Tranfusio Sanguinis escrita por José Vinícius


Capítulo 1
Único.


Notas iniciais do capítulo

Fiz pequenas correções.



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A porta de emergência se abriu. Enfermeiros, médicos, gritaria, correria. Na maca, respirando por um balão de oxigênio, com muitas feridas abertas no rosto, o corpo imóvel, o pescoço protegido, olhos cerrados, sangue. Uma garota cuja vida expiava lenta e lamentavelmente.

Os médicos na emergência apresaram-se. Fizeram um diagnóstico rápido, e obtiveram as informações necessárias. Um acidente de carro fatal. Uma vítima morta. Uma com ferimentos leves, mas inconsciente. Outra, com ferimentos mais graves. Traumatismo craniano.

E uma hemorragia sem fim.

Haviam feito o possível para salvá-la, enquanto a levavam para ser tratada o mais rápido possível.

Uma conversa:

– Como ela está?

– Perdeu sangue demais. Talvez...

– Nós temos que tentar salvá-la.

O desespero parecia escalar as paredes do hospital. Até quem estava na espera, aguardando uma consulta, ou saindo da visita aos parentes e amigos, sentiu uma angústia tomando conta do lugar.

– Está sentindo isso, Norah?

– Uma paciente acabou de entrar pela emergência.

– Vamos pra casa, papai. Não quero ficar aqui.

Quando anoiteceu, ela ainda estava respirando com a ajuda de aparelhos. Internada, ninguém sabia se ela iria viver ou morrer, por que seu estado era muito crítico. Algo que ia muito além de simples hemorragia e traumatismo. Seu destino era morrer, por que tudo ali indicava mais uma vida esvaindo-se, sendo ceifada pelas asas da morte.

A cada segundo, os médicos temiam que seu estado piorasse. Tão logo seus pais foram alertados, a família inteira tomou conta do hospital. Não havia mais nada para ser dito ou falado. Todos queriam notícias dela. Queriam vê-la viver.

Mas no meio do desespero, sempre surge uma válvula de escape do ódio.

– Eu sabia! Eu disse a ela! Aquele rapaz não servia pra ela! Veja aonde ele nos deixou, agora...! – gritou a mãe em prantos.

–Agora é tarde, querida. Ele se foi. Sua vida em troca da vida da nossa menina. – disse o pai, abraçando-a. O filho mais novo, observando as lágrimas de sua mãe, retirou-se para o banheiro. Não segurou as lágrimas. As paredes sussurravam coisas de morte. O piso ressoava e cintilava a tristeza. O eco do choro infantil intensificou a névoa dramática daquele momento triste.

Todos queriam afastar-se, e deixarem as emoções tomarem conta de seus corpos. Mas queriam estar juntos de novo com aquela que era a responsável por muitas de suas alegrias. Nada mais do que o amor suplicando uma segunda chance. Por que este é o amor: mesmo quando tudo está perdido, quando as coisas não parecem ter volta – e talvez, nunca voltem – o amor ainda quer mais uma chance. Mais uma tentativa. Mais.

Anoiteceu, e nada de notícias. Os médicos já haviam providenciado uma transferência de sangue desde o começo. Entretanto, não havia sangue disponível no banco de sangue local. Ninguém da família, ali presente, tinha o tipo sanguíneo dela. Os médicos contataram um banco de sangue próximo, mas este só estaria disponibilizado um tipo sanguíneo substituto, com anti-aglutinadores, por que o tipo específico da garota não estava disponível.

Mas a vida tem dessas coincidências, que mais parecem coisa do destino.

Um rapaz estava saindo de um dos quartos, no qual, um paciente estava em observação.

Seus olhos eram olhos de cansaço e de tristeza. Seus ombros curvos, suas mãos gélidas nos bolsos. Ele tinha tudo para passar despercebido. Queria ir para casa, tomar um banho, e retornar. Sua mãe estava em repouso, passara por uma cirurgia e estava bem. Tinha um irmão, mas morava na Capital.

Ele notou a tensão no ar. Parou para conversar com um dos transeuntes que estavam ali na entrada do local.

– O que aconteceu?

– Uma garota entrou faz algum tempo. Parecia acidentada. Todo mundo tá preocupado, por que ela perdeu muito sangue. Acho que vai morrer.

Aquelas palavras soaram tão duras e tão frias, que o rapaz se negou a continuar na presença daquela pessoa tão pessimista. Mais alguns passos e um pensamento: por quê?

Ele voltou, e conversou com uma das enfermeiras disponíveis, que, aliás, era amiga sua.

– A garota que eu deu entrada mais cedo. Eu soube que estão preocupados com ela.

– É sim. Nosso banco de sangue está vazio. Tiveram que pedir sangue de fora. E o pior que não é o tipo dela.

– Qual o tipo?

E a mulher disse. O rapaz sentiu seu coração bater mais forte. Suas pupilas dilataram-se. Seus pelos se eriçaram.

– Chame os médicos. Meu tipo sanguíneo é o mesmo que o dela. – ele disse.

Três minutos depois, o médico que havia pegado o caso estava questionando o rapaz. O jovem explicou tudo, e disse que estava disposto a doar.

– É uma grande quantidade – disse o médico. – Muito além do convencional. Não temos tanta dose assim. Não podemos aceitar que você faça esse sacrifício.

– Só quero salvá-la. Pode tirar de mim minha vida. – disse, fazendo referência a algo muito comum no passado: a associação do sangue com a vida. Dar o sangue era dar a vida. Doar sangue é doar vida.

O médico sabia dos riscos. Resolveu tirar uma quantidade normal, para que a paciente sobrevivesse até o sangue substituto chegar.

Todos os procedimentos foram feitos. O rapaz estendeu seu braço, e uma agulha penetrou na sua pele. A máquina começou a funcionar, e o líquido rubro-férreo correu pelos tubos até uma bolsa.

Ele sentiu algo dentro de si saindo. Sentiu um repuxo no braço. Sentiu suas forças se esvaindo lenta e delicadamente. Olhava para a bolsa, que crescia vermelha e pulsante. Ele sorriu. Sentiu seu coração bater mais forte, ajudando a encher o saco com o líquido precioso. O técnico que estava ali, observando o processo e tomando conta de tudo, ficou admirado com a expressão do rapaz.

– Parece que é a primeira vez que você está doando. – disse.

– É a primeira vez que vou salvar alguém. – ele respondeu.

Fechou os olhos por um instante: dormir era fatal, mas seus membros exigiam descanso. A vida dos outros antes da sua, assim tinha aprendido em casa.

Terminado o processo, ele recebeu as recomendações de praxe, e foi embora. Ligou para uma amiga íntima, pedindo que ficasse com sua mãe, por que estava muito cansado. Ela aceitou, e notou também algo na voz dele.

– Você parece muito estranho. Parece até que foi dopado...

– Impressão sua. Estou muito fraco. Acabei de doar sangue.

– Nesse estado? Você é corajoso.

– Foi por uma boa causa. – disse, encerrando a conversa logo depois.

Tomou um banho, foi dormir. A cama nunca foi tão macia, o teto nunca foi tão atraente.

A noite nunca tinha sido tão bela.

***

Algum tempo depois.

Amy já se sentia muito melhor. Conseguia pensar. Conseguia mover os olhos. Conseguia mover os lábios. Conseguia fazer muitas coisas para uma paciente que sofreu traumatismo craniano. Ainda não estava pronta para sair do hospital, mas já podia receber visitas e conversar com elas.

Os médicos ficaram surpresos com a recuperação rápida da garota. Nunca tinham visto alguém se recuperar com uma rapidez tão grande. O dia parecia tão claro como qualquer outro; a simples lembrança dos terríveis momentos de tortura e provação que vieram quando ela deu entrada não foram capazes de apagar a alegria do dia lá fora.

A família, mais do que tudo, queria agradecer ao rapaz que salvou sua filha semanas antes. As chances dela de sobreviver seriam muito pequenas se não fosse a oferta que ele havia feito. Ele havia dado uma parte de sua vida, uma preciosa de si mesmo para alguém que ele não reencontraria tão cedo.

Shaun não desejava voltar mais para aquele hospital. Depois que sua mãe teve alta, ele quis se afastar dali enquanto aquela garota estivesse lá. Algo dentro dele o assustava; algo dentro dele o deixava atordoado. Tinha sido uma simples doação, uma transfusão muito simples e sutil, mas vital para ela, para todos. Seu sangue não salvou somente ela, mas salvou muitos do desespero e da agonia. Seu sangue, literalmente, venceu a Morte.

Agora ele sentia algo que nunca tinha sentido antes. Parecia uma espécie de laço muito forte e poderoso, invencível, mas tão fino que poderia se romper com um simples toque, como uma teia de aranha. Parecia ser resistente, mas também, vulnerável. Ele sentia uma parte dele ecoando junto a ela, gritando, pedindo, suplicando sua presença. Aquilo decididamente era estranho, assim como os fatos daquela noite. Pareciam coisas ficcionais, inexistentes, histórias infantis...? Não, pareciam coisas vindas da cabeça de um maluco escritor de histórias, por que tudo aquilo se encaixava e não se encaixava; aquilo tudo parecia explodir diante de seus olhos feito uma bolha, um sonho. Eram seus sentimentos mais profundos.

A mãe de Shaun soube do acontecido, e não foram poucas as vezes que ela sugeriu a ele que a visitasse. Ele fingia que não escutava, fingia que não estava se importando com nada, por que de fato ele não se importava da mesma maneira como as demais pessoas se importam. Era algo muito complexo, ou estranho, ou ridículo para ser descrito em palavras. Shaun não sabia como fazer para dizer a todos que ele tinha medo de ir vê-la.

– Você precisa conhecê-la. Não são todos que têm a oportunidade de conhecer a vida que salvaram. – disse a bondosa Senhora Lee.

– Eu não posso continuar pensando nisso, mamãe. Eu tenho provas. Tenho que me preocupar com outras coisas mais importantes. Uma faculdade, por exemplo, não é nada mal. – disse, enquanto fechava os olhos e dormia no sofá.

A senhora Lee sorriu. Mas seu sorriso se desfez no mesmo momento que as palavras de Shaun ecoaram em sua cabeça.

Meu filho pensando numa faculdade?

Não demorou para que a Sra. Lee resolvesse forçar o filho a encontrar a garota. Graças as suas amigas, ela descobriu o nome da garota e a casa da família. Acabou entrando em contato com os pais da garota, e deixou claro seus sentimentos. Se o filho não faria aquilo, ela faria.

Certo dia, ela encontrou Amy. Já estava muito melhor. Já se sentava na cama. Coisa que gostava de fazer era observar a janela. O Mundo lá fora.

Passara muito tempo pensando no terrível erro de ter saído com Ben. Ele perdera a vida no acidente fatal que a deixara naquele estado. Ela tinha saudades de Ben, e de seu sorriso quente e acolhedor, e seus olhos faiscantes, e seus ombros retos, e de sua personalidade forte, teimosa, rebelde, raivosa, mas cheia de temor e lealdade. Ela estava começando a dizer a si mesma que eles dois podia ir além que ela poderia aceitar dele seus sentimentos mais sinceros, apesar de seus defeitos.

Agora suas esperanças estavam enterradas no túmulo dele. E de lá, jamais sairiam novamente.

Respirou fundo. Aquela antiga vida já tinha passado. Agora, ela precisava compreender por que sentia algo dentro de si. Algo inexplicável.

Era como se uma parte de um desconhecido estivesse habitando suas entranhas. Isto é, estava, ou estara, desse jeito, no pretérito mais que perfeito, por que a ação continuada ainda existia, circulando dentro de seu corpo, sarando suas feridas. Aquele sangue estava repleto de algo muito pouco conhecido pelas pessoas, uma coisa que ninguém nunca tinha sentido ainda, somente quem tinha passado por aquilo: o doar de uma vida, o símbolo de um amor que não existia antes e que existia agora.

Amy sentia essas cosias, sentia que o fato de Shaun ter doado seu sangue para salvá-la ia muito além de um ato de desprendimento próprio, de amor, de dever com a vida: era amor puro mesmo, amor inconsequente, amor desconhecido, um amor que tornava as coisas mais avulsas do que eram, era um sentimento que ela não conseguia entender e compreender com a mesa facilidade que os demais. Aquilo que ela sentida dentro dela não era o amor propriamente dito, mas algo que fazia lembrar, um elo forte, um laço que está entre a amizade e a loucura. Por que é nesse vão minúsculo entre essas duas coisas que se situa esse sentimento de Amy. Coincidentemente, o Amor em si próprio se situa próximo. Ou quem sabe, neste lugar. Ou em outro. Não sei.

Amy deixou de lado todos esses pensamentos estranhos e ridículos, e passou mais um momento sozinha, consigo mesma. A mão no coração, que parecia estar amando um desconhecido.

***

– Olá. – entrou a Sra. Lee. Mantinha no rosto o sorriso jovial e carinhoso de uma mãe separada aos quarenta. Amy virou seu rosto, e sorriu. Susan Lee tinha sido uma de suas visitas mais frequentes.

– Olá, Sra. Lee. – ela respondeu, forçando um sorriso. Susan sentou-se ao lado da cama.

– Como se sente hoje?

– Bem melhor que ontem, disso tenho certeza. – e Susan pegou na mão da garota. Apertou-a forte, como sempre fazia quando Amy dizia que estava bem. Para ambas, era um sinal de força.

– Sua mãe conversou com o médico. Daqui a três dias, você vai estar livre deste quarto. – comentou.

– Vai ser estranho. Eu estou tão acostumada com estas paredes... Parece que eu vou embora de minha segunda casa.

– De sua segunda casa para sua verdadeira casa. Para sua antiga vida. – disse Susan. Amy baixou os olhos, e afastou a mão.

– Minha antiga vida... – começou. – Sabia que eu não tinha uma vida de verdade? Isto é, era uma vida. Mas, uma vida... Não sei.

– É difícil falar de você com alguém que você acabou de conhecer, e que te preza muito por que uma pequena parte daquilo que eu amo está em você. – e Susan tocou a mão da garota. – Eu sinto a vida fluindo aqui dentro. Eu sou capaz de dizer como ela é.

– Eu sei Sra. Lee. E é por isso que eu sou muito grata a Shaun. Pelo que ele fez a mim. Nem sei como agradecer.

– Eu irei falar com ele mais uma vez, antes que você vá embora. Senão, ele não virá nunca até você.

Amy sentiu algo dentro de seu coração mais uma vez. Não era algo muito grandioso, nem dolorido. Era como se estivesse decepcionada, mas sem estar.

– Espero que ele venha logo. – disse, voltando os olhos para a porta. Era o Dr. Brown, o médico que cuidara de seu caso.

– Como vai minha paciente preferida? – disse. Susan deu espaço para o homem passar.

– Você sempre diz isso para todas, Matthew. – respondeu Amy com um tom brincalhão.

Matthew começou a fazer alguns exames simples, periódicos. Susan picou para Amy, ao passo que ela entendeu a mensagem. A mulher saiu dali, determinada a fazer o filho ir visitá-la, custe o que custasse.

***

Shaun teve que piscar três vezes antes de entender por que ele estava ali no hospital. Seus pés se moviam contra a sua vontade. Seus dedos se mexiam nos bolsos. Seus olhos estavam inquietos. Buscavam alguma coisa em algum lugar. Um detalhe, um canto, uma cor, um tecido, um passo, um piso. Queria fugir dali, por que estava com medo. Muito medo.

Ridículo, pensou. O que eu estou fazendo aqui?

A verdade é que ele estava impressionado com o fato de sua mãe tê-lo convencido a visitá-la, antes que saísse do hospital dali a alguns dias. Ele se sentia desesperado por conhecê-la, por que, dentre outros motivos, teria que admitir a si mesmo a loucura que tinha feito, o ato que havia culminado naqueles tormentos todos: seu sangue a salvara.

Enquanto andava, pensara muito na lei do caos. Pensara, também, nos milhares de motivos que ia inventando para manter-se longe dela, por medo. Medo de admitir algo que possivelmente não era de costume dele, medo de revelar para aquela garota o desconhecido que era sua alma.

Passou por muitas portas, e chegou até a hesitar entrar num determinado corredor que levava ao quarto de Amy.

– O que estou fazendo aqui, pelo amor de Deus? – disse a si mesmo, enquanto dava meia-volta. Para ele, era torturante frequentar este ambiente novo, não por que sentisse repulsa de ter feito o que havia feito, mas por que tinha medo de algo que era mais simples do que pensava.

Amy, por sua vez, estava ansiosa para vê-lo, mas estava suando muito frio. Seu coração bombeava tanto sangue, e ela sentiu nojo, por que misturado com o seu sangue de nascença, o sangue de seus pais, estava o sangue de um estranho que, curiosamente, a salvara da morte. Ela sentiu uma tontura, e começou a chorar. Não chorar loucamente, mas lágrimas de tristeza caíam de seus olhos – isso era chorar. Ela não compreendia por que esse laço forte estava unindo-os daquela forma, não compreendia por que se sentia desse jeito. Por que, meu Deus, ela tinha que se sentir assim? Ela não poderia ser feliz somente aproveitando a vida que lhe fora dada? Ou considerar que o que Shaun havia feito foi por que era uma obrigação para com a vida, quando você tem a oportunidade de fazê-lo? Mas ela se arrepende de seus pensamentos, por que se ele tivesse fugido a esse dever, ela não estaria ali pensando.

No exato momento, Shaun apareceu na porta. Ele usava uma jaqueta, mas não fazia frio. Usava jeans surrados e tênis, e não havia se arrumado com gosto.

Parecida ter sido forçado a vir, pensou ela.

Aquele momento em que seus olhos se encontraram, o sangue que pulsava em ambos os corpos reagiu. Shaun não sabia o que dizer ou o que fazer, por que confrontara o elo que ele mesmo havia criado, sem ter noção das consequências. Aquela não era uma simples visita de agradecimento, estava longe de ser. Era uma batalha contra dois atos: o erro e o conserto. O erro de Amy, e o conserto de Shaun. Mas ambos encaravam seus opostos: Amy consertara algo, Shaun errara em algo.

– Oi. – ela disse, tomando a iniciativa. Parecia um oi amigável, não frio. – Você é o Shaun, não é?

– Sim. – ele parecia amedrontado. – E você é a Amy.

– Bem, se não me reconhecesse, eu diria que estaria louco. – ela disse, num tom brincalhão.

– Bom, não é todo dia que você salva alguém.

Aquilo saiu fora de hora, longe de ser algo consciente. Ambos estagnaram no tempo e no espaço, o sangue ainda vibrando em seus corpos juvenis. Ardendo para um toque.

– Obrigada. – ela disse, abaixando a cabeça. Nunca imaginara que iria dizer aquilo para o seu salvador daquela maneira. – Serei sempre grata.

Shaun manteve a imparcialidade de suas ações. Sorriu, pela primeira vez. O que sentia medo não era tão perigoso. Amy era linda, com seus olhos vivos, claríssimos, e a pele macia. Ele sentiu uma ternura estranha, uma vontade de repetir aquilo várias vezes. Sentiu a vontade de abraçá-la. Assustou-se.

– Não vai sentar? – ela perguntou, apontando uma cadeira do lado de sua cama. Seus olhos estavam suplicantes, mas despercebidos. Quem olhasse para dentro daquela alma, saberia com exatidão uma única coisa: Amy queria mais de Shaun. Embora esse desejo estivesse muito diluído.

– Não, eu já estou de saída. – ele disse. Mas se aproximou, num paradoxo.

Amy respirou fundo, e voltou a sorrir.

– É estranho, não acha? Seu sangue está em mim. E não há nada de mim em você. Sinto como se você estivesse incompleto, e eu precisasse completa-lo.

– Bom, quando eu precisar, você pode fazer o que eu fiz. – ele disse, brincando. A brincadeira não soou ruim nem de mau gosto, mas fez Amy sorrir de verdade. A luz entrou na janela naquele momento, e Shaun contemplou a beleza que Amy possuía. Seus olhos admiraram o brilho da alma da garota.

– É, eu posso... Mas essas coisas não são assim comuns. E são perigosas. Acho que isso nunca acontecerá conosco. – ela disse, e assustou-se. Usou a palavra errada. Ou certa...?

Shaun não aguentou mais. Ele se aproximou dela mais ainda, e abaixou-se para olhar nos olhos dela.

– Acho que você não precisa mais me agradecer por nada. Eu fiz isso por que era meu dever. Eu faria de novo, se precisasse. Faria até se eu perdesse minha vida no processo. – novas palavras erradas. Ambos coraram.

Amy nunca tivera tanta proximidade com Ben. A verdade é que ninguém jamais tinha encontrado seu interior antes. E Shaun não só encontrara, mas também fazia parte dele.

– Sua vida pulsa em mim. Não existe agradecimento à altura. Ficarei com uma grande dívida. – ela disse, encerrando o momento. Shaun afastou-se. Sentiu um amargo na boca. Estavam evitando-se, tanto ele como ela. Mas se queriam.

– Então, até outro dia. – ele disse. Sorriu, e virou-se. Ia embora. Avançou alguns passos no corredor. Amy continuava estática, olhando para seu estado na cama.

– Por favor, volte. – ela disse. – Volte mais vezes. – a voz saiu suplicante do quarto. Shaun sentiu que ela não estava falando com ele, mas com o sangue dele. Com o sangue que havia salvado a vida dela, e agora, criava um misto de amor e compaixão em ambos. É isso: um misto.

Shaun sentiu seu coração bater mais forte, somente ao se lembrar da visão de Amy em seu brilho. Sorriu, e pela primeira vez, desejou ardentemente beijá-la. O que lhe pareceu estranho, até por que, naquele exato momento, Amy tinha um pensamento parecido: queria ser beijada por ele.

Amy sorriu, e chorou. Mas dessa vez, de alegria. Tinha um desejo flamejante na alma, e duvidava que seria capaz de realizá-lo. Queria completar o ciclo. Completar Shaun.

Shaun seguiu seu caminho, tentando conciliar seus pensamentos com seus sentimentos. Seu sangue os unira para sempre.


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Notas finais do capítulo

Quando escrevi esse texto, eu estava em torpor.
Isto é, as palavras fluíam de um jeito tão natural que pareciam mais um rio, ou uma cachoeira. Cachoeira é melhor.
Escrevi sem parar, até que o sentimento se esvaziasse. Achei que ele tinha se esvaziado.
Errei.
Muito tempo depois, volto e leio. Primeiro, corrijo a parte técnica.
Quando me dou conta, corrijo todo o resto.



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