O último Ato escrita por Jeniffer Viana


Capítulo 1
Capítulo único - O último ato




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O trânsito está parado. Gritos rasgam o ar. Um turbilhão de cores, de pessoas correndo. Uma plateia fugitiva. Covarde. Percebo tudo isso, mas só me importo com o silêncio estático estabelecido dentro de mim. Espero que as lembranças venham ou que uma verdade fantástica se revele enquanto perco o equilíbrio. É o grande momento! Espero a recompensa por estar deixando o mundo.  Mas nada vem.


Não sinto dor, apenas estou perdendo os sentidos como se estivesse bebendo há muito tempo. Como grande conhecedor dos efeitos do álcool, sei o que estou dizendo. Vejo o canivete jogado no chão, caio junto dele antes que Romeu me segure. Ele sempre foi lento.


Ótimo. Aqueles seriam meus últimos momentos, e como se isso não bastasse seriam humilhantes.


Não se atreva, disse Romeu furioso. Tentei dizer que morrer de joelhos não era algo que tivesse planejado. Sempre havia desejado um fim mais glorioso.Tentei dizer isso a ele, mas as palavras se perderam antes que chegassem à garganta. Um sorriso manchado de vermelho foi tudo que pude dar em resposta.


Enquanto ele colocava as mãos tremulas em meu peito, tentando examinar o ferimento, eu a vi gritando.  Minha visão estava turva, mas seria impossível não reconhecer o rosto daquela colegial, um rosto doce demais.  Tebaldo se agarrava aos braços dela tentando afastá-la enquanto ela lutava com tudo que tinha para nos alcançar. Não sabia que ela era capaz de morder e chutar daquela forma, pelo mesmo até vê-la fazendo.


Benvólio tinha o rosto preso em uma expressão de terror. Ele e Romeu pareciam crianças apavoradas, cada um à sua própria maneira.  Por um momento desejei ter forças para socar meus dois amigos, aqueles dois idiotas. O que eles estavam fazendo parados?  O melhor amigo deles tinha sido mortalmente ferido, supostamente eles deveriam estar se sentindo ofendidos e irritados, eles não deveriam estar buscando vingança?


 Benvólio foi o primeiro a perceber o que deveria ser feito.  Ele correu em direção ao lugar no qual estava caído, fingindo me ignorar pegou o canivete que tinha me destruído e gritou o nome do meu assassino. Escutar a dor e a fúria na voz dele me fez bem. Pelos sentimentos cravados naquele grito, Tebaldo não seguraria Julieta por muito tempo, ele iria comigo.


Ao ver a morte do meu assassino se aproximando, vingativa. Tomei consciência exata do meu próprio fim. Tentei me lembrar das orações decoradas na igreja, mas aquelas palavras não me pareceram honestas. Se eu fosse o grande criador iria detestar aquilo. Pai me mande para o inferno, mas me deixe ver esse infeliz morrer, foi o melhor que pude pensar. Agora entendia perfeitamente o porquê de ter sido expulso da escola dominical. Definitivamente não era um bom cristão. Péssima descoberta para ser realizada instante antes do encontro com o deus todo poderoso. Caso ele existisse.


De qualquer forma espero que minha cota de milagres não tenha acabado. Mesmo sendo um maldito pecador, desejo algo antes do fim: Suplico que o sangue que sai do meu corpo e o ar que não entra sejam incapazes de me levarem enquanto não tiver companhia.  Tenho que ter perseverança. Lembro perfeitamente que havia algo disso escrito nos livros sagrados.


Mas antes que Benvólio me vingue e realize meu desejo, outro rugido me atinge. Romeu está de pé. De seus olhos caem lágrimas idênticas as da menina Julieta. Solte-a, ele ordena com a voz rouca enquanto mira o revólver para a cabeça do primo de sua amada. A garota grita, implora. Mas Romeu marcha com a arma em punho. Com a mão livre retira o canivete das mãos de Benvólio. Nada pode detê-lo. A esperança e o amor que há poucos momentos pareciam inabaláveis, estão caídas na terra, assim como para mim, não existe futuro para elas.  Romeu não pode se recusar deve ser o meu anjo vingador.  Não importa que isso o destrua por dentro, nem que estraçalhe todo o seu amor.


Tebaldo sorri, ele parece aceitar a coisa toda com dignidade. Não usa a prima como escudo. Isso me irrita.  Procuro me levantar e falar algo útil e marcante antes que meu tempo acabe. Ensaio uma última ofensa.  Não consigo, engasgo com o sangue. E mais uma vez meu plano falhou.


O cano frio da arma é encostado na testa do meu assassino, isso me anima, por um instante me pergunto se Romeu vai estourar a cabeça do cara na frente da garota.  Mas só por um instante está duvida persiste, a arma cai no chão, a dor se solidifica no ar. 


Os braços de Romeu envolvem graciosamente o corpo de Tebaldo, colocando o canivete cada vez mais fundo. Algo parecido com a eternidade se passa. Então é isso. A tragédia está consumada. Não precisamos demais nada, não que exista algo intacto em meu mundo, ou no mundo dos sobreviventes.  Somos um bando de infelizes patéticos.


Eu sinto muito, diz Romeu. Claro que ele sente, afinal, minha vida se esvai, ele se tornou um assassino e Julieta chora entendendo que eles não podem ficar juntos. Nunca.


 Por que vocês fizeram isso? A pergunta foi feita por uma voz que parecia música, uma música triste e quebrada. Antes que respondesse, ou pelo menos tentasse até lembrar que não poderia falar nunca mais, luzes vermelhas apareceram por todas as partes e um barulho contínuo e irritante nos envolveu. A policia chega quando tudo está resolvido. Muito útil e precisa como sempre.


A garota estava abraçada ao primo morto. Engraçado pensar que ter alguém para ir comigo não era tão reconfortante como pensei que seria. Teria sido melhor poder ficar.


 Benvólio que me olhava ainda preso na carranca de terror, não percebeu o que Julieta estava fazendo, assim como Romeu ele estava ausente. Mas eu vi, talvez o único, mesmo contando com a multidão em pânico que nos observava a distância, quando a bela moça de olhos claros, pegou a arma que estava caída. As mãos vermelhas não tremeram por um só instante.


 O meu amigo percebeu tarde demais o que estava acontecendo, mais uma vez ele havia sido lento. Assim como os outros ele congelou, incapaz de acreditar em como terminava aquela história de amor.  A colegial colocou a arma na própria cabeça. Entretanto o tiro falhou. Romeu se jogou em cima dela, para impedir que ela tentasse outra vez. A linda menina se assustou com o ataque repentino e sem pensar, sua mão reagiu.


Eu não vi a expressão de Romeu se converter em surpresa ou medo. Só o vi caindo e o desespero de Julieta dado lugar ao vazio, ela estava fitando a eternidade que havia tocado o seu amado, enquanto berrava que ele havia estragado tudo.


Eu consertei tudo, a corrijo mentalmente. O amor deles morreria belo, intacto, intangível. Fui eu quem o tornou imortal. Além do mais, havia feito outro grande favor ao mundo, ou pelo menos, Romeu o fez em meu nome: Tebaldo era um patife morto. Injusto pensar que a terra era um lugar melhor agora que eu estava indo embora.


A menina me olha com os olhos distantes. O Cerco ao nosso redor está se aproximando, policias e médicos querem nos ajudar. Impossível.  Eles deveriam saber que não existe nada que possa ser modificado. Tarde demais, penso de novo.


O Tiro falha mais uma vez. Desesperada ela procura no chão. Ao lado de seu amor morto e do patife inútil ela encontra a salvação. O canivete mata pela terceira vez. Ele se apresenta como grande vencedor. O metal não sente, não ama, não perde, não se destrói. Romeu e Julieta estão mortos.  Eles seriam mais felizes se fossem feitos de aço.


Os meus joelhos se rendem, meu rosto encontra o chão. Em algum lugar da minha mente me pergunto: por que ter que partir com o rosto esfolado? 


Em instantes a multidão medrosa se transforma em um bando de curiosos sedentos por terror. Querem as noticias em primeira mão, querem ver o sangue coagulando na calçada, enquanto murmuram preces. Cretinos. Devem ter sido expulsos das “aulinhas dominicais”.


Procuro me afastar daquele lugar, do palco vermelho. Benvólio deve estar tentando se misturar aos estranhos neste exato momento, ele não quer vai para cadeia por se envolver em uma briga de rua. Uma briga de raças.


Me pergunto o que devo sentir?  Nos instantes finais procuro algo no qual possa me agarrar. Algo para levar para o outro lado ou que me impeça de cair no nada absoluto.  Fracasso. Sem querer escuto sussurros: tudo por falta de amor. Mas os sussurradores só se atrevem a dizer isso porque não entendem nada sobre o amor. O amor não é algo que nos protege de todo o resto, não é uma redoma de vidro que nos guarda.  É nitroglicerina pura. Um sentimento maldito. Razão pela qual estamos estendidos no chão. Equivocado aquele que pensa que o amor salva, ele destrói. Deveria sentir honra por morrer cercado por este sentimento?


Um som estranho escapa pelos meus dentes, ridículo e fraco, é o sinal pelo qual eu nunca esperei. Vazio. Nada. Todas as luzes apagadas.


 


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Notas finais do capítulo

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