sua boca se moveu também, querendo soltar algumas palavras que não saíram. Ikki se aproximou devagar, e o outro olhou para baixo novamente como um reflexo.

– desculpe... – Sussurrou com dificuldade, deixando lágrimas correrem pelo seu rosto que despencou novamente. – meu... corpo...

– Não fale nada – O cavaleiro de fênix passou o braço pelos ombros de Shun. Não queria que se culpasse ou se envergonhasse novamente.

Maldito deus do mundo dos mortos. Maldito cem vezes.

Ikki ficou acordado aquela noite. Estava frio e haviam descansado durante o dia. Shun agora estava melhor, não tremia mais e tinha dormido facilmente. Mas aquela cena ainda não havia amornado na mente do irmão mais velho.

Aquilo o lembrou do que ele aparentemente se esqueceu em poucos dias.

As vezes a realidade é tão fria que nossa mente tenta evita-la. Naquele instante que encontrou o irmão, tudo parecia ter desaparecido. Não haveria mais deus, não haveria mais aquela expressão fria e meticulosa que o perturbava. Havia simplesmente acabado. Isso era tão irreal. Como era tolo, pensou o próprio cavaleiro, em subestimar Hades.

Não podia prever o que aconteceria dali para frente. Qualquer coisa que passasse por sua cabeça parecia absurda. Sua mente o dizia para não pensar nisso agora. Mas logo não poderia mais fugir.

– Me prometa uma coisa. – A voz de Shun acordou o irmão mais velho, que quase pegava no sono na cama ao lado. Ainda era noite escura, quase não havia luz no quarto. Ele devia estar dormindo. Ikki se ergueu para prestar atenção melhor.

– Não vai mais me seguir. – Ikki ficou perplexo com o que ouviu. Sua mente formulou várias frases, sua boca articulou as palavras, mas disse apenas

– Não posso prometer isso. – Escondeu na voz a fúria que já lhe cobria. O menor não reagiu. – Já te disse que não te deixarei sozinho novamente. Mesmo que ele volte, eu irei atrás. Pois quando acontecer isto de novo eu poderei te proteger.

Ouviu a cama ranger, mas o outro continuou deitado. Não podia ver claramente seu rosto, estava tão escuro.

– você não entende... –

– Eu não me importo. – Ikki disse, sem deixar o irmão terminar. Ouviu um suspiro em resposta, seguido de um silêncio de alguns segundos.

– Ele sabia que você estava aqui. – Ikki ergueu-se mais ao ouvir aquilo. Sentiu os músculos retesarem. – Ele faz apenas o que quer. E foi tudo como ele quis que fosse.

Ikki tremeu, como podia ser aquilo? Era um plano? Não faria sentido, o que Hades ganharia com isso? Sentir todos os sentidos, observar as ações dos humanos... Nada se encaixava. Mas na mesma hora sua mente se clareou. Sim, fazia sentido. Devia ter pensado nisso antes.

Mas não poderia, pois era impensável.

– você iria a aquele lugar. – Ikki ouvia em silêncio. – e passaria naquela rua, no momento certo.

Você sentiria... – Prosseguiu. Pensou um segundo, buscou as palavras. – alivio, mas também terror, desespero. Angústia, ansiedade...

Shun listou o que Ikki sentiu desde aquela noite naquele beco, de forma precisa. A sua voz, era ele e não Hades falando, mas era assustador.

– e mais... – O jovem fez uma pausa e apenas pode se ouvir sua respiração dificil. – sentiu... esperança.

Tudo havia sido sua vontade. Havia brincado com Ikki como se fosse seu brinquedo, para seus propósitos. Não era apenas sentir os sentidos humanos que Hades queria. Era também testar os homens. Usá-los como cobaias em seus desejos mais sórdidos. Pensou em quantas vezes já não fez isso. Quantas vezes já não fez isso com seu irmão? Largá-lo numa sarjeta a própria sorte apenas para "ver o que aconteceria".

É o que ele faz. Como reage um humano a mais lacerante das dores? Como reage a ver que ama sofrer? Como sua mente responderia a loucura? Shun já passava por isso há tanto tempo. Agora Ikki também tinha sido usado como um peão em um tabuleiro.

Tudo fez sentido agora. Ir a sua cidade não foi uma coincidência, sabia que Fênix estaria lá. Fênix agora entendia o que Hades pensava enquanto sorria de forma irônica ao encará-lo. Estava se divertindo com cada sentimento que lhe passava pela face.

– Confusão, negação, culpa... – Shun narrava o que Ikki havia sentido quando o viu.

Hades tinha uma chance única de ver a expressão dele ao contar o que fez com quem mais o importava. Pode desfrutar de sua confusão e de sua culpa.

– Raiva, indignação, impotência. – Ouviu ser descrito desde encontrar o rosto ferido do irmão até ouvir sua voz dizendo aquelas verdades duras. – Resignação, submissão... hã... epifania.

Quando lhe disse que talvez não voltariam a se ver, já sabia que Ikki iria atrás dele. Sabia que não seria difícil encontrar pistas sobre seu paradeiro – ou teriam sido propositais?

Depois de tudo aquilo, se sentiu exausto.

– Ele se cansa facilmente. – Shun prosseguiu. – Sempre busca algo novo para fazer. Ele esta entediado novamente.

Ikki viu Shun virar o rosto para ele, buscando seus olhos em meio à semi-escuridão do quarto. Ikki viu o reflexo de suas orbitas que tinham agora o tom violeta do amanhecer que começava a surgir na janela. Sua face doente, cheia de tristeza.

– Eu não queria que ele usasse você.

Quando o sol estava já alto, Ikki estava deitado ao lado de Shun, envolvendo-o com um dos braços. Nenhum dos dois dormiu após aquilo. Passaram um bom tempo ali, grande parte do tempo em silêncio, mas também falaram.

O cavaleiro de fênix pediu para saber o que o irmão passava. Shun relutou, e pouco deixou escapar. Falou, com sua voz cansada, sobre o quanto sua mente estava confusa. De quando não conseguiu mais distinguir seus pesadelos da realidade. Comentou da dor que sentia pensando em coisas que fez – ele não, Hades. Ikki fazia questão de dizer. – mas não citou nenhuma, e fugia desse assunto. Falou sobre lembranças estranhas que surgiram em sua cabeça: Coisas que fez, lugares onde foi, pessoas que conheceu, mas não viviam mais a muito tempo. E outras que viu várias vezes, em épocas distintas e agora seus nomes se confundiam. Isso o lembrou que até agora o irmão não tinha o chamado pelo nome.

Falou para o irmão mais velho sobre as guerras antigas. Contou, com riqueza de detalhes, sobre os antigos cavaleiros e todo o sofrimento que passaram. Como havia sido uma guerra terrível, e que fez Fênix pensar sobre o que tinham passado no santuário e ver que tinham tido muita sorte.

Ikki não queria sair dali. Para ele parecia que se soltasse o irmão, ele seria levado novamente. Mas foi o próprio Shun que se desvencilhou de seus braços após um bom tempo, deitando-se novamente. Ele sabia que era assim que tinha que ser. A qualquer momento, o jogo mudaria denovo.

Quando já era inicio de tarde o mais velho saiu para tomar ar e pensar. Pensar era o que lhe restava fazer. Antes de sair, ouviu novamente um pedido do irmão menor que deixou descansando no quarto de hotel.

"Prometa que você não irá me seguir."

Preferiu nem responder aquele momento. Em vez disso saiu. Foram três dias juntos, se não se enganava. Três dias, tinha a impressão que foi mais do que passaram juntos desde que voltaram de seus treinamentos.

Andejou pelas ruas movimentadas da cidade ao seu redor. Era parecida com a cidade onde estava vivendo. Havia o mesmo fervor nas ruas principais, pessoas de todos os tipos. Naquele lugar, dezenas de vidas se cruzando sem se afetarem, se importando apenas consigo mesmas. Ikki pensou que agora as via diferentes de antes. Eram todos iguais.

Sentado por horas observando aquele movimento, foi isso que pensou. Todos iguais. Ignorando o que acontecia a sua volta. Focados em si mesmos. Era quase como se ao seu lado Hades estivesse fazendo um de seus discursos.

Era inicio de noite quando Ikki girou a maçaneta da porta do quarto. Entrou e a fechou atrás de si. Tentou não buscar nada com os olhos, mas teve que o fazer.

A cama onde deixou o irmão dormindo estava vazia.

A janela da pequena saleta do apartamento estava aberta, deixando o vento entrar e mover as cortinas.

Ele estava sentado nesta janela. Quando viu Ikki por trás da cortina translúcida, ergueu a mão de forma lenta, cansada, como que chamando o cavaleiro, que não se moveu.

– Irmão... – Sua voz cansada. Ikki não se moveu.

–Eu sei que é você.

A mão foi abaixada, e Hades abriu um sorriso debochado.

– Você não tem mais graça. – Falou, voltando ao tom de voz que tanto irritava Ikki.

– Você ouviu o que eu disse? – Continuou dizendo. Ikki queria ter mandado o deus calar a boca. O cavaleiro se sentou em um sofá pequeno em silêncio. No mesmo instante o inconveniente colega de quarto levantou-se de onde estava e se acomodou na mesa de centro, frente a frente com Ikki. O mais velho se incomodou com a proximidade do outro.

– Gostou do tempo que teve com seu irmãozinho? – Começou a falar novamente, provocativo. Sem resposta. Continuou insistindo.

– Ele é um humano curioso, não é cavaleiro? – Continuou, olhando em volta distraidamente. – Sabe, todos os hospedeiros eram dessa forma: puros e bondosos. Mas o jovem desta era me pareceu... Diferente.

Ele não era como eles. Ele era sim benevolente como todos os outros, mas havia algo mais. Ele amava a humanidade como jamais vi. Jamais vi um humano se importar tanto com seus semelhantes. – Saboreou as palavras em sua mente.

– É fácil para uma deusa como Athena amar a humanidade, pois ela os vê de uma forma diferente. Ela os vê... de fora, se lembra? Mas um humano que vive no meio do turbilhão que é este mundo, que sofreu e encontrou inúmeras adversidades em sua vida e mesmo assim se mantém esperançoso e confiante nesses humanos é algo que não posso compreender. – Hades o encarava, apreciando a expressão séria de Ikki, que de vez em quando movia um músculo. – Você já deve imaginar que essa singularidade para mim era no mínimo... estimulante.

Os punhos de Ikki se cerraram. Isso fez o deus dos mortos sorrir mais ainda.

– Nunca me canso disso.

Se havia uma coisa que aqueles dias com o irmão mais novo haviam aflorado em Ikki era a razão. Ele agora não o via mais nos olhos daquele demônio. Era sua face, sim era. Mas não era seu irmão. E isso era bom, pois agora ele podia encará-lo como queria, sem se retrair a cada lembrança. Pensou naquela hora que era impossível prever o que aconteceria a partir dali.

Agora a luz do crepúsculo enchia o quarto. A brisa movia os cabelos de Shun que agora estava em pé frente à janela aberta, de costas para Ikki. De olhos fechados, parecia apreciar a brisa.

– Foi divertido esses últimos tempos, cavaleiro. – Sua voz era a mesma, o mesmo tom. - Foi mesmo. Mas você sabe, eu sou muito volátil.

Ikki agora estava de pé também.

– Ele te explicou o que houve, certo? Claro que ele aprendeu algumas coisas comigo. Esta tão quieto hoje cavaleiro.

Ikki só queria mandá-lo se catar, então ficou quieto. Hades agora se virou para o cavaleiro novamente. Pela ultima vez.

– Está na hora, Ikki de fênix. Agora você já se esgotou. Foi interessante interagir com você, e este corpo precisava de alguns cuidados também. Você foi perfeito. Não preciso dizer o quanto foi fantástico vê-lo mudar desta forma. Enfim... já sabe o que fará de agora em diante?

– Vou segui-lo.

Hades riu discretamente e voltou a encará-lo.

– Estou falando sério. Acabou agora. Você não pode.

– Eu farei isso.

– Não pode.

– Mas farei.

O sorriso de Hades sumiu. O olhava com uma expressão de... estranheza. Ah, Ikki quase sorriu pensando nisso.

– Esta falando sério?

Ikki nem respondeu. O deus inclinou a cabeça levemente, parecia bastante incrédulo.

– Não vai. Eu não quero. Não vai me encontrar, vou distorcer sua realidade para que enlouqueça. Vou destruir o que procura. – Sua voz agora havia mudado, era totalmente diferente. Novamente, não era mais Shun ali. – Não esta de acordo com trato.

– Não me importo.

– Esta... dizendo que não se importa com o que haverá? –

– Não.

– A terra, a humanidade. Se eu quiser acabar com esta brincadeira agora tudo sucumbira. Estará jogando na lama o sacrifício que seu irmão fez e por seu próprio egoísmo?

– Exato.

Hades ficou mudo. Seus olhos estavam vibrantes. Surpresos.

– Por quê?

– Por que... – Fênix desviou os olhos do deus a sua frente, buscando atrás dele na janela o sol se pondo. As casas e o horizonte que não podia ver ali, mas sabia que estava lá. "Não podia prever o que aconteceria dali para frente. Qualquer coisa que passasse por sua cabeça seria absurda".– você estava certo. Os humanos não merecem isso. São egoístas e mesquinhos, arrogantes, ríspidos. Não merecem este sacrifício.

Então, eu farei o que eu acho certo. Se alguém merece um sacrifício, este alguém é Shun. E eu farei este sacrifício com toda certeza. Mesmo que vá contra o que ele acredita, talvez eu não saiba o que estou dizendo, mas é o que tenho que fazer.

Se isso significa que a terra vai sofrer com as consequências, que seja. Talvez seja assim que tem que ser. Talvez... talvez esta guerra não seja apenas um capricho dos deuses, seja mais complicado.

Os humanos estão se destruindo, como você disse. Então, não fará diferença. Ao contrário, ainda há uma chance. Sendo loucura ou não... O mundo iria encontrar seu fim de qualquer forma.

Se a guerra houvesse estourado, se meia dúzia de cavaleiros tiverem a chance de mudar esse resultado, não importariam as conseqüências. Esse sofrimento que haveria no mundo seria apenas uma transição necessária, que talvez mudasse o rumo de tudo. Mudasse as pessoas.

Mas se não acontecer, o que mudará? Os humanos continuaram sua destruição em massa até chegar ao final.

De ambas as formas... Eu quero ao menos ter a chance de acertar um soco nesse seu sorriso estúpido! –

Hades permaneceu em silêncio, sua expressão era radiante defronte as palavras do cavaleiro. Havia um sorriso em seu rosto. Estava admirado. Exultante. Estupefato.

–Isto foi... Magnífico – Deixou-se dizer. Deu vários passos até ficarem frente a frente e segurou o cavaleiro pelos ombros. – Estou cercado de humanos magníficos! Que época gloriosa é esta, cheia de mentes distintas e iluminadas de formas tão singulares... Você pegou tudo, de forma perfeita. Não poderia esperar isso de você, nem de qualquer humano. Sua mente é cruelmente realista, e isso o fez entender o que nenhum outro poderia.

Os olhos agora eram vermelhos. Vermelho sangue, vivo, pareciam iluminados de tão cintilantes. E destes olhos corriam grossas lágrimas de sangue puro. Com ambas as mãos segurou o rosto do cavaleiro de fênix.

– Isso foi...

Impensável.


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Notas finais do capítulo

Não há The End.

Esta Fanfics foi escrita em (quase) exatamente um mês. Acredito ter alcançado minhas pretensões, que eram explorar um relacionamento realista dos dois irmãos, fazer os leitores pensarem em coisas que não pensariam normalmente, e principalmente, torturar o Shun. Não sei o porque, mas sempre gostei de torturá-lo. Shun sempre foi meu personagem favorito, cresci pensando na personalidade dele e trabalhando sobre isso... e o resultado foi este. Acho que no fundo, gosto de testar os extremos das pessoas. Bem, vocês já devem ter entendido isso.

Agradeço imensamente os comentários, que me permitiram explorar um pouco da opinião e da mente de vocês!

E vocês que leram e não comentaram: eu sei que em suas mentes estão vertendo coisas que ninguém mais poderia imaginar.

Haveria um quinto chap, mas acabou se perdendo. Talvez, um dia, ele se torne uma historia relacionada. Talvez. um dia.

Poste a frase que mais chamou vossa atenção.

Obrigado por lerem. Podem me xingar a vontade, sério, é divertido.

Atenciosamente, TheBlackWings