Entre Segredos e Bonecas escrita por Lize Parili


Capítulo 66
Batendo luva




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#12/03#

— Sensei! Sensei! — chamou-o, — GUERIN! — mas apenas quanto gritou conseguiu despertar a atenção daquele cuja mente estava presa num momento no passado.

— Desculpe-me Sartre. Eu estava distraído observando o Nathaniel. — disse ele caminhando na direção do amigo, parando diante do ringue. — O que você quer?

— O garoto está chateado por causa do pai de novo? — perguntou o amigo e aluno, abaixando e apoiando os braços nas cordas.

— Não sei. Ele não disse nada. Mas alguma coisa aconteceu hoje. — respondeu sem tirar os olhos de seu aluno mais querido.

— Eu o tenho notado diferente na escola nos últimos dias! — comentou. — Ele anda agitado, frequentando a detenção, muito calado...

Ouvir aquilo fez Guerin se preocupar; apesar de Nath demonstrar todos os dias que havia mudado, que o garoto rebelde havia ficado no passado, seu sensei não vacilava com ele, não descuidava nenhum instante; ele confiava no garoto, mas tinha consciência que excesso de confiança gerava excesso de liberdade, assim como excesso de liberdade levava a perdição. Ele tinha jurado a mãe do garoto que manteria os olhos fixos nele, até que o garoto fosse capaz de erguer os próprios olhos para qualquer um, inclusive seu pai.

— Você acha que ele está se perdendo de novo, Sartre? — perguntou. — O pai dele tem aparecido na escola?

— Se perdendo? Nathaniel? Não; acho que não. Na verdade, ao que parece o problema desta vez não é a falta de atenção do Sr. Chevalier. Segundo Faraise, o problema do garoto usa saia. — comentou.

— Como assim? Ele voltou a maltratar a irmã?

— Você está parecendo a Sra. Chevalier quando fala do garoto. Guerin. — comentou rindo do amigo. — Vocês ainda acham que ele tem 13 anos e só pensa em luvas e sacos de pancada.

— Você está me dizendo que Nathaniel está namorando? — perguntou olhando com certo espanto, pois o garoto não havia lhe falado nada. E ele sempre lhe contava - quase -tudo. — Ah, garoto! — riu satisfeito olhando para Nathaniel, que era para ele o filho que nunca pôde ter por ter feito vasectomia antes mesmo dos 30 anos. — Ela é bonita, é uma garota descente? — perguntou cheio de curiosidade.

— Ei, calma ai cara. Faraise desconfia que Nathaniel está interessado numa colega, mas é só isso.

— Não faz diferença. Meu garoto está virando um homem. E se a garota for inteligente vai ficar com ele, não tem partido melhor naquela escola! — comentou, inflado.

— Você quer dizer o garoto dos Chevaliers? Certo? — Sartre temia que aquela ligação pai e filho de Nath e Guerin acabasse mal. — Não esqueça, Henri, Nathaniel é um Chevalier e não um Guerin. — lembrou-o.

— Fale logo, o que você quer comigo, Sartre? — indagou de cara fechada. Guerin sabia bem que Nathaniel não era seu filho e que a ligação deles era apenas por consideração, mas o amor que sentia pelo garoto não podia ser mudado dentro dele e ouvir os "lembretes" de Ailton o deixava irritado. Ele preferia cortar o assunto para não se estressar – ele não admitia que aquilo o magoava. — Por que me chamou?

— Eu preciso de alguém para bater luva com o novato. Ele precisa sentir como é o treino no ringue. — falou o instrutor, levantando-se. Ele sabia que aquela conversa havia se findado ali e que o amigo Henri havia perdido espaço par ao sensei Guerin.

— Se é só isso, eu resolvo. Agora desce daí e paga 200 de punho fechado! — ordenou ao seu aluno de longa data, que sabia bem que ele odiava ser alfinetado em relação ao Nathaniel.

— Porra Henri! Foi uma conversa entre amigos! — reclamou Ailton descendo do ringue enquanto Guerin subia. — Sacanagem isso!

— 300! E se reclamar de novo eu dobro! E não esqueça que aqui na academia é sensei!

Sartre proferiu um xingamento em sua mente, prometendo a si mesmo que seu amigo iria embora a pé naquela noite chuvosa e a cada flexão ele repetia isso a si mesmo.

— Ei, Nathaniel! Venha aqui! — chamou Guerin e o jovem atendeu, deixando o saco vermelho para trás. — Suba aqui e bata luva com o Ruan. Ele começou na 2ª feira e precisa sentir como é o treino no ringue.

— Ok, sensei. — respondeu passando por Ailton e suas flexões, subindo no ringue e recolocando suas luvas brancas que em dado momento tirou, pois queria sentir as pancadas, socando o saco apenas com a proteção das bandagens. Seu oponente já estava preparado, com as luvas, mordedor e protetor de cabeça. Nath não achou necessário usar o protetor de cabeça.

— Pega leve com ele, Nathaniel. Ele acabou de chegar e não quero espantá-lo. — brincou fazendo Nath rir um pouco, pois desde que chegou à academia sua cara de poucos amigos não deixou sua face.

O treino correu tranquilo durante os primeiros minutos, Nath pegou leve e Guerin observou cada um de seus golpes, até que Ruan, num golpe de sorte, numa distração de Nathaniel, o acertou no rosto.

— É para pegar leve, não para baixar a guarda, Nathaniel! — Guerin o orientou.

— Você está bem, blond? — perguntou o rapaz com o protetor de cabeça na mão. Ele o tirou para poder falar com Nath. — Foi mau cara, você baixou a guarda e eu entrei. Não quis te machucar! — justificou-se. Nath teria aceitado tranquilamente, mas olhar para aquele garoto de sotaque espanhol o chamando de blond, de rabo de cavalo vermelho e olhos acinzentados fez uma pequena nuvem cinza cobrir sua razão.

— Não se preocupe. Eu estou bem! — respondeu de cara fechada. — Você teve sorte. É melhor recolocar o capacete!

De repente a música do filme "Roque, o lutador" ecoou naquele ringue, era o celular de Guerin tocando e ao ver o nome no visor, desceu para atender, deixando os garotos sozinhos, pedindo novamente que Nath pegasse leve, mas que não baixasse a guarda, repetindo a segunda parte. Guerin devia ter percebido a mudança no olhar de seu aluno preferido, mas aquela ligação era importante e ele se desconcentrou.

Nath não saltitava sobre o tablado de madeira, ele dançava de tão ágil que era, Ruan não conseguia acompanhar seu ritmo e começou a ficar preocupado, pois as luvas brancas daquele loiro acertavam as azuis que ele estava usando tão rápido que ele nem se atrevia a tirá-las da frente do rosto, com medo de ser acertado.

Enquanto isso Guerin falava ao telefone, sem observar seu discípulo.

— Você sabe que sempre que ele está aborrecido com alguma coisa ele vem para cá. Não tem o porquê se preocupar. — Nicole estava muito preocupada.

— Mas ele estava tão nervoso. — contou sem conseguir entender a mudança súbita do filho naquela noite. — E não aconteceu nada aqui em casa para ele ficar daquele jeito.

— Não se preocupe, Nicole. Ele deve ter brigado com a namorada. — comentou. Antes ele tivesse guardado para si aquela informação, pois ele não tinha ideia do tamanho do ciúme daquela mãe, que sentiu uma fisgada no peito, louca para saber quem era a talzinha que estava fazendo o seu "garotinho" sofrer.

— Calma, Nicole. Eu não sei quem é a garota, e não, ele não me contou nada; estou apenas supondo. — disse com um sorriso nos lábios, achando graça no ciúme da mãe do garoto que naquele instante roubou novamente a atenção de seu sensei, que ao olhar para ele na intenção apenas de visualizar o tamanho do "garotinho" da mamãe, deu-se conta que não devia ter deixado o ringue.

— Depois nos falamos, Nicole. Preciso orientar um aluno agora. — disse desligando o celular sem nem mesmo esperar pelo "Tchau, Guerin, e cuide do meu bebê!" de sempre.

— NATHANIEL, PEGA LEVE COM O NOVATO! — gritou do outro lado, há uns 6 metros do ringue, vendo o trocar de pernas de seu aluno de nível intermediário, 6º khan hok, e que conhecia e reconhecia cada movimento, prevendo o que vinha em seguida. — NÃO FAZ ISSO! — pediu vendo a perna do garoto subir num circular perfeito e que foi de encontro ao rosto do oponente, acertando-o com o peito do pé, arrancando-lhe o capacete, levando aquele ruivo de sangue espanhol ao chão, atordoado. Nath percebeu que havia perdido o controle quando Guerin gritou do outro lado, mas não dava mais tempo de evitar o toque, no máximo conseguiu diminuir o impacto por ter contraído a perna, rendendo-lhe uma íngua na virilha.

Se fosse outra situação, Guerin teria elogiado seu aluno, mas naquela só o que o garoto ouviu foi repreensão. Ele subiu no ringue irritadíssimo com Nathaniel. Sartre já estava ajudando o novato.

— S-Sensei, e-eu... sinto muito. — tentou se desculpar. Ele realmente sentia muito. Ele só havia feito aquilo porque na sua mente enciumada e confusa a figura de Castiel o cegou.

— Vá para o chuveiro, Nathaniel! — ordenou Guerin enquanto ajudava Ruan a se sentar num banquinho na quina do ringue.

— S-Sensei, e-eu não queria mach...

— PARA O CHUVEIRO! — bradou interrompendo aquela justificativa. Guerin não queria desculpas, ele não ia aceitar desculpas.

Nathaniel deu as costas a eles e desceu do ringue arrancando as luvas, jogando-as pelo caminho, suas bandagens só não ficaram no caminho entre o ringue e o vestiário porque não conseguiu desenrolá-las totalmente das mãos antes de chegar ao chuveiro, cuja água quente que bateu em seu rosto levou para o ralo as lágrimas que ele não conseguiu mais segurar. Ele estava com a cabeça cheia demais.

Enquanto a água quente batia em suas costas ele terminou de tirar as bandagens, tirando sem seguida as meias especiais, o calção e por fim, o kruang azul amarrado em seu braço esquerdo, sendo que este ele não conseguiu jogar no chão, pois representava o tempo e o grau de habilidade que ele tinha no muay thai, e naquele momento significava que ele não podia ter perdido o controle, mesmo se o garoto do ringue fosse o Castiel, ele tinha que ter se controlado.

Após se trocar Nathaniel permaneceu sentado no banco do vestiário, de frente ao seu armário – ele era o único aluno da academia que tinha um armário pessoal, ao lado do armário de Guerin e Sartre –. Ele estava sem coragem de encarar Guerin, ele estava sem coragem de encarar Ruan, porque sabia que precisava pedir desculpas, mas como dizer que viu nele a imagem de outro cara, um ruivo desgraçado que estava tentando tirar dele a única garota que conseguiu tirar sua atenção dos livros, a única garota que conseguiu invadir sua mente com tanta força que ele não conseguia pensar em mais nada a não ser nela.

— O QUE DEU EM VOCÊ, GAROTO? — questionou Guerin ao entrar no vestiário atrás de seu discípulo de cabeça quente. — Que descontrole foi aquele no ringue? —diminuindo o tom de voz ao achá-lo, entregando-lhe as luvas que estavam jogadas pelo caminho. Mas manteve-se austero.

— D-Desculpe-me, sensei. Eu estava irritado e acabei extravasando no ringue. — justificou-se sem conseguir olhar nos olhos de seu sensei.

— Extravasando? Você quase nocauteou um novato que nem mesmo o kruang branco tem ainda, porque está irritado e precisava extravasar? — questionou, tomando dele seu bracelete de cordão trançado azul. — Olha isso aqui, Nathaniel! —obrigou-o a olhar para seu kruang. — Você é um aluno de nível intermediário! — lembrou-o. — Essa sua justificativa é incabível.

— E-Eu s-sinto muito, sensei. — desculpou-se novamente.

— Sacos de pancada são para extravasar. O ringue é para treino! Você sabe bem disso.

Guerin estava odiando repreender Nathaniel. Desde que o rapaz começou os treinos ele nunca precisou fazer aquilo, no máximo algumas chamadas de atenção, mas nunca uma repreensão mais severa, pois o garoto sempre foi bem centrado em suas responsabilidades e sempre se policiou em relação ao comportamento. Rara as vezes que perdeu o controle e ainda assim, coisas tolas, como uma discussão com a irmã ou um bater de porta. Ele sempre extravasava sua raiva e suas frustrações nos sacos de pancada.

Para Guerin, ver a face triste de Nathaniel era desolador, mas ele não podia deixar o seu carinho fraternal pelo garoto se sobrepor ao seu dever de mentor. E para Nath, ser repreendido daquela forma por seu sensei era dolorido demais. Desapontá-lo era tudo o que ele não queria. Ele estava envergonhado e não elevou os olhos para ele em nenhum momento daquela conversa, e cada vez que Guerin o obrigava a olhá-lo, ele desvia o olhar para os lados.

— Nathaniel! Olhe para mim! — pediu.

O que mais doía em Guerin era a insegurança de Nathaniel. Ele já tinha melhorado muito, já era mais confiante e decidido do que quando o conheceu, mas ainda tinha muito a melhorar. Guerin não queria que seu discípulo tivesse uma vida repleta de frustrações, tampouco que esta fosse conduzida por outras pessoas, ele queria que Nath tivesse autonomia, austeridade e coragem para ser quem ele quisesse ser e fazer o que desejasse, desde que fosse correto.

— Eu sei que quando estamos emocionalmente mexidos é difícil olhar para o outro, mas é isso que um homem faz, ele encara a vida e seus problemas de frente, sem desviar o olhar; então respira fundo, segura a onda e olha para mim. Como um homem!

Nathaniel respirou fundo, engoliu o nó que tinha na garganta e travando o maxilar voltou seus olhos para sue mestre, que sentiu um aperto no peito ao perceber o esforço enorme que Nath estava fazendo para não chorar. Ele abrandou com o garoto, mas não perdeu o foco, só deixou de lado a rispidez.

— Presta atenção, Nathaniel. Sempre que conversar com alguém, não importa quem seja nem o teor da conversa, sempre o olhe nos olhos. Não importa o que esteja sentindo ou pensando naquele momento, nunca desvie o olhar, por mais difícil que a conversa seja. Nunca seja submisso a ninguém. — ensinou-o secando-lhe as lágrimas que lhe escapavam. — Seja forte e confiante. Se errou, aguente a vergonha de cabeça erguida e assuma as consequencias do seu erro como homem. Se o outro errou, imponha-se, faça-o saber das consequências do erro dele. Mas nunca, ouviu bem, nunca abaixe o olhar ou o desvie. Isso é sinal de fraqueza, insegurança e submissão. — fez-se entender.

— M-Mas o senhor sempre diz que ter medo é normal. — comentou Nath meio confuso, sentindo-se um pouco mais calmo.

— Sim. Mas deixar que ele te domine é ser fraco e ser fraco não é normal. O medo serve para nos fortalecer e não para nos enfraquecer. Seja sábio. Se teme a consequência, não cometa o erro, mas se o cometer, seja corajoso e enfrente, e use de sabedoria para aprender com este erro. — ensinou-o, devolvendo-lhe seu kruang.

— Agora vá para casa. Você precisa refletir sozinho e há esta hora seu quarto é o melhor lugar. Além do mais, sua mãe está preocupada.

— Ela te ligou? — perguntou com cara de "desculpe por minha mãe ser tão possessiva às vezes."

— Se você atendesse o celular ela não precisaria ter me ligado! — brincou com o aluno que lembrou que havia quebrado seu celular novinho e de última geração. Seu pai ia ficar uma fera quando descobrisse. Mal sabia ele que Jhonatan já estava uma fera.

Nath levantou, despediu-se de Guerin e saiu, mas antes que atravessasse a porta do vestiário este o chamou.

— Ele está na enfermaria, com Sartre. — informou, referindo-se ao novato. Nath foi até lá e se desculpou, e naquele momento, mais calmo e com a cabeça no lugar, ele viu que tirando a cor do cabelo e dos olhos, Ruan não parecia em nada com Cast. Ele era mais baixo, ruivo natural, cabelo cacheados, que por estarem presos ele não percebeu, tinha sardas e um sorriso nada debochado, pelo contrário, muito expressivo.

— Eu não aceito suas desculpas... — disse Ruan sério, aproximando-se dele, que entendeu, apesar de sentir um peso na consciência. — se você não ter que me ensinar a chutar daquele jeito. Que pancada, cara! — falou, rindo da situação. Nath não aguentou e riu de tão aliviado. Ruan levou tudo na esportiva. Ali nascia uma nova amizade.

Sartre levou Nath para casa, protegendo-o da chuva, deixando seu querido amigo e sensei a mercê daquele aguadeiro gelado.

Caminhada, ponto, ônibus, ponto, caminhada, condomínio. Guerin chegou no seu apartamento ensopado. No dia seguinte ele levou o carro para a oficina.

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Notas finais do capítulo

No Muay Thai não tem troca de faixa nem outro sistema de graduação como no karate e outros esportes de luta. O que existe é o kruang, um bracelete feito de cordão trançado que vai do branco ao ouro e prata, mas é uma graduação simbólica, só para diferenciar o grau de habilidade que o lutador tem. Na verdade eles são classificados apenas como Iniciante, Intermediário, Avançado e os graus de professor, do instrutor (prof. em treinamento) ao grão-mestre. Na Tailândia eles são definidos apenas como amadores e profissionais. Eles não dão importância para as cores do kruang. O kruang colorido foi inserido apenas para facilitar na identificação dos praticantes e acredito que para, de certa forma, agradá-los, pois devido a cultura da graduação, das trocas de faixa, os praticantes de esportes de luta gostam de fazer isso, pois mostra o quanto estão evoluindo e isso estimula (essa é minha humilde opinião).

Blond era a forma que o Castiel chamava o Nathaniel quando eram amigos.



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