O relógio havia acabado de apontar onze e vinte da noite quando Aioros voltou para o pequeno hotel. O espanhol deveria estar acordado e o esperando com aquela cara agoniada, pronto para perguntar “por que demorou tanto?”. Ou ainda poderia estar muito bem preso no sono. Mas a demora do grego tinha um bom motivo. Excelente até. Estendera seu tempo nas ruas por causa do jantar, então trazia consigo um pacote com hambúrgueres. Acontece que o rapaz ficou tão preocupado, mas tão preocupado de não acertar comprar a comida preferida do amigo que resolveu levar a coisa mais comum e previsível do mundo. Claro que o seu continha muito mais ingredientes do que o que comprara para Shura, que nunca foi de comer muito e tinha um costume engraçado de beliscar a comida. E isso desde pequeno.

— Você demorou. – Disse o capricorniano, sorrindo aliviado. Conseguiria enganar alguém? Por mais que quisesse dar uma bronca no outro, estava aflito com o sumiço dele que fora tão agoniante quanto aqueles treze malditos anos de ausência. – Foi em quantos restaurantes?

— Hm... Acho que passei em uns seis, mas foi por que estava pensando em algo para trazer para você jantar! Sou um bom amigo, não sou? – Ele respondeu rindo, fechando a porta e indo deixar as sacolas com a comida em uma mesinha que tinha ali. A usariam junto com as cadeiras que estavam largadas nos cantos. – Eu arrumo a mesa, enquanto isso você... Pode tomar banho eu acho... Ah! Sua dor de cabeça passou?

— Passou sim. Eu só precisava dormir. – Mostrou que estava bem, pelo menos por fora. Por dentro tremia e pegou uma muda de roupas para se trocar no banheiro. Disfarçando o nervosismo, ele deu as costas para Aioros. – Mas quem devia ir tomar banho antes era você, sabia? Ficou tempo demais na rua.

— Eu vou depois. E seja rápido, estou faminto e só vou comer quando você for! – O sagitariano ditou, sentando-se na cama. Quando viu Shura sorrindo teve certeza de que ele estava pensando no buraco negro que ele teimava em dizer que existia em seu estômago.

— Calma, os hambúrgueres não vão sair do lugar. – Shura escondia o riso. Aioros era estupidamente engraçado. Não sabia se ele fazia de propósito ou se nunca percebia o quanto era bobo.

Os demais Cavaleiros sempre olhavam para Sagitário como se ele fosse um guerreiro inabalável e poderoso. Mas a verdade era que ele não passava de uma criança super desenvolvida. Ele era único. Impossível não gostar dele de primeira. O sorriso, a forma de falar, a maneira de brincar, as risadas... Tudo em Aioros era perfeito. Muitas pessoas deveriam gostar dele... Então Shura pensou se mais alguém no mundo haveria de estar apaixonado pelo seu amigo ou se ele mesmo estaria por alguém. Caso estivesse, Shura não teria o direito de atrapalhar. Mas isso soou tão devastador para o espanhol que nem aquela água fria do chuveiro iria distrai-lo de seus pensamentos. Ele aguentaria? Caso Aioros dissesse “estou gostando de alguém” como Shura reagiria? Se Shura dissesse “eu te amo, Aioros” o que o próprio falaria? Pensar nessas coisas era tão... Estúpido.

No quarto, o grego abrira a varanda para deixar o vento da noite entrar. Puxou as cadeiras e a mesinha para perto e arrumou a sacola em cima dela. Sentou-se para esperar, mas estava inquieto, ansioso e, claro, morrendo de fome. Shura ainda agia estranho, evitando contato visual e falar muito.

— Queria saber se ele está realmente bem... Ou se eu fiz alguma coisa. – Aioros suspirou e olhou para a cama. Iriam dividi-la mais tarde e isso seria constrangedor. Muito embora Sagitário estivesse de fato tranquilo com isso. Afinal, estava acostumado a dividir a cama fosse com ele ou com o irmão. Aioros lembrava que algumas vezes acordava com ele apertando sua mão. Era uma criança tímida, mas demonstrava ter muito carinho para com o mais velho e o grego sabia disso. A forma como Shura o abraçava ou apertava seu braço era uma demonstração de afeto tão pura e carinhosa que imaginar que o capricorniano poderia começar a ignorá-lo era a coisa mais maluca do mundo. – O que aconteceu? – Continuava a indagar-se. Mas estava decidido a obter uma resposta ainda naquela noite. Nem que tivesse que encurralar o outro contra a parede ou na cama.

Quando Shura deixou o banheiro, seus cabelos ainda estava molhados e uma toalha descansava em seus ombros. Usava calças folgadas e uma camisa regata preta. A noite não estava muito fria, mas também não estava muito quente. A primeira coisa que Aioros pensou, talvez por que estivesse com a imagem de Shura pequeno em sua mente, foi o quanto o amigo tinha crescido. A verdade era que sua última imagem dele era a de um garoto de dez anos. Ele cresceu e estava tão alto quanto o grego. A única diferença era de um mísero centímetro! Suas feições também estavam mais maduras. Quando Shura era menor, seu rosto era bem infantil, quase semelhante a uma garota, e seus olhos eram grandes. Por isso Aioros falava que ele parecia um filhote de gato preto.

— Aioros? – Shura o chamou. Percebeu que ele estava o olhando com muita atenção e isso o deixou nervoso. Bem nervoso.

— Ah! Desculpe, estava pensando... – Ele respondeu tirando a sacola e retirando a comida de dentro dos pacotes.

— Pensando?

— É. Pensando no quanto você cresceu. Sinto-me um tanto quanto orgulhoso.

— O-O quê? - Ficou confuso.

— Sim. Você se tornou um Cavaleiro de Ouro, cresceu e superou muitas coisas. E eu vi isso acontecer. Por que não estaria orgulhoso?

Shura engoliu sua saliva. Seu objetivo enquanto treinava era conseguir ser motivo de orgulho para Aioros, seu melhor amigo, seu irmão, seu herói. Mas naquela hora aquelas palavras só o machucavam. Sentia-se um traidor por ter acreditado em um duvidoso Mestre e de ter atacado o amigo. Como ele poderia ser motivo de orgulho para Sagitário? Como?

Sem dizer nada, o espanhol sentou-se na outra cadeira, a que ficava de frente para o mais velho e começou a comer. Dava as beliscadas de pássaro ao passo que Aioros devorava o hambúrguer que sumia rapidamente.

— Não encontrou nada de anormal por ai? – Capricórnio perguntou.

— Não. Nada. Nem uma pontada de cosmo ou qualquer coisa que pudesse ter algo a ver com isso. Nem acontecimentos estranhos e recentes.

— Hmm... Acha que o Mestre Shion poderia ter se enganado?

— É difícil ele se enganar, mas... Se até agora nada aconteceu, só podemos esperar. Enquanto isso aproveitemos a estadia aqui e a comida!

— Você sempre vê o lado bom de tudo? É sério? - Estava rindo, finalmente.

— Finja que estamos tirando férias! Só eu e você, juntos. Como nos velhos tempos.

— É...

Shura ria, mas não era com felicidade. Era diferente, tristonho. Isso incomodava muito Aioros que, inconformado, resolveu puxar assunto.

— Então... Sua discípula conquistou o direito de ser uma amazona de prata, né? Deve estar orgulhoso dela também.

— Um pouco. Eu não tive muito a ver com o treinamento dela, apesar de supervisionar. Ela não aceitava criticas e vivia dizendo que eu estava errado. Ela é bastante autoritária, acho.

— Alexia deve te ver como um irmão mais velho, oras.

— Eu não era assim quando era mais novo... Ou era?

— Não! O Aiolia quem me tirava do sério, mas você era bem comportado. Era fofo.

— Fofo?

— É, fofo!

Aioros era de fato uma graça de pessoa. Impossível não amá-lo. A sua inocência ao falar das coisas era exclusiva e encantadora. Era um bobalhão risonho, comilão e um tremendo palhaço.

No entanto, quem mais falava era Sagitário. Shura só ouvia e consentia algumas coisas. Sua mente se fechava e seu coração também. Ele conseguiria coragem necessária para desabafar? Estava longe de saber.

Por fim, Aioros decidiu tomar banho. Enquanto o espanhol jogara as caixas dos hambúrgueres devorados no lixo e realocava a mesa e as cadeiras. Com exceção de uma que deixou na varanda, para ele mesmo se sentar. Respirou fundo antes de tirar da mochila surrada uma caixa de cigarros e um isqueiro. Com o passar do tempo, ele pegou o costume de fumar quando estava  inquieto. Não chegava a ser um vicio, mas não era tão agradável assim.

O céu noturno estava estrelado. Há mais de dez anos atrás ele estava observando esse mesmo céu quando encontrou Aioros e era o mesmo céu que ele o ensinou a amar. A medida que a fumaça saia de sua boca, sua mente se aliviava da pressão. Queria relaxar apenas ou simplesmente morrer de novo. Loucura não?

— Sabe? Acho que aquele italiano teve uma má influência sobre você. – disse Aioros saindo do banheiro, apenas de calças.

— Refere-se ao Máscara da Morte e aos cigarros?

— Sim. Não gosto muito de te ver com ele.

— Por quê?

— Sei lá. Talvez eu esteja com ciúmes. Eu sinto sua falta, Shura. E queria que ficasse mais tempo comigo do que com... Outras pessoas. – O grego concluiu sentando-se no seu lado da cama e caindo com a cabeça no travesseiro.

Shura quis chorar. Ele estava bem mais a vontade e normal andando com o Cavaleiro de Câncer do que com seu melhor amigo. Estava o afastando mesmo que sem querer e isso doeu tanto que não conteve as lágrimas. Droga! Aioros era a pessoa mais importante do mundo para ele e por que agia assim? Querendo proteger o amigo e a si mesmo, só estava sendo egoísta e o afastando.