Como me tornei uma mentira - Parte Um escrita por Somenone


Capítulo 3
Capítulo 1 - WTF




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A aula de educação física tinha acabado – e sim, eu havia ganhado de Muriel. Não há grande surpresa nisso. Troquei-me rapidamente no vestiário, colocando a minha calça jeans e a camisa lilás de algodão, o casaco cinza por cima. Estava friozinho, nada de mais.

No caminho de volta para a classe, Freddie me chamou no canto escuro do corredor. Parei para escutá-lo, afinal, a aula tinha acabado e precisava apenas pegar as minhas coisas.

–O que foi?

–Escute – ele falou com a voz grossa um pouco rouca – Minha avó fez macarrão em casa. O que você acha de dar uma passada lá?

–Freddie, Freddie, nós já conversamos sobre isso – eu suspirei um pouco cansada. – Quem você pensa que engana com esse papo de macarrão? Da última vez, você disse que iríamos apenas assistir à televisão, só que aquela mão boba não estava a par dos planos, não é?

–Desculpe – ele se apressou, encolhendo-se nas sombras – Mas eu juro que dessa vez é só o almoço mesmo...

–Olhe Freddie, eu adoraria. Você sabe que eu gosto de macarrão. Só que tenho que ajudar a minha mãe a arrumar os meus livros. Toda sexta fazemos isso – na verdade, não.

–Eu posso ajudar.

–Desculpe, mas conhece a regra: “Nada de machos no território das amazonas”.

–Elas usavam os homens para procriar – ele murmurou baixinho.

–Não dessa vez, campeão – e me virei, afastando-me.

–Espera – ele segurou minha mão com força e me rodopiou, a outra mão nas minhas costas, como uma dança estranha.

E me beijou. Aquele canalha.

Tinha um gosto estranho de chiclete de tutti-frutti misturado com saliva e a inconveniente língua tentando rudemente abrir passagem pelos meus lábios cerrados.

“QUEM ELE PENSA QUE É”, meus miolos gritavam. Mas a rainha da mentira jamais deixaria seus sentimentos expostos. Não, ela piora as coisas. Para ambos os lados.

–Para com isso, Freddie – eu murmurei entalada na boca dele. Saiu meio como um suspiro (que nojo) – Na escola?...

–Não consigo mais, Mel – ele me chamou pelo apelido que concordamos em não usar jamais. Era como o meu pai me chamava – Eu preciso de você.

–Não... Espere! – e me livrei com delicadeza, empurrando seu peito e nos separando – Olhe. Não agora, entendido?

–Quando? – ele perguntou ansioso. Conseguia ouvir que respirava mais pesado que o normal, significando apenas uma coisa. Descubra você mesmo o que é.

–Apenas espere que eu esteja pronta. Ainda estou... Emocionalmente abalada.

–Do quê? Você nunca teve namorado.

“Assim como você não se masturba toda noite”. Como eu gostaria de ter respondido isso. AH! Porém, apenas repliquei educadamente, meus ombros encolhendo:

–Não foi exatamente um namorado... É complicado demais – e saí correndo em direção às escadas, dando a entender que estava saindo da escola.

Se ele me conhecesse bem, saberia que eu sempre tomo esse caminho para fugir de alguém ou de alguma aula. Era apenas subir as escadas e entrar pela biblioteca, onde tem uma saída nunca usada. Dá exatamente em frente à sala em que estudamos.

Ao chegar lá, trinquei os dentes. Demorei demais naquele papo meloso com o maldito do Freddie. Muriel e as suas comparsas haviam sumido com o meu material.

Não sumido, exatamente. Aquelas antas descabeçadas sempre o colocam no mesmo lugar: em cima do armário imenso que temos no fundo da sala. Normalmente, o professor de Matemática senta lá em cima para ter uma visão periférica de qualquer engraçadinho que tente colar nas suas provas. O coitado, todavia, é míope e não vê que todos colam mesmo assim.

Assim que a recuperei, resolvi ir embora de uma vez. Não queria mais me encontrar com ninguém naquele dia. Saí em disparada aos portões da escola. Já tinha perdido a perua e não pretendia de jeito maneira pegar carona com Freddie. Ainda estava tonta por causa daquele traste. Teria de tomar o ônibus.

Quando cheguei à rua, porém, estava lotada de gente tanto na calçada quanto no asfalto. Amaldiçoei meu pai por ser baixinho e depositar essa carga genética em mim – eu o amaldiçoo por qualquer coisinha – e continuei tentando abrir espaço pela multidão.

Era tanta falação que fiquei com dor de cabeça. Tateei meus bolsos em busca da aspirina e amaldiçoei mais uma vez meu pai por não ter me levado no médico quando reclamei pela primeira vez daquelas dores. Podiam ser sintomas de um tumor no cérebro, mas o bastardo simplesmente afagou meus cabelos e disse em tom despreocupado, absolutamente repugnante para um pai que deveria se preocupar:

“Não é nada”.

Pois bem, se não fosse por esses vários nadas se juntando, eu não precisaria procurar a minha aspirina na mochila, portanto, não teria sido puxada pela multidão e caído de bunda no meio da rua exatamente no momento em que uma moto quase me atropelou.

Era um veículo negro como a noite sem luar. O motorista com trajes tão escuros quanto o mar durante a madrugada. Ele voava baixo, mas não sozinho. Outro corria atrás, porém não parecia que estavam juntos. O primeiro estava fugindo do segundo.

Pouco depois que os zangões passaram zunindo nas nossas orelhas, uma explosão de uma loja próxima assustou a todos. Os alarmes soavam e sirenes se aproximavam. A confusão era total. Para evitar que eu fosse pisoteada, voltei para junto da calçada, observando tudo. Quase me senti como o próprio professor de matemática, apenas pelo fato que possuía uma visão 20x20.

Algo me chamou a atenção e grudei meus olhos no fato. Um garoto, não devia passar dos 18, corria no meio do povo em direção contrária às sirenes. Até aí, nada anormal, tirando o fato que ele estavasem camisa. Completamente nu da cintura para cima. Seu tórax não era apenas de um rapaz que é forte e saudável, mas o seu corpo era inteiramente preenchido por sardas.

E o moleque ria. Praticamente gargalhava. Os olhos verdes (espera... Os dois? Não tenho certeza) na mais pura alegria. Tão pura que eu quase sorri junto, se não fosse pela próxima explosão de uma viatura de polícia e pelos tiros. Mal notei que antes, todos haviam fixado seu olhar no menino, como se pensassem ao mesmo tempo: “mas que diabos?...”.

Enfrentei a multidão e saí correndo por trás da escola. Era um caminho bem mais comprido, mas preferia chegar à minha casa a morrer com uma bala perdida.

É claro, eu não sabia o que estava acontecendo. Não fazia ideia do que aqueles eventos estranhos e inacreditáveis tinham a ver com nada que eu conhecia. Mas, ah, se eu soubesse, jamais teria corrido por aquele caminho.

Pois se eu soubesse, não teria esbarrado no menino-maluco-sem-camiseta-e-cheio-das-sardas.

(É isso que vocês esperavam, não é? Danadinhos).

Não, cheguei a casa ofegando, mas sem esbarrar em ninguém.

O que é estranho. Pois minha mãe sempre abre a porta para mim e me dá um abraço, não importa quão atrasada eu esteja.


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