Breathe Me escrita por Luna


Capítulo 1
One Shot


Notas iniciais do capítulo

Bom espero que gostem! Se passa em Londres no subúrbio pra ser mais exata



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/459870/chapter/1

Breathe Me

Hermione Granger

Fitei o relógio de parede rústico que estendia-se em minha sala. Cinco horas. O equinócio já fazia seu trabalho, trazendo a noite e expulsando a vívida luz solar. Pequenos flocos de neve desciam solitários do céu, contrastando com os tons de cinza da cidade. Pensei em me levantar, preparar um chá, e voltar para o aconchego de minha cama, eram férias e queria passa-las em casa, mesmo que está não fosse muito grande, nem muito localizada, mas suficiente para alguém como eu. Os cabelos, antes presos em um rabo de cavalo, deslizavam por minhas costas causando-me deliciosas sensações de arrepio e bem estar. Os dedos gélidos que fitava ao horizonte, nunca foram meus, os nós brancos de denunciavam a névoa que se formava ao longe.

Meu cobertor, de tão pequeno que era, estendia-se até metade de minha cintura, fazendo-me parafrasear o que pedia-se chamar de cama. O sofá, apesar de pequeno, mostrava-se, naquele momento, propício a situação. Fiquei deitada ali, assistindo filmes e bebendo coisas quentes até o entardecer. Assim que meus pés tocaram o mármore gélido do chão, sinto um choque térmico passando da ponta de meus dedos até o topo de minha cabeça, soltando arrepios constantes. Esboço sorrisos. Aquela não era a primeira vez que acontecia e sentia que também não seria a última. Espreguiço-me ouvindo os ossos de minha coluna protestarem pelo tanto de tempo que passei deitada e sem mudar, por alguns instantes de posição. Caminho em direção a cozinha, prepararia mais um pouco de café, quando sinto duas mãos atrás de mim, fechando o fogo que por acaso acabara de ser ligado por mim. Não iria escapar por muito mais tempo, sentia isso.

– Ficou esse tempo todo deitada, sem fazer absolutamente nada, enquanto um mundo cheio de coisas novas espera por você lá fora?

Sorri e virei para encará-la melhor. A carranca que se formava à cima de suas sobrancelhas. Era difícil saber se aquela tinha sido a trigésima ou quadragésima vez que minha mãe dizia para sair e fazer novas amizades, ou até mesmo alguma, já que o número de amigos que tinha era relativamente pequeno, comparado ao tanto de pessoas de meu colégio. Harry, Gina e Rony. Três parecia, pelo menos aos meus olhos, um algarismo suficientemente bom.

– Talvez eu devesse sair.

– Que se apresse, não quero essa bagunça em casa. Principalmente quando alguém especial e influente vem aqui hoje. Tudo precisa está em perfeita ordem.

Vale lembrar que, minha mãe era uma costureira de mão cheia, e todos a procuravam exigindo, na maioria das vezes, modelos exóticos e extremamente complicados de serem desenhados e talhados nos tecidos caros e macios dos quais eram lhe atirados. Mas, parecia, mesmo que eu soubesse, não era verdade, que cada vez que uma cliente lhe surgia, um desafio novo lhe era proposto, ela parecia gostar disso, e confesso, vê-la feliz me fazia bem, bem até demais.

– E eu por acaso posso saber quem é esse alguém tão especial?

Apanho uma peça, indefinida por mim, da roupa de meu pai e a entrego. Parando bem e olhando-a, éramos muito parecidas, até mesmo os olhos, cansados na maioria dos casos, tornavam-se iguais. Quentes e reconfortantes, era como se o frio ali não penetrasse as cortinas de algodão. Sinto seus braços trabalharem, catando uma a uma as migalhas de pão que eu tinha deixado cair. Talvez aquela ocupação fosse alguma coisa estra quando não tinha clientes suficiente que lhe atormentasse as vinte quatro horas do dia, sete dias por semana. Laura parecia nunca descansar, mesmo que as feições lhe denunciassem, ela parecia nunca perceber nada.

Sua mão passa de forma leve e carinhosa por cima dos fios longos soltos e rebeldes de meu cabelo. Trato de prendê-los em um coque desarrumado e frouxo, de modo que alguns fios ainda teimavam em cobrir os lados das bochechas, avermelhadas. Sinto o peso de sua palma passando de encontro os fios de meu cabelo. Ásperas, mas ainda sim boas o suficiente para serem sentidas. Os calos formados na base de sua pele denunciavam o trabalho árduo e pesado que fazia.

– Narcisa Malfoy.

As palavras secavam o ácido que escorregava por meus ouvidos causando-me danos talvez irreparáveis. O tremor percorria cada extensão de meu corpo, fazendo-me relutar em acreditar. Já tinha visto suas fotos em holofotes, e até mesmo em programas de alta audiência, mas, nunca, em hipótese alguma, passou pela minha cabeça que minha mãe costuraria roupas para alguém tão, em meu ponto de vista, prepotente e ambicioso. Eu sabia o poder que a televisão tinha de distorcer as verdadeiras personalidades, mas seu marido nunca deixou de transparecer o real ódio por nossa família e quaisquer outra de classe inferior. Pergunto-me, por breves minutos, como alguém, que casa com a pessoa que é, tinha coragem de desafiar o que o próprio marido disse, vindo fazer roupas com alguém do qual o mesmo repugna?

– Sabe o quanto essa família nos odeia. Sabe mais do que ninguém o quanto os Malfoy nos recriminam por falta de dinheiro. Por que ainda aceitou fazer isso?

Os brilhos que antes tomavam conta dos meus olhos, mudaram de cor na mesma hora que minha mãe abriu a boca para protestar. Nada era plausível, eu sabia que precisávamos de dinheiro, mas isso não significava, em momento algum, implorar para tê-lo. Servir aquela família só me trazia essa das mais repugnantes alternativas na cabeça. Prendi meus cabelos que se desfaziam novamente como cascatas pelas minhas costas, peguei o casaco do velho cabide de madeira escura, capturei em um punho algumas cédulas do pouco dinheiro que tinha em cima da bancada, e saí. Ainda conseguia ouvir, ao longe, os gritos de minha mãe, perguntando e implorando para que eu ficasse a ouvisse, mas era tudo simplesmente inacreditável. Parecia que a névoa tomara conta de seus olhos, ela não via. Se humilhava a alguém que sempre eram superiores, que sempre se acharam superiores, éramos apenas submissas.

Morávamos em um prédio talvez afastado demais do centro da cidade, pensei em como devia ser corajosa uma senhora tão respeitada pela sociedade e mídia, andar por aquelas bandas apenas para fazer uma mísera roupa. Sorri em ironia. Esqueci que os ricos fazem tudo e mais um pouco só para conseguirem o que querem, com ela não iria ser diferente. Segui os poucos corredores que se estendiam a frente de minha casa e dei-me de cara a uma porta grande e pesada vermelha, por onde desceria algumas escadas, quatro lances para ser sincera, até chegar ao térreo. O elevador já não funcionava, as engrenagens tinham que ser trocadas, mas ninguém parecia se importar, ou ter tempo e dinheiro suficiente para se fazer, perguntei quando alguém finalmente levantaria de um sofá, limparia a camisa de migalhas de salgadinho e consertaria aquele veículo tão importante para nós. A resposta me veio à cabeça quase que como um relâmpago: nunca, eram moradores preguiçosos demais para isso. Descer por aquela pequena caixa metálica me pouparia tempo e cansaço, mas ao contrário disso, tinha que andar, descer degrau por degrau.

– Com licença, é aqui que mora Laura Granger?

Parei de frente ao portão velho e enferrujado pela quantidade de chuva que por ele descia, quando ouvi uma mulher de meia idade me chamar, perguntar algo que, apesar de não ter sido direcionado a mim, eu virei. O nome não fora solto, mas achei que deveria responde-la, aliás, eu era a única ali presente.

Fios loiros platinados desmanchavam o coque quase igual ao meu em sua cabeça. Observei além dos cabelos, as roupas simples porém finas por cima de seu corpo relativamente magro, a bolsa pequena, da qual só cabia o celular, os dedos pálidos batucando a grade ao lado do portão que eu segurava no momento. Os olhos e bocas arroxeados por conta do frio constante. Abri o cadeado e balancei a cabeça para que entrasse, ali estava muito mais confortável do que em uma calçada ladrilhada de buracos dos mais diversos tamanhos.

– Sim, último andar, segunda porta a esquerda.

Senti a voz sair tesa, seca, mais ainda sim firme e audível.

– Obrigada.

Tentei seguir caminho, o portão da frente já tinha sido aberto por mim e o cadeado passava em torno das grades enquanto eu tentava fechá-lo, outra coisa que devia ser mudada e que por ironia ninguém sentia-se capacitado ou com coragem suficiente de fazê-lo. Senti duas mãos macias tomarem de mim o pequeno cadeado cor de ferrugem e fechá-lo com habilidade. O sorriso que se seguiu devia ser irônico ou ao menos superior. Sentia-me mal, eu não via nada daquilo em suas feições, perto de Narcisa eu não me sentia subordinada a ninguém, só parecíamos duas pessoas completamente normais, sem diferenças de classe social, talvez alguns anos mais nova que a outra, porém, somente isso. Ela estava do lado de dentro agora, e eu ali, assistindo tudo como uma completa idiota.

– A propósito, você não seria Hermione Granger, seria?

A voz pareceu me faltar. Em momento algum tinha me apresentado, dito meu nome, e um palpite, em meio a tantos outros nomes, ela escolheu justo aquele, em meio aos erros ela escolheu acertar. Porém, o tom de indagação que se seguia em sua voz, deixou transparecer que talvez minha mãe tenha falado um tanto quanto muito sobre nós, sobre mim. Sentia-me estranha, talvez pública fosse a palavra certa, como se as informações da qual tinha permissão fossem ao vivo, para que toda a Inglaterra ouvisse em alto e bom som.

– Sim, eu mesma.

– Você tem os olhos da sua mãe. Costumávamos sair juntas quando mais jovens. Hoje, o tempo de ambas é curto e ainda sim dedicado a algo importante. Sua mãe deve ter muitos clientes e eu, bem, pulo de palestra em palestra como se fosse algo descartável.

– Nem tantos, mas de fato ela é bem ocupada.

O espanto espalhava-se entre minha boca e meu cérebro, causando-me confusão e asfixia. As duas se conheciam e minha mãe não fez menção alguma em me contar. Poderia está julgando uma pessoa de forma errada. Narcisa parecia ser alguém legal, bastante atenciosa e nenhum pouco pedante até o momento. Comecei a acreditar nas pessoas e o que elas dizem sobre televisão influenciar os artistas a serem o que na verdade não são.

– Uma última pergunta e não tomarei mais seu tempo. Quantos anos você tem minha jovem.

– Quinze. Quer dizer, dezesseis. Isso, eu esqueci que hoje é meu aniversário.

Esse detalhe tinha sido sugado pela minha memória, em momento algum eu lembrei. A verdade é que comemorar mais um ano de vida, ou simplesmente sair por ai falando que estava ficando mais velha, nunca tinha sido muito algo do meu fetiche, aquele dia, era somente mais um, um como qualquer outro. Porém, seus olhos caíram em cima de mim de uma forma carinhosa e sutil, algo que nunca e fato esperaria dela. O capuz em minha cabeça tentava esconder o rubor que subia em disparada pela minhas bochechas. Afinal, onde aquela conversa iria parar?

– Preciso ir, e acho que minha mãe deve está esperando a senhora.

– Ah, por favor, deixemos as cordialidades para outra hora. Narcisa, apenas Narcisa.

Assinto com a cabeça. Aperto suas mãos e caminho sem rumo, pelas ruas escuras e pacatas do bairro sombrio que morava. Algo o assemelhava muito aos filmes de suspense que se viam. Talvez pela grande quantidade de drogados ou bêbados por ali jogados, de certa forma, ambos eram inofensivos. As bebidas entorpeciam a mente de muito deles, que encontravam-se jogados em algum banco ou declive alto o suficiente para se apoiarem. Já os viciados em drogas, fumavam escondidos, em cantos de becos e fogueiras próximos uns dos outros, amenizando o frio que se alastrava pela cidade.

O capuz que revestia minha cabeça, deixava transparecer o ardor de minhas bochechas, por conta da neve e dos pequenos flocos que teimavam em cair por cima de minha jaqueta. Em outras circunstâncias, poderia dizer que era literalmente a chapeuzinho do capuz preto. Que clichê.

Andava sem rumo, passei por diversos parques, a verdade é: eu só queria um canto onde pudesse relaxar. Sentar, tomar um chá, talvez ler um bom livro, se tivesse algum comigo naquele momento, mas me refugiar, principalmente, daquele frio. Não só a mim, como a tudo que trazia junto de mim. As mãos que estavam escondidas nos bolsos do casaco amenizavam o frio. Os dedos gélidos, nunca, em hipótese alguma, serviriam de consolo para tardes como aquelas. Olho para o céu e de lá, consigo notar vestígios de estelas se formando ao longe. Para mim não era tão tarde, talvez quinze para seis, mas nada a mais que isso. Não me aventurei em perguntar, eu de fato não precisava de uma resposta.

Depois de alguns metros caminhando, notei que tinha parado defronte a uma casa de chá, já conhecida por mim. Poucas pessoas liam seus livros ali dentro, deliciavam-se com suas bebidas quentes. Queria poder entrar, pagar a mim uma bebida, um chá de preferência. Hortelã com menta, ou na maior das hipóteses, canela. Escondi-me em um canto, retirei alguns maços de dinheiro do bolso e contei cédula por cédula. Sim, a conta certa para uma xícara de chá. Sorri. Estaria me dando um presente que ninguém nunca em momento algum pensou ser perfeito. Entrei na casa que no momento encontrava-se quase vazia, mesmo que eu não tenha percebido a saída de tantas pessoas daquele estabelecimento.

– O que lhe trás hoje por aqui jovem moça? Chá de erva doce com hortelã, ou o costumeiro de canela?

Aproximo-me do balcão com um meio sorriso no rosto, e ouço a voz de Blás ecoando ao longe. Ele me conhecia bem, pelo menos conhecia bem aos meus gostos por chá, sabia o quanto repugnava maracujá com ervas amargas, ou até mesmo hortelã puro. Era uma mistura interessante, sabores exóticos, porém, nunca apetitosa. Estendi a nota a sua frente e sentia algo a puxando por trás. Alguém tinha falado atrás de mim no mesmo momento que a cédula foi puxada. Uma voz rouca e estrepitosamente masculina. A frase nunca tinha repercutido antes em minha cabeça, ela nunca tinha sido solta pelos lábios de ninguém.

– Deixe que eu pago.

Giro a cadeira atônita. Era algo automático. Ninguém nunca tinha se oferecido para pagar-me uma bebida. Ao observá-lo melhor, percebi que o conhecia. Não por intimidade, muito menos por constantes conversas, mas sim porque acabara de falar com sua mãe no portão de minha casa. Não protestei, pelo menos eu sabia que o dinheiro, pouco que ainda tinha, servia para algo mais.

– Hortelã com erva doce, por favor.

Endireitei-me a cadeira. Coluna ereta. Não sabia se precisava agir com tanta formalidade perto de algo que devia, em minha opinião, ter a mesma idade que a minha, se não um pouco mais velho. Curvei-me um pouco, senti o coque se desfazer por minhas costas, e alguns poucos fios castanhos descerem por meu rosto.

– Quem é você afinal?

A pergunta soava besta aos meus ouvidos, porque de fato eu sabia quem ele era, o nome não me deixava esquecer, mas ouvir de sua boca fazia-me não levantar falsos testemunhos.

– Um estranho pagando chá a alguém bela o suficiente para isso.

– Clichê.

– Não, ensaiei a manhã toda para isso.

Reprimi um sorriso. Eu nunca tinha visto o lado humorístico de um Malfoy, mas podia apostar que era algo bem exótico por assim dizer. As fendas, pequenas, mas ainda sim perceptíveis, que se destacavam como covas ao lado de sua boca quando sorria, era único e me fez querer tocá-las. Ele sentou na cadeira ao meu lado, depois de longas pausas calados. Eu, virada em direção a porta que entrara e que possivelmente ele tenha entrado também, e ele, fitando o balcão cheio de pessoas trabalhando, passando de um lado a outro com bandejas de cafés, chás e afins.

– Draco Malfoy.

Virei a cabeça para o lado que ele estava e fitei um par de cinzas azulados me encarando violentamente. Por quanto tempo? Sorri forçado e senti o ar pesar sob nós naquele momento. Eu sabia quem era, só estava tentando ser irônica o suficiente. Draco e Narcisa não pareciam iguais ao pai e marido. Não eram pessoas facilmente manipuláveis, eram sarcásticas de fato, mas ao mesmo tempo, bons ouvintes em uma conversa paralela, onde um assunto sempre puxava a outro, nem sempre tão interessante, ou ao menos igual.

– Eu sei que é você. E não duvido que saiba quem sou.

– Meu pai não me deixa esquecer.

O tom de repulsa e tristeza que exalava de sua voz era notável, mas ainda sim me perguntei se sincero. O chá chegou, e o tilintar de porcelana a mesa denunciava isso. Virei-me e comecei a beberica-lo. Perfeito, como sempre. Estiquei um biscoito que acompanhava a bebida até a boca e senti o leite derretendo em minha língua. Era uma sensação sem igual e maravilhosamente incrível.

– Então Hermione, quantos anos?

Respirei um pouco temerosa, a segunda pessoa que me fazia a mesma pergunta. Aquilo deveria ser algo estranho, desconfiei no início, mas constatei que eram apenas números, de nada adiantava.

– Estou em um impasse, entre quinze e dezesseis. Não sei ao certo se quero encarar essa nova fase, parece algo exaustivo.

– Dezesseis então?

– Hoje é meu aniversário, então, dirija-se como bem entender.

Senti o gosto de ébano invadindo minha boca. Gosto esse que eu não fazia ideia de onde vinha e de como era bom. Desviei meus olhos dos seus por alguns minutos, voltando minha atenção ao chá, que por algum motivo não encontrava-se tão apetitoso quanto antes.

– Corre rumores de que sua mãe costura divinamente bem, devo acreditar?

Sorrio. Ele sabia que eu queria mudar de assunto, mas não achava que criar um outro totalmente diferente fosse de certo ajudar em algo. A conversa tomava proporções estranhas. E mesmo assim não me escusei de responder suas indagações.

– Minha mãe é aquele tipo de pessoa que procura fazer tudo da melhor forma possível. Creio que costurar seja um dom, e esse ela tem.

Senti as maçãs de meu rosto rosarem em vergonha, nunca tinha falado de minha mãe assim para alguém antes, creio eu que fosse a primeira vez. O tom de melancolia que se estendia porta a fora me lembrava as pessoas drogadas e bêbadas, jogadas muitas vezes de qualquer jeito pelas calçadas da cidade, passando fome e frio. O chá já não era quente, o que fazia seu gosto tornar-se doce demais. Fitava meu rosto sob o capuz no pouco líquido que se alastrava no fundo da xícara. A carranca que se formava a cima de meus olhos parecia-me muito minha mãe. Desfaço-a, minha expressão suaviza fazendo-me esboçar um sorriso tímido e fraco.

– O que faz aqui?

Pergunto por fim, antes mesmo que ele a ignore, deixando-a no ar, ou simplesmente sem resposta alguma. Porém, pareceu-me justo uma pergunta dentro todas que ele me fez.

– Devia ter ido acompanhar minha mãe, mas não me pareceu propício. Acabei por entrar e tomar um chá. Frio e chá combinam extremamente bem.

Gargalho. A forma como ele falava, as palavras que usavam, o leve, mas ainda sim acentuado sotaque britânico, faziam cócegas em meus ouvidos. Fitei o relógio de plástico à cima de uma estante recheada das mais diversas bebidas alcóolicas. Relativamente cedo, mas eu não precisava ficar aqui, jogando conversa fora, com alguém do qual eu mal conhecia.

– Tenho que ir.

Meu tom de voz não devia ter transparecido tanta decepção. Mas as palavras jorravam tão depressa, que concertá-las seria um tanto errado e estranho.

– Mesmo?

Indagação era a única coisa presente, mesclada ao quê de pergunta e a rouquidão acentuada de sua voz devido ao constante frio.

– Não

Relutei em dizer tais apalavras, porque de fato eu queria ficar. Até mesmo jogar conversa fora como fazia, mesmo que isso não fosse o certo, muito menos o que estaria a fazer se estivesse em aula, mas algo a mais fazia-me querer ficar. Perguntava-me se era a companhia aconchegante do lugar, ou simplesmente, ter alguém, além dos meus velhos amigos, a quem conversar.

– Que tal um passeio?

Fitei-o pelo canto do olho. A expressão divertida que tomava conta de seu rosto, denunciava que era apenas um passeio. Mas a recusa gritava muito mais alta em meu peito. Eu precisava voltar.

– Talvez outro dia.

Empurrei a cadeira para trás enquanto me levantava, descia o capuz, amarrava meu cabelo novamente, dessa vez de forma mais brusca impedindo-o de cair.

– Amanhã?

Relutei. Conversar com ele era algo bom, realmente reconfortante, mas aquilo estava indo longe e rápido demais, aliás, eu mal o conhecia.

– Obrigada pela chá, mesmo. Até qualquer hora Draco.

Sai do estabelecimento ainda com seu sorriso rondando minha cabeça. Não tinha dado esperanças, mas também não as tinha apagado por completo. As mãos, ainda quentes por conta da bebida, fechavam-se em um punho por debaixo do meu casaco, como se naquele gesto todas as mágoas e preocupações desaparecessem. Como se somente dois membros tivessem capacidade de aquecerem meu corpo por completo. Sorri. O gosto de hortelã ainda estava explícito em minha língua, misturando-se ao aroma de neve que caía com mais intensidade naquele momento.

Passei próximo a um parque, as crianças brincavam, as demais sorriam, alegres e os bonecos de neve nunca ficavam prontos. Muitos desmanchavam-se por estarem colocados de forma errada, a maioria, ficava por fazer. O céu, antes iluminado pelos poucos raios de sol, agora encontravam-se escuros, exceto pelo leve brilho da lua sobre a neve fina que caía e os postes com uma luz fraca lambendo a face de várias pessoas que por ali passava. O casaco antes preto, cedia espaço a alguns poucos flocos esbranquiçados, o frio deixava minha boca com um leve tom arroxeado.

– Gosta de neve?

As batidas antes ritmadas de meu coração aceleraram-se em descompasso. As mãos antes quentes, tornavam-se gélidas e endureceram. O rosto antes neutro, dava lugar a feições preocupadas. Porém, o aroma doce, cálido e fresco de cereja, espalhava-se pelo ar, deixando-me em muito a desejar que aquilo fosse um possível assalto, ou na pior das hipóteses, sequestro.

– Você não precisa chegar assustando as pessoas, muitas dela tem corações fracos.

Sorri. Abaixei a cabeça, sentindo seu corpo se movimentar esgueirando-se em meio as sombras e pondo-se ao meu lado. Pude perceber o quão alto, pálido, mas ainda sim charmoso, era. Um adolescente muito bonito de fato. A luz da lua refletia em seus cabelos platinados, os olhos cinzas pareciam duas tempestades formadas, prontas para serem despejadas. Os flocos que caíam em sua cabeça formavam um fino chapéu em torno dos fios amarelados. Mordi a parte interna de minha bochecha. As batidas de meu coração, antes descompassadas, em nada se acalmaram, sua presença só conseguia me deixar cada vez mais nervosa, procurei respostas, mas elas pareciam simplesmente sumirem, e não estarem ali, elas simplesmente desapareceram. Comei a duvida se tinha uma. De forma quase automática, sinto o gosto de hortelã invadir minha boca intensamente, fazendo-me lembrar do gosto doce e refrescante da bebida minutos atrás.

– Sei que você não é uma delas. Sinto isso.

– Só me viu uma vez, só conversamos por meia hora, não pode ter tanta informação assim. Talvez meu nome e minha idade, mas, somente isso.

Suas mãos escorregaram para os bolsos em fendas de sua calça. Os olhos fitaram algo ao longe, algo esse identificável e inda sim imperceptível por mim. Sua pele alva contrastava ao leve chapéu de neve branca que se formava ao redor de sua cabeça. Os olhos opacos e sem brilho, que antes eram entusiasmados deixaram o horizonte e passaram a fitar os próprios pés.

– Você realmente não vai me deixar em paz enquanto não tiver esse passeio não é mesmo?

– Você me prometeu um passeio, somente costumo cobrar o que as pessoas me prometem.

As mãos apertavam com mais força a barra do casaco que moldavam-se a mim com perfeição. Pensava, talvez não fosse de todo ruim. Um passeio aquela hora parecia muito convidativo. Foquei em sua face. Os olhos faiscaram esperanças, eu as tinha dado e esqueci de apaga-las, agora precisava cumprir minhas palavras, aliás eu era honesta, eu honrava o que prometi, e com ele não ia ser diferente. Suspirei de forma pesada, parando a frente de um parque. As crianças ainda corriam, a maioria de suas bochechas eram vermelhas por conta do frio mesclado ao suor. Pude sentir e ver os anjos de neve sendo desenhados ao chão. Os olhos distantes de Draco focaram-se aos meus, perguntei-me se ele já tinha feito isso antes, digo, deitado em um chão fofo de flocos de neve e rolado dando forma a anjos. Provável que não. Senti pena, e quase que no mesmo instante, agarrei, sem pensar, sua mão empurrando-o em direção ao parque, a uma ala um pouco mais afastada de todas as crianças e adultos.

– Você já fez isso antes?

– Eu não tinha tempo.

Mentira. Algo em seus ilhós cinzentos denunciavam que os pais nunca tiveram tempo, ele era comente uma vítima de tudo aquilo. Sorri, talvez pudesse ensiná-lo, não era tão difícil assim afinal.

– Quer tentar?

Aponto para o chão e inclino a cabeça como se fosse beijá-lo. Na verdade aquilo tudo era um esforço para deitá-lo a fofa neve.

– Isso é coisa de criança.

Disse isso enquanto sua cabeça encostava os flocos brancos depostos no chão, deito-me ao seu lado, passando os dedos no pouco espaço que tínhamos entre nós.

– Você não teve infância. Não sabe o que é.

Senti sua expressão pesar, ruborizar-se e ficando ao máximo tensa de preocupação como se aquele assunto pesasse, fosse uma gota de água que não devia ser caído em hipótese alguma. Uma carranca formava-se na base de seus olhos, deixando-o um tanto quanto engraçado. A situação não era cômica, mas fazia ser. Suas atitudes me lembravam muito crianças mimadas, birrentas, que gritavam tudo para a mãe e arrependiam-se depois. Perguntei-me quantas vezes ele fez isso, e nenhuma seria a possível resposta, se a pergunta fizesse jus, ou simplesmente, fosse feita.

– Acho que não devia ter ficado calada. Desculpa, não pretendia dizer isso.

Sua coluna endireitou-se sentando e não mais esfregando as mãos na neve em sentido igualitário aos pés. Suas mãos estavam cruzadas por cima dos joelhos curvado e a cabeça pendendo para frente deixavam com um ar misterioso e irônico. Talvez o assunto tenho o machucado. Fui absurdamente tola em tocá-lo. Levantei-me. Senti os fios castanhos descendo minhas costas. Relutei por alguns segundos em tocar-lhe o corpo indo e vindo diversas as vezes, com a mão, por fim, senti a magnitude de seu braço: forte e definido pelo que me pareceram anos e anos de treino, mas treino de que?

– Eu sinto... Desculpa, acho que vou embora.

Limpei a neve que grudara em alguns pontos de minha calça e pus-me a andar, sendo parada logo em seguida pela voz que me fez marejar os olhos. Ouvi tudo com atenção, aliás, isso era a única coisa da qual ele clamava aos pais, um pouco de atenção.

– De fato, meu pai nunca ligou para mim. Para o que eu fui, sou ou para o que serei.

As palavras carregavam um tom de lamúrias disfarçadas a lamentos muito grandes.

– Ele de fato nunca me levou a um parque sequer. Eu nunca deitei em uma neve e rolei, formando anjos, muito menos rolei bolas e bolas de neve colocando umas em cima das outras e construindo bonecos de neve. Você tem razão, eu não tive infância.

As lágrimas temiam rolar por minhas bochechas, os olhos cheios denunciavam queda. Deixei. Para que conter. Segui a passos frios, duros e lentos até em casa, sendo domada pela decepção, perguntando-me por diversas as veze o que levava um pai deixar o filho sem infância, arrancar-lhe aquilo mais precioso. Draco só clamava por atenção. Tê-lo deixado ali pareceu errado, mas eu não conseguia olhá-lo. Seus orbes pareciam pesados demais. Dessa vez eu seguia sozinha, ninguém estava atrás de mim, sussurrando em meu ouvido fazendo-me palpitar. Preferi assim, eu e meus passos.

Subi as escada ainda correndo, afundei-me em mágoas, tranquei a porta e chorei no travesseiro. Ignorando as batidas e perguntas insistentes d e minha mãe, eu só queria esquecer. Adormeci banhada em sal.

Os dias seguiram-se como todos os outros, as tardes saia, ele pagava-me um chá, conversávamos, íamos ao parque e o assunto que a tempos pesava foi esquecido. Machucava não só a ele, como a mim mesma. Hoje era somente mais um dia de férias, que se seguiriam como todos os outros, de forma programada, quase como um cronograma.

Fitava a bebida fumegante a minha frente, a cor marrom denunciava ser de canela, um dos meus preferidos. Mas sua presença aquele dia era tão vaga, que pagar um chá a mim, deixou de ser costumeiro e divertido a uma obrigação. Não era exatamente isso que pretendia. Tínhamos nos encontrado tanto que descobrimos muitas coisas um dos outro. Fiquei a me perguntar como contaria isso aos meus filhos, quer dizer, que conheci alguém em uma casa de chá. Clichê e ao mesmo tempo romântico.

Aliás, romantismo era algo muito frequente entra nós naquele curto espaço de tempo. A porcelana arranhava a xícara causando-me aversão. Engoli a bebida que desceu queimando por minha garganta. e virei em direção ao seu rosto que naquele momento fitava a janela com ar preocupado. Escusei-me em perguntar o que passava em sua cabeça. Fiquei apenas a fita-lo olhando para o nada como se aquilo o acalmasse. Formei um sorriso. A carranca que aparecia à cima de seus olhos era costumeira quando ficava preocupado ou com raiva.

Passei a mão entre os fios loiros de sua cabeça fazendo-lhe um leve cafuné. Percebi seus olhos pousarem em meu colo, junto a uma pulseira de prata que tinha, essa que tentava de maneira frustrada consertar.

– Sem resultado?

Balancei de forma negativa a cabeça. Ele sabia melhor que ninguém, que quando enfiava algo na cabeça, nem mesmo Deus seria capaz de retirar. Fitei seus olhos que ao meu ver pareciam melancólicos demais. Parei meus dedos entre os fios de seus cabelos fazendo-o virar e encarar-me de forma estranha.

– O que você tem?

O silêncio foi minha resposta. Ele então, pega a pulseira do meu colo e guarda dentro do bolso. Não sabia ao certo se como lembrança, ou simplesmente para eu consertasse mais tarde.

– Poso ficar com ela? Como uma lembrança?

Assentia ainda sorrindo. Aquilo deveria ser apenas mais um dia como todos os outros que passávamos juntos, sentados em uma mesa de chá rodeada de pessoas, depois íamos ao parque, víamos as crianças e suas bochechas vermelhas por êxtase. A nota era arrastada por cima do balcão. Soube naquele exato momento que a hora de voltar ao parque chegara. Levanto-me, visto o casado e sinto minha mão se moldar perfeitamente a sua entrelaçando-as. Eu não sabia muito bem o que estávamos tendo e nem fazia questão em perguntar. A verdade era que: sua resposta, poderia contradizer o que eu realmente pensava e o silencio ainda eram os vilões mais próximos a mim.

Seguimos quase que todos o caminho em silêncio, sendo quebrado apenas pelo barulho de um galho se partindo a baixo de um de nós, ou o voo raso de um pássaro. Sentamos em um mesmo galho de árvore, forte o suficiente para aguentar o peso de nós dois sem ruir. Não desgrudamos as mãos nem por dois segundos, elas necessitavam ficar unidas, pelo menos eu necessitava disso. Meu coração palpitava com mais força.

Os galhos nus de folhas, revestidos apenas por uma leve camada de neve faziam a ocasião ser propícia a uma foto, mas a câmera não estava ali, aquele momento ficaria guardado apenas na memória, como breves lembranças.

– Como se sente?

– Inquebrável.

A resposta soou um tanto quanto esquisita a seus ouvidos, mas era exatamente assim que me sentia ao seu lado, forte o suficiente para enfrentar qualquer coisa. Os dedos que brincavam em sua nuca eram meus, quentes e possessivos. Senti os pelos de seu pescoço eriçarem-se e uma risada rouca ser reprimida pela sua boca.

– Todos tem pontos fracos Draco, e eu descobri o seu.

Ele me fita por alguns instantes.

– Então deve ser a minha vez de descobrir o seu.

Eu esperava tudo: cócegas, beliscões, sussurros ao pé do ouvido que arrepiassem os pelos de meu braço, mas um beijo nunca em hipótese alguma passara pela minha cabeça. Saborear os lábios de folhas de cerejeira dele, era uma sensação única. O beijo sessava pela falta de oxigênio então nós, separando-me e senti arfar em minha nuca. Ele realmente sabia meus pontos fracos, assim como eu sabia os dele.

– Posso dizer que te amo.

Sempre pensei no que responder a alguém quando ela me dissesse algo do gênero, mas nunca esperei que fosse tão rápido, muito menos que o momento fosse propício a isso. A dúvida mesclava-se a incerteza. Eu tinha uma chance e não sabia se usaria, ou simplesmente deixaria o vento leva-la, dando tchau ao que me parecia ser perfeito. Agarrai-a. Ainda achando que tudo era muito errado.

– Posso confirmar que meu amor por você é retribuído.

Consegui sentir um sorriso sendo formado em seus lábios. Eles colaram-se aos meus novamente, de um jeito único e até então especial. Demorado, adocicado, com pitadas amargas de ébano. Agora eu sabia de onde aquele gosto forte e entorpecente vinha. Era de seu hálito, de sua boca que combinava com perfeição aminha. A sensação era boa.

– Não posso prometer o que ninguém jamais vai cumprir. Não posso afirmar que serei seu para sempre. O futuro é tão incerto.

Não sabia exatamente de onde aquelas palavras surgiram. Elas somente foram fundidas ao meu desespero de nunca mais tê-lo ao meu lado. Passou-se à tarde e finalmente à noite chegara. Muitas as vezes passávamos curtos períodos de tempo juntos, mas nunca chegamos a ficar um dia inteiro. A escuridão denunciava o quão tarde devia ser. Pensei melhor e decidi ir para casa. Sua mão que se moldava a minha, temia em soltar e a preocupação antes escassa, daqueles olhos de ressaca, voltavam a tona no momento em que pronunciei que precisava voltar para casa. De início não entendi, mas logo depois eu comecei a perceber que não era especial, que era apenas mais uma menina de uma lista enorme, que eu era apenas um número dentre tantos outros ali escritos.

– Nos vemos amanhã?

Perguntei relutante e aparentemente temerosa.

– O amanhã é sempre incerto.

A frase foi suficiente para colocar a prova tudo que pensei. Depositando um leve beijo em meus lábios ele se foi. Aquela frase ainda parafraseava em minha cabeça. Tudo girava em torno de um não mais delicado. Ele estava tentando, por todo aquele tempo, dizer que eu não seria dele por muito mais tempo. E eu continuei tola.

Subi as escadas e entrei em casa, correndo em direção ao meu quarto, deixando as lágrimas rolarem. Quem ele pensa que é? Para me tirar o ar, tornando-se impossível respirar?

Oito anos mais tarde...

A cabeleira ruiva que corria pela casa deixando um leve rastro de jasmim, os olhos perolados de Rose, fitaram-se a mim por alguns segundos. Só sete anos e uma inteligência assustadora. Peguei-lhe a mão e guiei-lhe até meu quarto. Arthur e Helena brincavam com alguns blocos de construir. Aproveitei para retirar meu casaco do cabide enrolando-o em minhas mãos. Prendi os cabelos em um coque mal feito que se desmancharia dali alguns segundos.

– Vai sair mamãe.

– Sim meu amor. Vou tomar um chá e volto logo. Se precisarem de alguma coisa, seja o que for, chamem o papai. Tomem cuidado e Helena, nada de implicâncias. Ronald vou sair, volto logo.

Sem resposta, deve esta dormindo.

Percorri algumas poucas esquinas parando defronte a uma casa de chá já conhecida por mim. Entrei e encontrei o sorriso que achei nunca mais ver. Blás passava algo na velha bancada enquanto convidava-me para sentar.

– Faz tempo que não vem por aqui.

Blás tentava uma conversa comigo, enquanto molhava poucas vezes a boca contra a bebida que devia ser doce, mas amargava em contato a minha língua. O álcool que exalava do pano úmido passando entre o balcão exercia um cheiro forte e não ajudava em nada a ingerir o líquido quente a frente.

– Não queria lembrar coisas desnecessárias.

– Achava que ele iria pagar chá a vida toda para você?

Sorrio amarga. Ele tinha razão, quer dizer, eu sabia que não tinha como durar. A última vez que nos vimos ainda deixavam marcas e feridas não cicatrizadas. E talvez jamais fechadas. O biscoito de leite não parecia tão saboroso como das outras vezes.

– Ele não aparece com tanta frequência, não sei ainda se está na cidade.

Blás soltava palavras que machucavam-me muito, mas preferia assim, alguém sincero, a falso. O tom reverberava ainda calmo por minhas órbitas. causando-me sensações que deviam ter sido esquecidas. Ouço algo tilintar o chão, não com força, mas alto o suficiente para que eu pudesse ouvi-lo. Por impulso, viro o rosto a pessoa que tinha deixado escorregar algo do bolso. Um homem. Não reparei nele quando cheguei, aliás, já não reparava tanto nas pessoas, como elas se vestia, muito menos onde estavam, isso parecia insignificante para mim, porém, não precisei. Aquela imagem me fez ter certeza de algo do qual eu já tinha perdido todas as esperanças.

Uma pulseira de prata saltara do bolso de sua calça ao encontro do chão. Minhas pernas bambearam e fraquejaram ao mesmo tempo, o prata contrastava com o piso de madeira polida do estabelecimento. O pingente de lua com a inicial "H" estava esparramada pelo chão corrido. Meu coração acelerou, a respiração tornara-se falha por diversas as vezes, minha voz tinha saído trêmula e pausada por puro nervosismo.


– Essa...Essa pulseira é minha.

Senti o tremor percorrer minha espinha de uma ponta a outra, senti o calor emanando do ambiente em direção as minhas bochechas, vermelhas, como sempre que eu o via, como sempre que ficávamos juntos. Um chá envolvia meus dedos aquecendo-os. A peça de prata continuava no chão, nenhum dos dois se deu o trabalho de apanhar, quebrada como sempre foi, de princípio eu nunca entendi o porque de guardar uma coisa sem utilidades, sem uso. Naquele momento, seu corpo voltou-se a mim, e meu coração saiu de orbita, eu senti os batimentos descompassados contra a blusa de lã que vestia, eu sentia a adrenalina e a vontade de beija-lo invadindo a mim mesma. Os olhos eram opacos dessa vez, eles me fitavam sem brilho, não tinha mais carranca, porém sua expressão ainda conseguia ser de preocupação. Olhava a janela como se precisasse fita-la a cada minutos a cada hora, a pontada de dor invadia meu peito com intensidade, força desnecessária, aliás, não tínhamos mais nada, e muito duvidava de que algum dia tivéssemos algo. Aquele último beijo ainda tinha sabor de cereja, ele ainda voltava aos meus lábios nas noites escuras e frias, eu ainda sentia o calor de deles sobre os meus, o tremor que invadia todo o meu ser quando meus olhos se fechavam e eu imaginava algo perfeito, algo que não existiria, algo para nós dois.

Desviei seus olhos dos meus, eles não eram violentos e não me deixavam nada a desejar, não me faziam questionar, eu era simplesmente a menina indefesa que sempre fui. Aqueles contos clichês, onde a pobre se apaixona pelo rico vivem um romance conturbado só existiam em livros, a maioria em contos de fada, mas esses eram princesas e príncipes montados em cavalos brancos, eles tinham finais feliz, mas eu não. Não me comparava a uma gata borralheira porque pelo menos ela tinha por quem se apaixonar, por quem se arriscar, e eu? Tentaria a sorte para o nada? Meus lábios se retesavam e impediam minha fala, as mãos, gélidas e quebradiças, encaixavam-se perfeitamente bem a xícara de porcelana a minha frente, o calor da bebida era reconfortante, mesmo sabendo do gelo que o olho possuía. Estendi a nota na sua direção, mas a voz ecoando ao longe me fez hesitar, eu deveria recusar, e era exatamente isso que faria.

– Deixe que eu pago.

– Não, eu pago.

Sem questionamentos. Eu deveria ter agido assim desde o princípio, deixa-lo se aproximar foi uma das piores coisas que poderia ter acontecido. Ele sabia muito agora, sabia mais do que o suficiente, tinha conhecimento de coisas que nem eu mesma lembrava sobre mim. Ele sabia que eu era extremamente quebradiça. Mas ele não se importou não é mesmo? Ele me jogou no chão, pisou em cima, estraçalhou a porcelana que para ele era considerada a mais cara, que para ele era considerada a mais delicada. Draco nunca se importou com sentimentos, porque ele nunca os teve. Eu, porém, fui igualmente idiota, acreditando em suas palavras, sorrindo sempre que o via caminhar na minha direção, respirando de forma fraca cada vez que seu sotaque invadia meus ouvidos surrando-os de forma inusitada, eu me entreguei sem medir consequências e sofria por isso.

– Muita coisa mudou não é mesmo?

Eu sabia que ele se referia ao meu modo de agira, de recusar e esgueirar-me de seus encantos, era preciso, depois que ele se foi, as coisas nunca melhoraram, elas nunca voltaram ao normal, tudo só piorou, regrediu, meus pais morreram em um acidente com um três cargueiro, eu perdi as duas pessoas mais importantes da minha vida, não valia apena lutar por uma que em nada importava, que só me machucou pelo curto período de tempo que me conheceu, agia como se eu fosse colecionável. Sofri por isso, muito. Em nenhum momento ele se questionou, por nenhum segundo se perguntou a quem estava machucando. Eu não liguei, ele nunca repararia nas minhas lágrimas, eles nunca as enxugariam por puro cavalheirismo, não, Draco conseguia ser mais impiedoso do que isso, no entanto, minha fala não saiu, as palavras ficaram engasgadas até metade de minha garganta, o estado de inquietação era grande, eu queria cuspir aa verdade no seu rosto, fazer ele sofrer o que eu sofri, mesmo achando que isso não fosse possível, mesmo me questionando.

– Não fui a única, isso eu posso ter certeza.

A pulseira rodava por seus dedos de forma delicada, da mesma forma que alisavam minhas bochechas quando essas se mostravam vermelhas de vergonha, frio, ou simplesmente raiva. Elas passavam pelos meus lábios, alisava-os quando estavam roxos e gélidos, seus dedos percorreram cada extensão do meu corpo por diversas as vezes, eles conheciam cada milímetro de minha pele melhor do que qualquer outra pessoa, mas toda aquela magia tinha sido jogada fora anos atrás porque ela não foi cultivada, ela não cresceu, a semente não germinou nem um milímetro se quer, foi um namoro bom de fato, mas nenhum pouco proveitoso. Seu sorriso ainda circulava em minha cabeça por horas e horas antes de dormir, seus lábios só colavam-se aos meus em sonhos, seus abraços só me eram dados em nuvens de pensamento e eu só me via envolta neles, quando realmente era necessário.

– Me culpa por a ter deixado, mas não sabe o quão difícil foi. Rose não lhe entregou as cartas? Não lhe mostrou o colar?

Fiquei confusa, eu não fazia menção do que estava falando, minha cabeça girava a mil pelo encontro inusitado. Eu não tinha conhecimento de cartas alguma, de colar algum, e preferi assim, quantas ao todo ele deve ter mandado, quantos papéis deve ter escrito, quantos esclarecimento deve ter me mandado e eu simplesmente não liguei, eu não abri, eu não risquei, rasguei, guardei, usei, eu não tinha nem conhecimento de tais envelopes envoltos em profundos e demasiadamente grandes sentimentos. Eu não li, não saboreei, não revivi momentos porque nem se quer os tive, eu não precisava de mais letras inundadas em amarguras. Perguntava a mim mesmo o que levava Rose a esconder coisas de mim, ela nunca tinha feito nada parecido, ela sempre me contava, me dava coisas destinadas a mim, aquilo não era iniciativa dela, nunca foi.

De repente senti uma necessidade, uma vontade sem igual de lê-las, de ver as explicações, ainda que plausíveis sobre o porque de sua deixa, eu precisava de algo reconfortante e por mais que suas palavras, ali, ao vivo e em cores, fossem esse reconforto, no momento só me traziam lembranças amargas, como o chá de ervas que tomara um dia para esquecer tudo a contragosto, preferi ler, observar suas palavras em uma folha possivelmente amarelada de papel, eu preferi lembrar do passado, por mais que esse me machucasse, por mais que esse não fosse cabível. Estendi novamente a nota em direção a Blás, que limpava os copos de costas a nós, mas que ouvia toda a conversa sem querer.

– Saiba que eu nunca quis isso. Quero voltar a ver-te mas fiquei com medo. Não sabia como reagiria, não sabia como seu marido reagiria.

Senti meu pulso sendo agarrado pela suas mãos, que por minutos me pareceram ser a coisa mais certa a fazer, deitar junto dele para nunca mais sair, porém aquela decisão não era a mais sensata, não quando se tem uma vida pela frente, um marido e três filhos para cuidar. Não relutei em sair de seu aperto porque não me machucava, não fisicamente, colocava-me a prova de meus próprios sentimentos de certo, mas eu precisava lutar contra eles, como lutei contra todas aquelas cicatrizes durante oito anos.

– Talvez você devesse continuar mantendo distância, talvez seja melhor para nós dois.

– É o que quer?

Lutei em dizer não, eu não queria, queria tê-lo ali, comigo até quando me fosse propício, queria poder abraça-lo, beijá-lo, ama-lo para sempre, mas as coisas nunca rodavam do jeito que queríamos e como ele mesmo disse: o amanhã é sempre incerto.

– Uma vez me disseram que o amanhã era incerto. E eu acreditei.

Saí a passos firmes do estabelecimento, jogando o casaco por cima de mim, como de se esperado, ele não me seguiu, aliás, sua presença passara a ser bem escassa durante aqueles oito anos. Pelo pouco tempo que estivemos juntos, pude perceber as olheiras acentuadas que tinha por baixo dos olhos um pouco mais profundas e cansadas, a barba rala que se formava na lateral do rosto continuava pelo seu queixo e tinha um tom amarelo por conta do platinado dos cabelos. Os orbes cinzas opacos. Isso foi o que me chamou mais a atenção, opacos, não brilhosos, não com vida, mortos e sem sentido algum, como se esperasse por uma recusa a muito tempo. O sol era escaldante ao mesmo tempo frio, como um impasse constante. Senti os raios banharem em ouro meu cabelo. O arco que prendia os fios rebeldes, caiam por cima de meus olhos, as mãos que prensavam o casaco eram moles e sem vida. A aliança dourada na mão esquerda perdera todo e qualquer sentido que um dia teve.

Subia as escadas de forma apressada e vaguei quarto a dentro. Rose não eram tão esperta em esconder coisas, revirei gaveta por gaveta, mas elas não estavam lá, mexi em todas as caixas de sapato e retirei até mesmo o colchão para ter uma visão melhor. Mas nada, nenhum vestígio de envelopes, muito menos colares.

– Procurando por isso?

Virei-me. Ronald encontrava-se parado ao pé da porta. Um pacote extremamente grande de envelope em uma das mãos e um cola de coração que possivelmente abria e continha a foto de nós dois ali dentro, mas em qual momento? Desesperada corri em sua direção, mas a única coisa que recebi foi um empurrão contra a parede, o quarto era fechado o que diminuía ainda mais minha capacidade de fuga. Ele balançava de forma sarcástica mesclando ironia os envelopes amarelados em meus olhos, girava com velocidade o colar e atirava-o em minha direção.

– É isso que você interpreta como mulher fiel?

Suspirei.

– Isso foi a anos atrás, ele não importa mais, foi tudo fase, passado, nunca deveria ter acontecido. E essas cartas nunca deveriam ter chegado. Aliás, ela nunca deveriam ser lidas, mas você as fez não é mesmo?

Gritei acusadora, pois eu sabia que Rony tinha lindo uma a uma.

– Li, reli e ainda pensei em rasgar cada pedacinho amarelado no papel, mas essa me chamou muito a atenção, aliás, que menino ousado não é mesmo? Quantas vezes vocês foram para cama em Hermione?

A palma de minha mão esquerda queimava em agonia. Eu tinha lhe desferido o tapa mais certeiro de toda a minha vida, o lado esquerdo de seu rosto latejava e eu sentia isso. Peguei as cartas de sua mão com brutalidade, e segui até o lugar mais calma e tranquilo e ainda sim mais próximo possível. Optei pela árvore que já não pertencia mais ao parque e sim a nós dois. Sentei em um dos galhos e me pus a ler todos os papeis aparentemente velhos. Porém, uma frase me chamou a atenção.

"E se eu fosse dono do mundo, e se existissem leis capazes de me fazerem respirar, eu escolheria respirar você, meu mais viciante perfume."

Aquela era a prova da qual eu precisava. Ele não tinha me deixado de propósito, em diversas cartas, antes dessa, eu pude ter certeza, ele me amava e o propósito de ter me deixado, era somente pelo seu pai, em suas palavras, nas mais escassas e apressadas possíveis, eu senti a angustia e a melancolia tomando conta de todo o seu corpo enquanto escrevia aquelas palavras, deveria ser difícil relatar tudo no papel, eu não entendia, aliás, eu nunca tinha lido aquelas cartas antes, eu não tinha conhecimento do quão sofrida era a sua vida, do quanto era angustiante e amarga, como o ébano que se esvaia de sua boca e queimava meus olhos em contato ao perfume quente que usava. De imediato, sem pensar duas vezes, peguei o celular e digitei o número que decorara por pretexto, alguma hora aquilo me seria útil e esse dia, esse momento tinha chegado. Não tinha noção de quanto tempo passei sentada ali lendo palavras tão sinceras, mas me parecera muito, se contar as estrelas salpicadas no céu noturno. Caixa postal. Vamos, só mais uma vez, vamos, atenda. Como fui burra.

– Alô?

A voz soava rouca ao outro lado da linha e onde quer que estivesse, tudo parecia oco e com um silencio crucial.

– Oi, é a Hermione. Draco onde você está? Como fui estúpida, você não teve culpa de nada e eu joguei tudo em você como se ter me deixado tivesse sido uma opção quando na verdade não foi.

– Você leu as cartas? Sabe agora que nunca te deixaria princesa? Você era a boneca mais frágil que tinha, eu não lhe abandonaria nas mãos de outro que não sabia lhe tratar tão bem, com cuidado.

Minhas bochechas assumiram um leve tom escarlate e senti que dois chicotes foram soltos perto demais delas. Ainda bem que toda aquela conversa era por telefone e não pessoalmente. O barulho de borracha roçando o chão tornara-se alto o suficiente, estridente o suficiente.

– Eu não tenho mais volta Hermione. Lhe dei um prazo para me procurar porque ele me foi pedido. Você devia ter me procurado antes, ter lutado por esse amor como eu lutei, mas você fez pouco.

– Eu não sabia das cartas, minha filha as escondeu em ordens do meu marido. Eu sinto muito. Onde está? Eu preciso te ver, eu preciso ter você comigo novamente Draco.

O silencio que se seguia tinha um toque mortal, por fim, sua voz rouca e penosa alastrou-se em meus ouvidos, mas a resposta só me tirou ainda mais o chão.

– Construir a minha vida ao lado da mulher que nunca me fara tão feliz quanto você. Miami, é aqui que estou. Deixei as parede insólitas da grande Londres e rumei a outro país, desculpe Hermione, mas, eu tive minhas chances e ambos desperdiçamos.

Agora eu entendia o que ele queria dizer com: o amanhã é sempre incerto. Tivemos nos oportunidades, mas elas simplesmente foram jogadas pelo ar, por ele, por mim, por nós. Eu me sentia tão frágil a ponto de cair daquela árvore e me quebrar, em pequenos pedaços em pequenas fissuras, descia com cuidado e caminhava até um lado próximo ali. O telefone fora desligado, parecia mais propício para o que iria fazer, não queria mais ouvi-lo, muito menos vê-lo, ele estava com outra, e eu a única errada em tudo isso fui eu, que agi por precipitação. A única lembrança que tinha agora seria desmanchada e reduzida a tinta. Jogava na água daquele lago as folhas uma por uma, como se assim acalmasse muito mais a fera que lutava dentro de mim para ser domada. Eu não tinha mais lembranças e achei que a dor passaria um dia, mas ela se seguiu até o momento em que sete palmos de terra foram escavados e acomodaram-me em um caixão de mogno, eu tinha morrido.

Cinco anos depois.

O lago era translúcido o suficiente. Conseguia ver o seu fundo, algo me chamou a atenção, mais do que realmente deveria chamar. Eu era nova na cidade, mas aquilo, eu nunca tinha visto uma folha não se solver em água. Mergulhei minha mão e tateei a matéria, aquela única frase foi plastificada, a pessoa da qual jogava não devia ter se dado conta. Entre aqueles, tinham mais alguns papeis, esses desbotados e manchados de tinta, quem quer que tivesse tentado apagar lembranças esqueceu de que elas nunca seriam apagadas, que elas se seguiam até o fim, ecoavam pela sua cabeça mesmo depois da morte.

– Draco, venha aqui, olhe o que achei.

O homem de olhos cinzas lê a frase que me faz marejar.

– E dentre todas as tintas e pincéis, você era a obra mais perfeita.

A frase de um apaixonado a uma possível amante. Retirei a frase de suas mãos e devolvi ao lago, quem quer que a tivesse jogado ali queria se certificar de que continuasse esquecida, eu o fiz.

– Astoria, não acho que deva mexer nas coisas dos outros.

– Não mexi, apenas me aventurei. Não vê? Era uma prova de amor, plastificada para dizer que nem o tempo, nem o vento nem a água seriam capazes de sumir com algo tão concreto quanto o sentimento daquele rapaz ou daquela moça. Achei linda sua atitude, mas não acho que a pessoa deva ter jogado fora algo tão bonito.

– Talvez ela tenha motivos para o fazer

– Fala como se a conhecesse Draco.

– Besteira, certas pessoas só dão valor as outras quando as perdem.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

:) espero que tenham gostado