Cinzas escrita por CK Bellini


Capítulo 4
Giovanna


Notas iniciais do capítulo

Grandes e expressivos olhos verdes. Rosto redondo e ligeiramente sardento. Giovanna prendera os cabelos castanhos, com pontas um tanto mais claras, em uma trança desfiada. Tinha as mãos na cintura e um olhar atento. As marcas sob os olhos indicavam insônia. As mãos escalavradas e enfaixadas com nacos de tecido imundo. A regata verde escura rasgada em alguns pontos e puída em outros. A voz, no entanto, era suave e decidida, como as daquelas personagens de desenhos que há muito silenciaram.



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Onde você estava quando tudo começou?

Eu estava na Paulista, indo até o metrô da Brigadeiro para ir para casa. Quer dizer, na época eu ouvira algo sobre uns ataques e coisa parecida, e com certeza eu escutei sobre os nóias do Centro Velho, mas nunca pensamos que esse tipo de merda possa acontecer conosco, né? Enfim, eu caminhava ali, bem depois da Brigadeiro, sabe? Bem na frente do MASP e do Parque Trianon. De repente, um guarda caiu. Isso eu digo porque o Fábio me contou. Tinha muita gente na minha frente. Então começou a correria e as pessoas me empurraram para o lado oposto ao que eu vim. Todo mundo gritava, cara… Pânico demais. Uma senhora sem metade da cara, sério, tinha um olho pendurado, balançando… Ela veio correndo em minha direção e pediu ajuda, mas eu não… Soube o que fazer. Eu tinha gelado, entende? Eu estava trêmula e estagnada, não me mexia… Então um policial, hoje eu sei que era um dos zumbis, pulou no pescoço dela e arrancou uma boa parte da carne sobre a jugular. Espirrou em mim, até. Era quente… Então eu corri. Larguei a mulher agonizando no chão e corri. Todo mundo tava entrando no metrô, então eu fui também. Bendita mania de seguir o fluxo… Por sorte ou azar, nenhuma das coisas conseguiu me pegar e eu entrei sob abóbada de vidro do acesso.

E como a estação estava? Os trens ainda funcionavam? Aliás, você disse "para sua sorte ou azar". Por quê?

Olha, quando você é claustrofóbica, os metrôs não são os lugares mais aconchegantes do mundo. É como… se alguém estivesse te sufocando, roubando seu ar. E tinha muita gente. Eu sei que eu tinha opção, mas qual seria? Era isso, ou virar comida de zumbi ou ser, sei lá, atropelada pelos lunáticos em pânico que tentavam sair do Espigão. As pessoas só pensaram em duas coisas: correr feito loucas pela avenida, ou se espremer pra dentro do metrô. Eu desci aquelas escadas e empurrei tantas pessoas… não tive dó, pra ser sincera. Ninguém quer morrer, entende? Não me sinto orgulhosa, mas tive de fazer tanta coisa…

Como o quê?

Ah, nada. Enfim, os metrôs estavam caóticos. Tinham reduzido as viagens desde a implosão da Sumaré, os filhos da puta. As pessoas se empurravam e… se derrubavam umas sobre as outras. Tinha gente que caía e não se mexia mais. Muitas outras caíram nos trilhos. Quando eu cheguei lá embaixo, o trem tinha acabado de sair. As pessoas gritaram, mas alguém do CCO avisou que as operações estavam encerradas naquela linha por “problemas técnicos”. Porra nenhuma! Os cuzões fugiram do prédio ali da Paulista, se quer saber. Abandonaram as pessoas à sorte e fugiram. Eu não quero julgar, entende? É a lei da sobrevivência, mas aquilo foi crueldade. Eles estavam em um arranha-céu de trinta andares! Qual a chance de um zumbi subir escadas? Enfim, depois disso, eu precisei de toda a minha força de vontade para sair dali.

E para onde você foi? Digo, sei que está no metrô ainda, mas dali correu até onde? Os trens ainda funcionavam, pelo que eu entendi, e as escadas estavam enxameando com as pessoas tentando fugir da Paulista. O que você fez?

Eu tava na Brigadeiro, entende? Corri tanto que nem me cansei. Tentei me espremer para a saída pelas paredes, tentando subir as escadas rolantes paradas, mas mais pessoas entravam. Então foi quando um deles entrou.

Zumbi?

Sim. A mulher que pediu minha ajuda. Ela estava… detonada. Faltavam muitas partes dela, entende? Ela voou sobre um senhor de idade e arrancou um naco tenso do peito dele. As pessoas gritaram e se empurraram mais para dentro. Os que viram e estavam na escadaria gritaram e correram para fora. Foi a minha deixa. A única coisa que eu pensava era voltar pra casa. Cara, você sempre imagina que esse tipo de coisa acontece em áreas com muita gente, e nunca acontece na sua casa. Eu não podia sair dali, eu tinha que me virar. Então eu fui andando da Brigadeiro até a Frei Caneca. Eu… roubei um carro. Estava vazio, antes que me julgue! Tecnicamente, furtei, mas as chaves estavam dentro. Consegui vazar de lá, mas não tinha sinal de celular nem nada. O túnel da Paulista pra Doutor Arnaldo estava bloqueado porque um carro explodira. Como ele explodiu? Boa pergunta. Coisas assim acontecem em apocalipses, não é? Eu entrei em pânico. Não sabia de ninguém… mãe, pai, família... Eu ouvia os gritos e tiros e as pessoas corriam ao meu redor… Algumas batiam com as mãos na janela implorando para entrar, mas eu não permiti. Eu acelerei com tudo no retorno e desviei das coisas. Corpos no chão e… Eu passei pela entrada da Estação e… Não gosto de lembrar dos sons que saíam de lá de dentro. O cheiro de sangue é comum, hoje em dia, mas fresco? Jorrando assim, na sua cara? Não… Eu parecia um cachorro em ano novo, assustado. Seria muito cômico, se não fosse trágico.

E o que você fazia, antes da Epidemia?

Eu estudava Letras, com o Caio, o outro professor. E também dava meus jeitos pra arranjar emprego… dava aula ali, fazia outra coisa ali... E de pensar que eu reclamava das coisas, credo! Eu tinha tudo… nós tínhamos tudo. Agora nós estamos nos escondendo como ratos nesses túneis enquanto aquelas coisas tomam conta do que era nosso. Grande futuro, esse.

E como terminou na Sé?

Eu… Bem, é engraçado porque… Todo mundo tentou chegar aqui. Aliás, grande parte da minha família tentou. Meu pai, minha mãe… Ele me empurrou para dentro das escadas, na Barra-Funda, enquanto tentava lutar com outro que mordera minha mãe. Eu sabia que ela já estava morta, sabe? Todo mundo acompanhou, em algum momento, algo sobre algum apocalipse, e a zumbificação começa, primariamente, pela mordida. Então veio um daqueles… vermes e atirou nele. Roubou a carteira dele! Desculpe-me se eu choro quando lembro, mas é tão… Eu gritei e esperneei, mas tive de correr. Eram muitos. Eu corri para os túneis e caminhei…

É uma bela caminhada da Barra-Funda até aqui.

Eles bombardearam a Barra-Funda, não é? Bloquearam a saída dos túneis da linha vermelha. Eu estava tão… nem senti os passos. Acho que andei por mais de um dia, entende? A distância das estações pode parecer ínfima em um trem, mas a pé? Há! Era escuro e… e eu chorava e… Deus… Eu gostaria de ser mais praticante, hoje em dia. Mas ninguém merece esse tipo de coisa, sabe? Nem temos certeza se é uma doença ou não… Uma maldição, talvez. Ainda me lembro do… Ah, esquece. Melhor eu voltar para as crianças. Desculpe.


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Notas finais do capítulo

Ela anda para longe, respirando ruidosamente. Seus olhos verdes, os únicos em toda a estação, afogavam-se em lágrimas que ela enxugava, como se estivesse com raiva. Todos nós perdemos todo mundo.



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