Glory and Gore escrita por Iggy Nord


Capítulo 1
I. Platinum


Notas iniciais do capítulo

Olá, possíveis leitores! Aqui está a "repostagem" de Descendents. Como ´prometido.Espero não decepcionar vocês dizendo isso, mas o enredo mudou quase que completamente. Só digo que esse ainda é o Projecto Descendents pois manti vários dos acontecimentos programados e também o esquema de clãs baseado nos Ancients que criaram os países que conhecemos hoje (ex Germania, Grandpa Rome, Scandia).Vou explicar sobre protagonistas no prox capítulo.Resolvi começar pelo Swiss porque... Bem, achei que ele era a personagem perfeita para este comecinho da história. Sinceras desculpas caso ele esteja meio boiola (?)Outro motivo -> Vi umas fanarts lindas do Basch de armadura medieval e apaixonei-me! ♥ (não que isso seja importante q)Vejo o nome do Suíça ora grafado como Basch, ora como Vash. Optei pela grafia Basch pois a acho mais bonita.E para a leitora Garota dos Is, caso ela leia G&G: espero que goste de Glory and Gore. Sinto muito pelo que aconteceu com Descendents. Feliz Natal (atrasadinho) para você também ♥



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Episódio 1 - Platinum

O jovem loiro olhou com desgosto para cima, para ler a placa da taverna. Pelo barulho, lá dentro parecia estar bem cheio, e ele odiava lugares como bares principalmente quando estavam cheios e os causadores da superlotação eram bêbados em sua maioria. Bêbados provocavam estardalhaço e jogavam cerveja para todas as direções.

A placa indicava que o nome da taverna era Gato Manco. Também indicava que que não havia volta para ele...

Já que Gato Manco era a única taverna que vendia a torta que Lilly tanto amava.

Basch deu um passo a frente e as portas abriram, fazendo com que os olhares de todos se voltassem para ele. Houve um arquejo grupal, como se o rapaz fosse uma aberração ou coisa parecida, e cochichos começaram a circular de mesa em mesa. Ele analisou-se, e constatou que não havia nada de anormal em si. Usava a capa verde por cima das roupas, e as calças cor de creme estavam enfiadas nas botas de fivela. A fiel aljava estava dependurada no ombro. Usara as flechas a pouco tempo; estivera no centro da cidade, se exibindo ao atirar em maçãs sobre cabeças de pessoas para ganhar uns trocados.

– Zwingli! - disse um sujeito que Basch mal conhecia, puxando conversa e uma cadeira para ele. Fechou a porta do bar depois que Zwingli passou, e então o estabelecimento escureceu novamente. As janelas do lugar eram todas opacas, dificultavam a entrada do sol. - Ouviu as notícias, certo? Tem ouro correndo pelas campinas.

O loiro franziu as sobrancelhas; sinal de que não prestara atenção e estava arquitetando um plano para se desvencilhar do sujeito que fedia a cerveja, comprar a torta para Lilly e cair fora daquela taverna imunda logo em seguida. Mas o carinha mostrou um sorriso amarelo, insistindo que Basch se sentasse. O que o garoto fez a contragosto. Ofereceram-lhe uma cerveja, que ele recusou.

– Olha, Wilhelm. Eu não vim aqui para bater papo. Tenho compromisso mais tarde. Hoje minha irmã faz aniversário, 16 anos, sabia? É uma data bem especial. Por favor, não atrapalha. Vocês têm aquela torta de morango?

– Deixa de ser maricas e escuta isso, seu Zwingli! Julchen estará isentando de impostos no próximo ano aquele que conseguir capturar uma corça especial que surgiu por essas bandas. Ela tem o pêlo dourado, é toda graciosa, e melhor, vale muito, né não? Por que você não tenta?

Basch levantou-se, empurrando a cadeira para trás e batendo as mãos na mesa.

– Wilhelm, eu... Quero... Comprar... Uma torta.

Wilhelm até recuara com medo, mas levantou-se e foi pegar a torta para Basch. Apesar de ser baixinho, aquele jovem era bem intimidador.

E ele, apesar de achar Wilhelm um idiota, ainda estava considerando aquela história da corça.

[xx]

Basch tinha apenas mais uma hora e meia de luz antes do crepúsculo. Mais uma hora e meia até que a escuridão consumisse a claridade; uma hora e meia para encontrar sua presa e abatê-la. Ele estava agachado detrás de um tufo de mato seco que conseguia ser mais alto que o resto das gramíneas, e se encontrava em estado silencioso e atento, como um assassino espreitando à espera de sua vítima - pensando bem, essa era a exata função do jovem Zwingli agora.

Executar uma corça e levá-la para a Rainha. Ele tinha absoluta certeza de que não falharia, era o melhor caçador e arqueiro daquelas bandas. Manuseava o arco e a flecha como ninguém. A margem de erro era mínima, tão mínima que quase não existia.

Apesar disso, odiava ter de matar um animal, não importando qual; e prometera para si mesmo que só cometeria tal ato quando esse ato se tornasse algo realmente proveitoso.

Agora era. Com aquela corça Basch pagaria seu imposto.

Vale ressaltar que o Zwingli era incrivelmente odiado pelos caçadores da cidade, que o invejavam por ele ser possuidor de tanto talento e inutilizá-lo por compaixão - compaixão adquirida graças a Lillian, assumida admiradora dos animais do bosque.

Qualquer movimento da relva poderia indicar a aproximação da caça, e ele estava atento para esses movimentos. A aljava estava bem abastecida de flechas e a corda já estava firme no arco. Os ouvidos do loiro estavam apurados, preparados para captar cada farfalhar da vegetação.

E então a corça estava lá, de um segundo para o outro. A grama estalou de leve. O ser farejou o ar com o focinho negro; sua pele realmente tinha belos tons de ouro, e brilhava sob os últimos raios solares. Basch coçou os olhos, mas era aquilo mesmo que ele estava vendo; a corça dourada. Tinha pernas finas como hastes, perfeitas para saltitar e fugir.

Encaixou uma flecha no arco e esperou o momento certo - o auge da distração do bichinho, que parecia tão indefeso ao olhar de um caçador deveras hábil como Basch... Esticou a corda e acertou o ângulo. O pescoço da corça estava na mira. Bastaria um movimento do jovem caçador para que o animal estivesse morto e o imposto, pago.

Basch largou a corda; a flecha zarpou e atingiu a corça tão rapidamente que a criatura sequer teve tempo de detectar a origem do zunido. O garoto comemorou silenciosamente e puxou uma faca do cinto. Era odioso ver a corça se debatendo, esperando a morte chegar; iria dar o golpe final e assim adiantaria o último suspiro daquele pobre ser que ele tivera de matar.

Saiu de seu esconderijo, acocorou-se ao lado da caça e já ia desferindo o golpe da misericórdia quando a corça rolou para o lado e pôs-se de pé. A flecha quebrou-se quando ela rolou; a ferida dela cicatrizou como se por um encanto. Ela ficou ali, de pé, encarando seu caçador com os olhinhos cor de mel brilhantes, como se estivesse propondo um pega-pega.

Basch arregalou os olhos. Mas era verdade o que ele acabara de presenciar? Certamente ele deveria ter tocado em algum cogumelo alucinógeno, pois magia não existia, e muito menos... Corças mágicas. Com certeza o animal apenas tinha resistido.

Não era uma presa muito fácil de capturar, mas Basch também não era alguém que desistia fácil.

– Ugh. - ele se levantou de um salto e, assim que pegou o arco das costas e encaixou uma flecha de sua aljava na corda, a corça desandou a correr para o lado oposto, cruzando a campina em direção ao... Bosque? Sem problema, Basch conhecia o bosque assim como conhecia a própria casa. Seria bem mais fácil encurralar a caça se ela se dirigisse ao bosque por conta própria.

Entretanto ele agora tinha apenas mais quarenta minutos de sol. O cair da noite era ainda mais perigoso para um humano embrenhado no Bosque. Sempre haviam boatos de algum cara que morria durante uma andança pelo Bosque, então ele preferia não arriscar demais.

Então pôs-se a seguir a corça. Tentou atirar ao mesmo tempo em que corria, mas era difícil demais encaixar a flecha e mirar sua presa quando ela e ele estavam ambos em pleno movimento. Mesmo com todo o talento que ele tinha, chegava a parecer impossível. Um cão de caça seria bem útil, pensou Basch ao desistir de usar as flechas por ora.

Na realidade aquela corça era um "adversário" localizado em um nível bem maior, mas a ficha de Basch ainda não caíra. Pelos cálculos dele, a corça iria cansar-se e cair por causa do ferimento no pescoço... O loiro ainda achava que a cicatrização fora um truque de uma substância alucinógena em sua mente.

Os dois adentraram o Bosque, e diminuíram o ritmo graças às velhas árvores, das quais tinham que desviar a toda hora. A luz do sol rareava mais a cada minuto passado ali. As copas das árvores ficavam cada vez mais juntas conforme Basch e sua presa adentravam a floresta, o que deixava o ambiente ainda mais escuro. Mas felizmente o pelo dourado da corça a denunciava na escuridão da mata, e o animal fazia bastante barulho ao pisar nas folhinhas mortas, secas, que jaziam espalhadas pelo chão e que brevemente se uniriam ao solo do bosque, adubando-o.

Já era crepúsculo e Basch cobiçava tanto a corça que havia batido seu próprio recorde só por causa dela. Nunca adentrara tanto aquele bosque maldito.

Basch encaixou a flecha no arco. Sentia o animal bem próximo; foi seguindo-o através do ruído das folhas cedendo e foi parar numa trilha a céu aberto, sem copas de árvores impedindo a vista do céu.

A corça estava lá, virando a cabeça para seu predador para que pudesse encará-lo, parada sob a luz da lua que acabara de aparecer. Os pelos dourados brilhavam mais ainda e as orelhas tremiam.

O garoto tivera sorte. A trilha simplesmente acabava num precipício, atrás do animal. Não restava uma única escapatória para sua presa.

Ele mirou bem na testa da corça, enraivecido. Aquele animal o fizera ir até ali. Finalmente poderia dar um fim a ele. Basch contradizia a si mesmo pela primeira vez; nunca desejara tanto a morte de um animal. Por que todo aquele rancor? A corça estava apenas tentando sobreviver.

Então ele largou a corda e baixou o arco.

Lá estavam as substâncias alucinógenas agindo novamente. A corça simplesmente não estava mais ali. A flecha continuou rasgando o ar até se fincar num ponto longínquo. O animal deixara Basch sozinho com as árvores e o vento que soprava. O garoto chutou o ar onde estivera a corça, com raiva. Repetiu a palavra "merda" mentalmente uma dezena de vezes.

Basch perdeu uma de suas melhores flechas e voltou para a aldeia de mãos vazias.

Não teria muito com que pagar o imposto e tudo era culpa do orgulho.

[xx]

O olhar esverdeado de Basch Zwingli transportou-se para o céu além da janela de vidro nublado. Ah, o céu, naquela noite, estava abarrotado de estrelas, que dardejavam, brilhando como cristais frios costurados no veludo escuro do firmamento. Uma pena que Lilly estivesse adormecida - ela havia se rendido ao sono assim que as doze badaladas que anunciavam o crepúsculo soaram. A garota gostava de dormir e acordar bem cedo. Passava um minuto a escutar as melodias que os passarinhos tinham a apresentar. Depois dirigia-se à cozinha silenciosamente, atiçava o fogo em igual silêncio e preparava café da manhã para os dois.

Ele teve ímpetos de acordá-la naquele instante mesmo, convidando-a à janela para que os dois assistissem à chuva de cometas que fora prevista para aquela noite. Porém ele recusou-se a fazê-la abrir os olhos, tal era a graciosidade que ela emitia em estado onírico. Claro que deveria estar sonhando, pois havia um sorriso discreto em seu rosto. A colcha de retalhos floridos subia e descia conforme a pequena dama executava sua respiração.

Basch sorriu ao apreciar a imagem da irmã e virou-se novamente para a janela. Ele visava acalmar-se assistindo à chuva de cometas. Faltavam 12 horas para a colheita de impostos. E ele estava com medo. Medo de não satisfazer o apetite real, sempre voraz. Temia não ter o suficiente em verduras e rebanho. Aceitariam aquelas cabras leiteiras um tanto magras?

Mas o temor maior - e ainda crescente - era aquele de ter que acabar nas Minas. Quem não agradava a Rainha iria para o subsolo; era um lugar onde respirava-se fuligem e onde o desespero era sempre onipresente.

Ele não queria ter essas Minas como destino. O pior era que, se ele fosse, Lilly apropriaria-se da mesma sorte. Seria terrível.

Ah, que absurdo. Suas colheitas sempre haviam satisfeito a Rainha; por que falhariam logo agora? Mesmo que ele tivesse algumas maçãs a menos a oferecer neste ano, e menos um barril de leite de cabra, ele estivera crendo que tudo daria certo. Por que aquele mal pressentimento resolvera bater à porta logo na véspera?

Se ele tivesse pego aquela corça, sua liberdade já estaria garantida. Aquele animal valia por todas as maçãs que Basch cultivara e por todos os litros de leite que uma de suas cabras havia gerado, em toda sua vidinha de cabra.

Confiara demais em suas habilidades de caça. Deixou-se levar pelo orgulho; crente de que iria abater a tal corça do pelo dourado, esforçou-se menos ao cuidar das macieiras e ao alimentar suas cabras para que as mesmas fornecessem leite o suficiente. Já que a tal corça valia tanto, ele deveria ter suspeitado que ela também seria mais arisca que as demais.

Apesar disso, se os deuses ouvissem suas preces, tudo ocorreria como o usual. Lilly continuaria confortável em seus lençóis floridos, e não sujando as mãos com carvão e machucando-as em pedras.

E talvez os deuses estivessem demasiadamente ocupados na hora em que Basch admirou o céu - que agora havia começado a ser riscado pelas centenas e centenas de cometas de caudas multicolores - e pediu por misericórdia.

Ele duvidou da própria capacidade de adormecer graças à situação em que se encontrava, mas acabou por de entregar assim que os cometas cessaram. A cabeça apoiada no parapeito da janela sugeria uma posição desconfortável.

Na madrugada que antecipava a decisão de seu destino, o jovem Basch estava sujeito a pesadelos.

[xx]

O ruído da picareta ecoava até pelo interior de Basch. Maldito ruído, agora só faltava adentrar o espírito. Pedrinhas menores vibravam no chão enquanto o paredão de pedra recebia investida após investida. A picareta só conhecia um movimento, que era o vai-e-volta contínuo; investia contra a rocha, voltava, interminável era aquela repetição.

O louro tinha generosas olheiras sob os olhos verdes. Digo, quase-louro; seus cabelos há muito haviam tornado-se enegrecidos de fuligem. Transformara-se num escravo da picareta, pois seus músculos moviam-se sozinhos, presos naquela sequência melancólica que estavam fadados a repetir.

O instrumento havia convencido Basch de que o único inimigo que ambos tinham era o paredão da mina, e de que apenas cessariam aquela sequência quando ele estivesse meticulosamente esmigalhado.

Assim como estariam os ossos e o corpo cansado de Basch.

Pela primeira vez, como que liberto de um torpor, ele fez a picareta vacilar em suas mãos. Então lágrimas vieram aos seus olhos enquanto ele deixava a picareta escorregar e fincar-se ao chão. Apoiou-se na parede áspera para esconder as lágrimas que aos poucos surgiam e limpavam o rosto sujo de fuligem. Sentia-se estúpido e impotente. Pouco lembrava-se da última vez que chorara, mas agora desmanchava-se em lágrimas.

Era um fraco.

Ao lado dele, a pequena refém desvinculou-se de sua picareta que estivera erguendo com dificuldade e desferindo contra a parede - seu instrumento de trabalho era bem menor e demonstrava a única piedade imposta para ela - e andou até Basch.

– Lilly?

Palavras dóceis saíram pelos lábios da irmã.

– Irmão, você não precisa. Você não precisa mais... Nós não precisamos. Vamos sair juntos desse lugar.

A voz dela era um fiapo, perdido entre os sons longínquos emitidos pelas picaretas dos outros operários além do túnel.

Basch virou-se para encarar a irmã.

– Não seja idiota, Lillian. Jamais conseguiríamos.

Ela esforçou-se para abrir um sorriso. Seus dentes continuavam brancos como pequenas pérolas, e também bem alinhados; contrastavam com a pele encardida da face dela, que também não fora poupada pela sujeira daquele lugar obscuro.

– O único bobo aqui é você, por achar que não podemos... - e o sorriso vacilou.

Mas ela queria mantê-lo. Então Lilly abriu o maior sorriso que conseguiu. Depois lançou-se aos ombros do irmão e ambos choraram.

Agradeciam por pelo menos estarem unidos.

Quando ele acordou, seus pulmões pareciam estar irrompendo em chamas e desfazendo-se em cinzas.

O pescoço doía. Através da janela, confirmou que a manhã havia chegado, mesmo que o céu estivesse cinza como metal. Levantou-se arduamente da cadeira e se espreguiçou, sentindo algo estalando e assim amaldiçoando a si mesmo por ter dormido de mal jeito.

A cama de Lillian estava vazia, com os lençóis revirados e também frios, o que significava que o leito não fora abandonado há pouco. Ela poderia estar na cozinha, preparando a refeição matinal; havia também a possibilidade dela estar revirando os baús no depósito, procurando algum tipo de velharia que supostamente daria sorte a Basch ou coisa do tipo.

A casa era pequena. Consistia em um quarto - que apesar de único era bastante largo - uma sala com uma mesa onde realizavam suas refeições, e uma cozinha quadrada onde as mesmas eram preparadas por Lilly, com esmero. Basch as prepararia se a irmã não fosse tão insistente. Lillian as fazia como uma retribuição por Basch tê-la encontrado às margens de um lago, quase morrendo de fome.

Isso fora há três anos.

Ela simplesmente teria pulado no lago e se deixado levar pelas águas; isso se Basch não tivesse berrado para tirá-la daquele transe suicida que havia dominado-a.

Sim, não eram irmãos de sangue. Apesar de que, aparentemente, poderiam até se passar por gêmeos; ele tinha o mesmo cabelo louro e os mesmos olhos esmeralda dela. Talvez Basch fosse uns centímetros mais alto.

Mas eram unidos por laços que gerariam muito sofrimento caso fossem quebrados.

Externamente, a casa contava com um depósito e um jardim que jamais haveria prosperado se não fosse pelas habilidades de Lilly.

Moravam à margem de um bosque de pinheiros. Eram apenas camponeses bem comuns, fadados a pagarem pela própria liberdade com as colheitas e a morrerem no anonimato.

Lilly? Lillian? Li? - qualquer ruído ecoaria por toda a casa, tal a pequenez da moradia. Mas mesmo com esse recurso Basch não obteve resposta da "irmã". - Certamente está lá no depósito. - Deixou-se cair na cadeira onde dormira. Num átimo, ele foi atacado por fragmentos embaraçados e desfocados do pesadelo que tivera. Logo afastou as imagens da cabeça.

Espero que tudo dê certo hoje.

Ele cerrou os punhos e observou o horizonte através da janela. Então deixou a angústia transbordar, sendo levada por um longo suspiro. Mas parte dela insistiu em ficar, agarrada no peito.

Aquele hoje era um dia fatídico.

Basch eliminaria aquela angústia por completo hoje. Ou então a prolongaria.

– Irmão! Venha ver isto.

Lilly chamara. Ela havia entrado de fininho no quarto - desde quando conseguia ser tão silenciosa? Em sua mão havia mais um daqueles amuletos. Basch sequer acreditava neles, mas precisava fortalecer seu fio de esperança, que parecia prestes a arrebentar. Levantou-se empurrando a cadeira para o lado e tentou sorrir para que Lilly não se preocupasse.

Ela pôs-se na pontinha dos pés e jogou o colar por cima da cabeça do irmão. O item caiu com um tlim.

– Só para ter certeza de que não iremos para debaixo da terra cutucar carvão, irmãozinho. Será um longo dia, então,você precisa de um bom café da manhã.

Foi Basch que iniciou a inocente discussão que os dois irmãos travavam todo dia.

– Eu posso fazer nosso café da manhã, Lillian.

– Eu insisto!

– Você pode se queimar ao torrar o pão.

– Mas eu vou tomar todo o cuidado!

– Tem certeza?

– Absoluta.

– Então vai.

Observou-a enquanto ela se dirigia à cozinha. Em seguida suspirou e a seguiu.

Como ela dissera, seria um longo dia.

[xx]

O céu estava tão cinza que Basch teria voltado para casa, não fosse o seu "dever de cidadão" a ser cumprido.

A fila do pagamento de impostos prosseguia tão rápida quanto um caramujo, mas não era esse o motivo que obrigava o garoto a esconder seu mal-humor. Bem, ele até agradeceria se ela estivesse mais lenta. É que ele estava recebendo diversos olhares de pena; os outros camponeses o encaravam como se ele já estivesse condenado ou coisa do tipo.

Basch odiava quando alguém sentia piedade de sua pessoa.

O loiro puxava um carrinho com as duas caixas de maçãs e o barril de leite de cabra. Naquele ano, venderia também as cabras; estava puxando-as por um laço, que já fora da cor branca. A cabra Gretel empacava de quando em quando, e a outra, Jojo, já fizera-o ganhar três advertências da mulher que estava atrás, porque o animal tentara acertar um coice naquela pobre camponesa. O garoto acalmou Jojo com diversas promessas de alimento fresco, mesmo sabendo que se conseguisse sair dali nunca mais veria a cabra novamente.

As filas viravam a esquina num cruzamento qualquer da Capital Real. Como sempre, eram filas gigantescas formadas por camponeses que carregavam os produtos de suas safras juntamente com bichos de criadouro barulhentos - como galinhas. Basch não viu ninguém com uma corça dourada, nem viva nem morta. Isso serviu para que o ego dele não fosse ferido.

Ouviu-se um trote de cavalo e a maioria dos presentes pareceu interessada. O Zwingli viu apenas uma longa cabeleira cor de platina, ondulando no ar, e engoliu em seco; às vezes a Rainha queria adiantar as coisas e comparecia - a própria - para se oferecer como voluntária na colheita de impostos, marcando o nome dos pagantes e conferindo se o oferecido pelo camponês supria o que deveria ser pago.

"Heil, Julchen!" Exclamou a multidão em coro. Era praticamente obrigatório que todo cidadão bradasse isso, na presença da Rainha. O brado era acompanhado por um cumprimento que consistia em levar a mão ao coração.

Basch foi o único que permaneceu em silêncio, olhando para as próprias botas como se elas fossem super-interessantes.

Nos registros reais, havia uma lista, para cada cidade, com o nome de todos os habitantes com o status "Pagante de imposto". Quando se tornava chefe de família, já era hora de pagar os impostos à Rainha. Basch morava sozinho desde a morte dos pais e arranjara uma companhia - Lillian. Isso o tornava chefe de família no ponto de vista das Leis. Do que adiantaria contrariar as Leis? Leis eram leis, e nunca deixariam de sê-las.

Todo dia de colheita, os nomes na lista que correspondiam aos pagantes eram marcados e transcritos para outra lista. Aqueles que não constassem na lista de pagantes eram perseguidos pelo Exército Real, e então, presos ou enviados para as Minas.

Quem não pagava o suficiente tinha o mesmo destino; e então seriam afetados também seus familiares.

A majestade era conhecida por todo o reino como Dama de Platina, graças aos seus cabelos que tinham aquela cor peculiar. Com sua águia de estimação, seus olhos carmesim e uma cicatriz no rosto, era bonita e intimidadora ao mesmo tempo. O povo a considerava uma tirana discreta.

O trote já se tornara distante, mas tornou a intensificar-se quando a Rainha deu meia volta em seu cavalo branco e retornou em menor velocidade, chegando bem perto da multidão desta vez. Com um sorriso sádico no rosto, encarava os cidadãos e deliciava-se com as suas faces amedrontadas. Satisfeita, viu que todos a cumprimentavam. Pareciam ovelhinhas encardidas e submissas.

Até que viu Basch, com a cabeça baixa, mais preocupado em conferir o polimento de suas botas de couro do que em sentir medo do sadismo de Julchen.

– Mais respeito à Rainha, plebeu! - ela fez questão de puxar os arreios da sua montaria, que eram adornados com sininhos, para produzir barulho e chamar atenção. Ergueu-se de pé nos estribos e convocou a águia de estimação a pousar em seu ombro.

Basch levantou o rosto com relutância, e sentiu os olhos cor de sangue da Rainha furando-o num instante; estava tentando resistir à tentação de virar o rosto, que àquela hora deveria estar praticamente queimando, rubro de vergonha. Engoliu em seco; cada músculo do corpo dele estava rígido com a tensão.

– Não fique fingindo não saber o porquê de eu ter chamado-lhe a atenção. Saia da fila.

Ele obedeceu imediatamente. Além da pressão carmesim de Julchen, Basch sentia centenas de olhos plebeus fixando-se em sua pessoa.

Olhos plebeus que idolatravam-no pela coragem ou então menosprezavam-no pela idiotice.


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Notas finais do capítulo

Deixem seus reviews, caso achem essa fanfic digna deles. ♥ Agradeço~