Entre Segredos e Bonecas escrita por Lize Parili


Capítulo 76
Quando um sonho acaba - parte 1/2


Notas iniciais do capítulo

O que será que aconteceu entre Sol antes de se mudar para deixá-la tão insegura em relação a algumas coisas?



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 #14/03#

Vestida com seu roupão cor de rosa, sentada de pernas encolhidas e pés cruzados sob a cadeira, Emília, pela primeira vez, contava a alguém, ou melhor, ao seu diário, sobre a conversa que teve com sua mãe e que a fez mudar. Ela não aguentava mais ignorar o dia em que seus sonhos acabaram. Poucas foram as linhas que não tinham um pequeno borrão nascido de uma gota salgada que pingou sobre a folha, manchando a tinta roxa da sua caneta.

...

"Hoje é dia 14 de março e é aniversário do meu pai. É a primeira vez que eu esqueço; mas por que eu tinha que lembrar? É a primeira vez, desde que fiz meu primeiro cartãozinho no jardim de infância, cartão este que nunca pôde ser entregue, a não ser picotadinho e assoprado pelo ventilador, como minha querida professora do maternal me ensinou. É a primeira vez que eu não passo algumas horas fazendo um cartão, escrevendo votos de felicidade e saúde, picotando tão miudinho que mais parece farelo de papel, nem esvoaço tudo pela janela do meu quarto, assoprando-o com o ventilador, cantando baixinho "happy birthday to you", desejando com todas as forças que no ano seguinte seja diferente, que estejamos juntos.

 

Mas o sonho acabou e a realidade é amarga. Eu odeio minha mãe por ter matado meus sonhos, minha esperança. Eu odeio meu pai por ter me feito sonhar por tanto tempo, em vão.

 

Maldita hora em que fui à cozinha naquela noite, ou será bendita? Eu não sei e minha vontade é gritar, mas tão alto que o faça ouvir e lembrar que me deixou para trás.

 

Foi naquela noite que eu soube que ia me mudar, uns três meses antes do dia da mudança.

 

Era noite e eu acordei com sede, então desci para tomar um copo d’água e flagrei meus pais, ou melhor, minha mãe e meu padrasto conversando. Como eu ouvi que ia haver muitas mudanças em nossas vidas eu tratei de ficar quietinha; não queria interrompe-los. Na verdade eu queria descobrir que mudanças eram estas e como eles nunca me contavam nada, só mesmo espiando para descobrir alguma coisa.

 

Eles falavam sobre ter que ligar para o corretor e assinar o contrato de aluguel do apartamento. Depois falaram sobre pegar a minha transferência no colégio, e foi nesta hora que eu me denunciei. Fiquei tão nervosa com a palavra transferência que entrei na cozinha, querendo saber do que eles estavam falando, e como sempre, eles não me disseram nada e ainda brigaram comigo. Voltei para o meu quarto sem respostas e cheia de dúvidas.

 

Por que eles alugariam um apartamento se temos a nossa casa? Por que eu ia ser transferida de colégio? Será que íamos nos mudar? Mas para onde e por quê? Eram tantas dúvidas que eu não consegui dormir e a noite passou tão rápido que quando dei por mim, já estava perto da hora de ir para o colégio. Sim, o colégio que eu adorava e que estudei a minha vida toda, desde o jardim de infância.

 

Foi um dia terrível para mim, apesar da beleza do outono parecia que uma tempestade sobrevoava minha cabeça. Eu não queria me mudar. Toda a minha vida estava naquela escola, que nada mais era do que um pequeno jardim de infância quando comecei a estudar lá, depois houve uma ampliação e de jardim de infância passou para Ensino Fundamental, depois Collège, e no semestre que vem terá o Lycée e a minha (antiga) turma será a primeira, e eu queria fazer parte disto.

 

O intervalo foi o pior momento daquele dia. Todos os meus amigos reunidos no refeitório rindo e se divertindo e eu na maior dépri[1], sorrindo porque não queria falar sobre o assunto, afinal, podia ser um engano (eu é que estava me enganando, isso sim).

 

Eu nem mesmo conseguia rir com o dilema que minhas melhores amigas viviam diariamente: a Ana queria se esbaldar com um pedaço de torta de chocolate da cantina, mas a Mila, com sua mania de dieta não deixava a coitadinha comprar, pois isso seria tentador para ela, e a Ana, claro, ficava na vontade, por solidariedade; lógico que ela só fazia isso quando a Mila estava por perto. E o Ken... ficou tão triste que me arrependi de ter contado para ele que minha família planejava se mudar. Por isso nem me atrevi a contar para as meninas e o proibi de contar para alguém; não queria mais ninguém choramingando. Eu ia ficar mais deprimida do que já estava.

 

Quando cheguei em casa minha mãe estava no telefone conversando com a minha tia, mas assim que me viu entrar foi para o quarto. Pressenti que falavam de mim, mas não me importei, pois minha madrinha me amava e só poderia ser alguma surpresa. Na certa ela queria marcar um dia para ir me visitar, pensei. Ah, se eu soubesse...

 

Por um mês inteiro minha mãe e meu padrasto viveram de segredinhos e eu já estava cansada de ser a única daquela casa a não saber o que estava acontecendo, então fiz o que toda garota na minha condição teria feito. Espionei, cabulei aula e vasculhei cada canto da casa enquanto eles estavam trabalhando e para minha tristeza encontrei o contrato de aluguel de um apartamento em Londres, na Inglaterra, isso mesmo, na Inglaterra. Eu não ia apenas mudar de colégio ou de bairro, eu ia mudar de país.

 

De certa forma, eu até fiquei entusiasmada com a ideia de morar em Londres, embora triste por deixar meus amigos para trás, mas ao ler o contrato, tive uma triste surpresa, o apartamento era de apenas um dormitório.

 

Como assim, um dormitório? E eu? Por acaso iam me colocar na sala, num sofá cama, era isso? Tudo bem, a grana estava curta, o mercado imobiliário não estava indo bem e meu padrasto mal conseguia vender um imóvel por mês, e dos mais baratos, o que não dava uma comissão muito boa. E minha mãe, como sempre, gastava mais do que ganhava e vivia sempre no vermelho.

 

Eu engoli aquilo seco. Eles não podiam me alojar na sala, mas eu não podia reclamar, não ainda, afinal de contas, eu nem sabia o que estava acontecendo. De repente foi o apartamento que eles haviam conseguido de imediato e assim que estivéssemos em Londres procurariam um maior. Sim, era isso mesmo, só podia ser. Ah, se eu soubesse...

 

Os dias foram passando e eu não aguentava mais o suspense. Ninguém falava nada, os dois agiam como se tudo estivesse normal, sem mudanças previstas, mudança esta que eu nem sabia para quando era.

 

No colégio os dias passavam tão rápido que eu não conseguia curtir nada. O Ken não desgrudava de mim. Ele me enchia de mimos. Tudo bem que ele sempre fazia isso, mas sempre com um sorriso, e naqueles dias ele estava sempre triste. Ele dizia que todos os dias acordava com medo de eu já ter ido embora. Lógico que não tardou para minhas amigas perceberem a tristeza do Ken e me forçarem a dizer o que estava acontecendo. Elas achavam que eu havia dado um fora nele. É isso mesmo, diário, o Ken é apaixonado por mim, mas eu só o vejo como um amigo, um grande amigo por sinal, e por isso eu nunca seria ou serei capaz de magoá-lo, sem contar que a Ana tem uma quedinha por ele, mas ela não admite por medo do que os outros vão pensar. Magoar o Ken seria magoá-la também.

 

Quando contei as garotas que eu ia me mudar para Londres foi uma choradeira só. Ai já viu, em poucos instantes metade da escola já estava sabendo. Teve gente que nem ligou, teve gente chorando e até gente festejando, afinal de contas, eu não era a garota mais popular do colégio nem a mais amada, mas era amada por meus amigos, principalmente os três melhores, Ana, Mila e Ken. Tinha até gente tentando me entusiasmar com a mudança, afinal eu ia para Londres, a terra dos Rollins Stones, banda que aprendi a gostar com a minha tia. Eu ia poder caminhar pela Abbey Road, assim como os Beatles fizeram. E não posso mentir, quanto eu pensava nisso ficava eufórica. Eu gosto de Rock Roll, mas deixar meus amigos para trás era de matar.

 

Eu sempre fui segundo plano na vida da minha família e meus amigos eram o meu suporte. Eram mais presentes na minha vida do que minha mãe e meu padrasto. Então, como seria minha vida longe deles? Eu não podia imaginar. E quando pensei nisso desatei a chorar dentro da sala, no meio da aula de matemática. Ai não teve jeito, o meu antigo professor, muito legal por sinal, me levou para a sala dos professores e conversou comigo, então contei tudo, e olhem só, ele me aconselhou a conversar com meus pais, pois o grande problema que me afligia não era a mudança e sim, não saber o que estava acontecendo na minha casa. E ele tinha razão. Por que, afinal de contas, minha mãe e meu padrasto não me falavam nada?

 

Quando eu fui para casa meus amigos foram comigo e esperaram meus pais chegarem, para me dar uma força, mas assim que chegaram eles foram embora, afinal era um papo de família. E foi, sem sombra de dúvidas, o pior dia da minha vida.

 

Naquele dia eu também entendi o porquê minha mãe, até hoje, se recusa a dizer o sobrenome do meu pai e o porquê tudo é mais importante que eu na vida da minha mãe.

 

Para começar, meu padrasto chegou do trabalho no frigorífico, que ele odiava, mas continuava lá porque precisava trabalhar, e, como esperado, mal falou comigo.

 

Até meus 12 anos ele era mais legal comigo, embora não fosse do tipo que passava tempo comigo, igual pai e filha. Mas embora fossemos meio distantes, ele me tratava bem. Mas depois que ele e minha mãe ficaram desempregados, as coisas mudaram. Ele é gastrônomo e dos bons, mas acabou aceitando trabalhar num frigorífico, para manter a casa e a família. Minha mãe continuou desempregada, usando o dinheiro "das suas economias", o que gerava muita briga entre eles.

 

Até aquele dia eu não entendia o porquê eles brigavam por minha mãe usar o dinheiro das economias, afinal, as pessoas economizam pensando nas horas de aperto. Cheguei a pensar que ela havia se acomodado e ele estava preocupado, pois um dia aquele dinheiro ia acabar, mas na verdade, ele não queria depender daquele dinheiro, para nada. Um dia eu o ouvi dizendo isso a minha mãe e fiquei sem entender a postura dele. Mas hoje eu entendo. A renda que estava suprindo a nossa casa vinha do meu pai, de uma quantia que ele havia dado a ela quando a deixou.

 

Meu padrasto ainda tinha muito ciúmes do meu pai. E eu não o condeno. Minha mãe era namorada dele quando ela ficou com o meu pai. Ela o traiu. Mas mesmo assim meu padrasto a perdoou e até me assumiu, me dando o sobrenome dele, porque meu pai tinha sumido, aparecendo quando eu já tinha quase 2 meses de nascida. E minha mãe correu pra ele. O tio Pablo deve ter sofrido muito. No fim, meu pai nos abandonou de vez 3 anos depois e foi o tio Pablo que casou com a mamãe. Eu fico imaginando o tamanho do amor que ele tem pela minha mãe, porque eu acho que se fosse o contrário, minha mãe nunca teria perdoado. Ela é egoísta e rancorosa demais pra isso.

 

Depois que meu pai deixou a mamãe, quando eu tinha 3 anos, ela me deixou de lado. Quando não estava trabalhando, estava namorando meu padrasto, acho que tentando provar para ele, todos os dias, que havia mudado e que queria, de verdade, ficar com ele. Ou então ela estava curtindo com suas amigas do trabalho ou clientes. Ela era Promoter de vendas. E eu, como sempre, com alguma babá. Quanto ao meu pai biológico, acho que nunca vou saber o que ele estava fazendo, mas aposto que estava curtindo com sua filha favorita.

 

Assim que meu padrasto chegou em casa naquele dia eu disse aos dois que queria conversar com eles, mas minha mãe, acredito que desconfiada, pois eu estava com uma cara não muito amistosa, logo alegou estar cansada, querendo me evitar. O tio Pablo olhou pra mim com uma cara estranha, como se algo o incomodasse, mas ao invés de falar comigo, apenas olhou para minha mãe. Como eu já estava fula da vida e sabia que se não tomasse uma atitude eles iam me enrolar e sair sem me dizer nada, fui logo contando que sabia que nós íamos nos mudar para Londres e que eu queria saber o porque de tanto segredo, quando nós íamos nos mudar e o que havia acontecido para a mudança acontecer.

 

Imagine a cara de espanto deles. Eles não esperavam por essa. Mas como era de se imaginar, antes de me contarem alguma coisa minha mãe foi logo me esculachando, dizendo que eu ficaria de castigo pelo resto do mês só porque eu cabulei aula e mexi nas coisas deles sem autorização. O tio Pablo sentou na poltrona , pensativo, depois pediu pra minha mãe parar de brigar comigo, dizendo que já estava na hora de eu saber o que estava acontecendo. Eu senti meu coração gelar. Ele estava sério e minha mãe também ficou séria.

 

Meu tio me mandou sentar e eu sentei, mas um pouco afastada deles. Acho que eu já estava prevendo que não ia gostar do que ia ouvir.

 

Minha mãe sentou ao lado do tio Pablo, sem falar nada, só me olhando. Ela estava pensando em como soltar a bomba, é óbvio. Como se ela se importasse. Meu padrasto foi até a cozinha e pegou uma garrafinha de cerveja, daquela pequena, e assim que ele sentou do lado dela, ainda sério, disse novamente para minha mãe que eu precisava saber, que já estava na hora, até mesmo para eu ter tempo para me acostumar com a ideia, arrumar as minhas coisas e me despedir dos meus amigos.

 

Sim, era verdade, nós íamos para Londres. Foi isso que pensei na hora. Mas se eu soubesse o que viria depois, teria corrido dali, só para não ouvir.

 

Primeiro meu padrasto fez aquele drama, contou que as coisas não estavam fáceis aqui na França, que mesmo com as horas extras ele não estava conseguindo ganhar o suficiente para suprir as necessidades da casa e que minha mãe não estava conseguindo trabalho em lugar nenhum, o que complicava ainda mais a nossa situação. Depois falou que um primo dele que era dono de um restaurante em Londres havia lhe feito uma boa proposta de trabalho, para ser chief na filial que ele estava abrindo, e que ele havia aceitado. Minha mãe também trabalharia no restaurante.

 

Eu fiquei feliz, pois era uma grande oportunidade para o tio Pablo, que se formou em gastronomia, trabalhando no frigorífico por necessidade e não por amor e vocação. Minha mãe adorava trabalhar com vendas, mas era do tipo que fazia qualquer coisa, desde que desse dinheiro. Mas daí veio o choque. Minha mãe, com ar de pesar, disse que eu não poderia acompanhá-los, pois além de ter o ano escolar, eles estariam se estabelecendo e precisavam conter as despesas até conseguirem se estabilizar, e até que o meu inglês não era suficiente para frequentar uma escola inglesa, mas principalmente, que minha tia havia conseguido uma bolsa de estudos numa excelente escola particular em Nice. Foi ai que me toquei eu que ia morar com a tia Maitê.

 

Até parece que o motivo de eu não ir com eles eram aqueles que me disseram. Se me quisessem junto deles dariam um jeito e minha tia nem teria se preocupado em me conseguir uma bolsa de estudos numa escola como a Sweet Amoris. Se eles realmente me quisessem junto deles não teria obstáculos.

 

Eu não ia para Londres com eles. Eles iam me deixar para trás, como um cachorrinho vira lata que ninguém quer. Eu queria ter ouvido errado, mas era isso mesmo. Eu até perguntei para ter certeza, quem sabe eu tinha ouvido errado, mas para minha dor, eu havia escutado certo sim. Naquele momento eu entendi o porquê do apartamento de um dormitório e o segredinho. Eles não queriam que eu soubesse que iam me abandonar.

 

Eu me senti um nada, descartável, sem importância. Só de lembrar já dá vontade de chorar e até de..." 

...

Num rompante de raiva Sol, tomada pelo choro, sem pensar, atirou sua boneca do outro lado, a boneca dada a ela por seu pai, em sua última visita. Ela não queria mais olhar para ela e nem vê-la lhe olhando. Depois levantou e foi ao banheiro. Ela queria lavar o rosto, acreditando que isso a faria parar de chorar, mas não foi assim, então voltou para seu quarto, sentou em sua cama e chorou olhando para sua boneca, caída ao chão perto do guarda-roupa, de braços abertos, como se quisesse um abraço, como se quisesse ser resgatada daquele chão duro e frio.

Sol queria desaparecer com ela e as lembranças incrustadas em cada centímetro de tecido daquela boneca de pano, que um dia foi uma fadinha de cabelos magenta enfeitado com uma pequena coroa dourada, vestido acetinado azul e branco, com fitas cor de rosa enfeitando o corpete do vestido e as pernas, cuja sapatilha de bailarina tinha um pequeno coração enfeitando, mesmo coração que enfeitava sua varinha de condão, e que depois daquele dia maldito, foi transformada numa bruxa, a bruxinha que jazia jogada no chão daquele quarto, implorando pelo colo de sua dona.

 

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Notas finais do capítulo

[1] Dépri - Deprê, de deprimido.

Será que a bruxinha terá seu abraço?



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