Entre Segredos e Bonecas escrita por Lize Parili


Capítulo 5
O primeiro dia da minha nova vida.


Notas iniciais do capítulo

Emília Solles estava começando, ao lado da tia, uma nova vida. Tudo seria diferente, só não havia como saber se para melhor ou pior. Tudo indicava que seria para melhor... isso se suas aflições lhe permitissem...

REVISADO 19/12/16



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#13/01#

Era manhã de domingo, os raios de sol batiam na janela, loucos para adentrarem o quarto de Emília, que há semanas não sabia o que era dormir tranquilamente. Assim que o relógio marcou 8h00 Maitê entrou e sem fazer barulho abriu a janela de madeira e a cortina blackout branca por baixo da cortina de tecido semitransparente, depois foi para cozinha preparar o breakfast. O frio ainda estava presente, embora o inverno já estivesse dizendo adeus. O termômetro do corredor marcava 20°C do lado de dentro do prédio, mas do lado de fora beirava os 8°C. Por sorte o zelador tinha arrumado o aquecedor, que de tão velho, vivia dando defeito.

Assim que a luz daquela manhã adentrou no quarto e a brisa balançou a cortina cor de rosa, Emília despertou. Ela odiava quando a mãe abria a janela do quarto para obrigá-la a levantar da cama no domingo, dia que poderia dormir até mais tarde, mas naquela manhã foi diferente, era o primeiro dia da sua nova vida e a ansiedade lhe despertara. Mesmo que a tia não tivesse aberto a janela ela teria acordado cedo.

Depois de arrumar a cama, tomar uma ducha quente para despertar totalmente e escovar os dentes, Emília abriu o guarda-roupa para escolher uma roupa para passar o dia, vendo sua camiseta da antiga escola assinada pelos amigos. Naquele momento ela se deu conta que no dia seguinte ia começar a frequentar a Escola Secundária Sweet Amoris (École Secundaire[1], Sweet Amoris), uma das escolas mais conceituadas de Nice, conhecida pela ótima qualidade de ensino e por seus alunos terem uma das melhores formações acadêmicas de nível médio da região. Como ela daria conta dos estudos? Só sua tia mesmo para matriculá-la numa escola como aquela. E para piorar, além do fato que ela não teria os dois nerds da sua vida, Ken e Ana, para ajudá-la, suas roupas não combinavam com aquela escola, que devia ser repleta de patricinhas e mauricinhos. Numa fração de segundos toda a sua animação se transformou em desânimo.

— Emília! O café já está na mesa! Venha comer antes que eu coma tudo sozinha. — brincou Maitê, da cozinha.

Emília vestiu um moletom rosa escuro, calçou sua pantufa de gatinho, prendeu o cabelo e foi para a cozinha. Ela estava novamente cabisbaixa, triste, não tanto quanto antes, mas era percebível que alguma coisa a incomodava, até porque, ela não conseguia disfarçar suas emoções, por mais que tentasse.

— O que foi, Emília? Por que essa cara? — perguntou a tia, servindo-lhe o café da manhã. — Ainda está triste por ontem?

— Não é nada, tia! Só estou cansada. — respondeu a garota, que não gostava de conversar sobre seus problemas com ninguém além dos seus melhores amigos, que daquela vez estavam longe demais para ouvi-la. E ela também não queria chatear a tia com seus anseios sobre a nova escola, pois com certeza ela devia ter movido céus e terra para lhe conseguir uma bolsa de estudos integral na Sweet Amoris.

— Você não está com cara de quem dormiu mal. Isso é cara de quem está com algum problema!

Apesar da insistência da tia, Emília não contou o que lhe afligia, inventando uma desculpa qualquer. Maitê não insistiu, pois não queria forçar um desabafo.

Depois de tomar seu café e recolher a louça para a tia, que a liberou de lavá-la, Emília voltou para o seu quarto, abriu novamente o guarda-roupa e tirou todas as roupas que ela poderia usar na escola, jogando-as sobre a cama, olhando uma por uma, tentando montar looks diferentes; mas estava difícil fazer combinações, pois nada lhe agradava aos olhos. Na verdade, ela estava enjoada daquelas roupas, básicas de estações passadas; tudo lhe lembrava sua antiga vida, até porque, sua mãe é quem comprava suas roupas e ela parecia esquecer que a filha já não era mais uma criança. Mesmo as poucas peças novas que sua genitora comprou no Natal, embora lindas, pareciam ter sido compradas numa loja infantil.

Sem saber o que fazer e com medo de ser motivo de gozação na escola, pegou o celular e ligou para Mila, sua amiga mais antenada quando se tratava de moda. Em poucos minutos o quarteto estava reunido no grupo do Whats.

Emília expôs seu problema aos amigos, mas apenas Mila entendia sua aflição, pois tanto Ana quanto Ken não se importavam com o que estava ou não na moda, escolhendo as roupas mais pelo gosto pessoal e estilo próprio e não pelas tendências da época. Para eles a amiga estava se preocupando à toa.

— Como se preocupando à toa? A Sweet Amoris não é o Sainte Ida de Lorraine, que a Sol estudou a vida toda e conhece todo mundo! Ela não pode aparecer vestida como uma mendiga! — enviou Mila, seu áudio, incomodada, como se aquele dilema fosse dela e não da amiga. 

— Nossa, Mila, como você é exagerada! — repreendeu Ana, a mais centrada dentre as três garotas daquele quarteto. Ela gostava de se vestir bem, mas não ligava para moda e suas tendências. Ela era a mais madura dos quatro, apesar de terem a mesma idade. — Você fala como se a Sol só tivesse farrapos no guarda-roupa, o que não é verdade!

— Eu não sou exagerada, Ana, sou realista! As roupas que a Sol tem já são de estações passadas. — disse Mila, que gastava toda sua mesada com roupas, calçados, acessórios, maquiagens e coisas do tipo. — O guarda-roupa dela está totalmente fora de moda!

— Calma meninas. Eu preciso de conselhos e não que vocês briguem por causa do meu guarda-roupa.

— Desculpe-me, Sol. Mas a Mila é exagerada demais. Suas roupas combinam com você e pelo que me lembro, sua mãe e sua tia lhe compraram roupas novas no Natal e ainda estamos em janeiro para que tudo tenha ficado tão obsoleto assim.

— Sim, Ana, é verdade, minhas roupas não estão velhas, mas... — como ela diria aquilo. Até aquela manhã ela se sentia à vontade usando as roupas que a mãe lhe comprava, mesmo parecendo peças de loja infantil. Mas naquele momento aquilo parecia lhe incomodar. Ela não queria mais parecer uma garotinha. Sim, ela gostava de looks simples e confortáveis, mas já tinha 14 anos e queria se vestir de acordo com sua idade. — Droga! Você, todos vocês sabem que minha mãe parou no tempo no quesito moda e acha que eu ainda tenho 12 anos. Graças a Deus minha tia me deu roupas lindas, mas eu usei tanto nestes últimos três meses que estão surradas.

— Eu não vejo problemas com as suas roupas, Sol. — disse Ken, o único garoto daquele grupo barulhento. — Eu sempre te achei linda.

— Obrigada, Kenzito, mas... é diferente. — respondeu ela, que não levava a opinião do amigo a sério quando se tratava de moda, pois ele mesmo não tinha gosto para se vestir.

— Como assim, diferente? — perguntou o rapaz, que se preocupava com ela. — Você é a mesma Solzinha! Por que aí seria diferente daqui?

Sol apertou o botão de gravação, mas sem saber como se justificar, calou-se. Eles não a entenderiam, ou pior, entendê-la-iam e diriam que estava fazendo tempestade num copo d'água, como sempre.

— O Ken tem razão, Sol. E novamente digo, você está se preocupando à toa. Você sabe combinar bem as suas roupas e nunca inculcou com isso antes. Acho que você só está nervosa com a nova escola, que se duvidar, deve até fazer uso de uniforme, como aqui no Sainte Ida. 

Embora Ana quase sempre concordasse com o que o amigo Ken dizia, raramente discordando dele, pois de certa forma, eram parecidos, Sol sabia que ela estava certa. Ir para a Sweet Amoris a deixara nervosa demais e havia feito nascer dentro dela uma necessidade de impressionar seus possíveis futuros colegas de turma. Ela não queria ser a novata prato cheio para zoeira, ela queria ser a novata que se enturmava rapidinho.

— Ai, meu JC[2]. Vocês dois não sabem de nada. Dois nerds. Sem ofensas best friends, amo vocês! Mas vamos imaginar que a escola não use uniforme, e mesmo que use, ela não vai receber já no primeiro dia de aula. A Solzinha precisa estar prevenida. — se pudesse, Mila enviava parte do seu guarda-roupa emprestado para Emília naquele instante, pelo celular.

— Sol? Você ainda está aí? — como a amiga não enviou nenhum áudio ou emoticon indicando como se sentia, Ken teve medo dela ter saído da conversa por eles não a estarem ajudando em nada. Ao ver um smiley com a carinha de abatido ele se chateou por não estar perto dela.

— Eu queria estar aí com você, Sol. Sei que não entendo de moda como as meninas, mas eu tentaria te fazer sorrir com uns bombons. Você sempre fica mais animada depois de comer uns bombons.

— Você já me fez sorrir, Ken. Seu carinho vale mais que um bombom.

O rapaz pode sentir o sorriso dela através do tom de sua voz no áudio e só isso bastou para seu coração bater forte.

— Ela acha que meu carinho por ela era melhor que um bombom. — repetiu em voz alta, sozinho na varanda da sua casa, feliz.

— Senti um clima agora... Querem que Ana e eu nos retiremos? — Mila não podia perder a chance de dar uma indiretinha.

Não era segredo para ninguém que Ken era apaixonado pela Emília, mas como esta sempre o manteve na friendzone, o rapaz nunca se declarou abertamente, apesar de sempre demonstrar seus sentimentos através das suas ações. Da mesma forma, Emília, embora soubesse dos sentimentos do rapaz, sempre se fez de desentendida, pois o amava como amigo e não queria magoá-lo, tampouco perder sua amizade. Para Mila foi uma surpresa ela falar aquilo e num tom tão... saudosista, como se não tivessem se visto - e se despedido - no dia anterior àquele, mas há meses.

Ken não disse nada, apenas enviou uma carinha envergonhada e uma sorridente, juntas, mostrando que ficou sem graça com o comentário da amiga. Fora que por mais que ele adorasse a ideia de que o deixassem conversar sozinho com a Sol, ele nem saberia o que dizer. De certo se calaria, pois uma coisa era eles conversarem como amigos, outra era uma conversa com clima de romance. Uma coisa era ele dizer que gostava dela sabendo que ela levaria para o lado da amizade, outra era ele fazer isso sabendo que ela entenderia como declaração de amor.

O bom de conversas por celular era não ser visto. Ken estava com a face inteira ruborizada e quente.

— Por que você não pede para sua tia lhe comprar algumas roupas? — sugeriu Mila, sendo novamente repreendida por Ana. Ken estava repetindo o áudio da Sol dizendo que ele era melhor que um bombom.

— Ficou louca, vacilona! — disse Ana. — Ela mal chegou e já vai abusar da boa vontade da tia!

— A Ana tem razão, Mila. Eu não posso pedir isso à minha tia. Ela já gastou demais comigo. Tudo no meu quarto é novo. E provavelmente ela vai ter que pagar pelo meu material e o uniforme, se tiver, que não devem ser baratos.

— Mas será que nem um único look? — insistiu Mila, que parecia mais inconformada do que a própria Emília. — Ou uma peça chave, que você possa combinar com o que você já tem?

— Minha tia já vai ter muitos gastos comigo sem precisar renovar meu guarda-roupa, Mila. Não vou pedir nada a ela.

Antes de sair para trabalhar, Maitê foi até o quarto de Emília para se despedir, mas ao parar diante da porta entreaberta ouviu parte da conversa dela com os amigos - umas das desvantagens de conversar por áudio ao invés de mensagens de texto -, entendendo o motivo da tristeza da sobrinha. Ela bateu na porta e entrou, despediu-se e foi embora, sem dizer que havia ouvido a conversa. Mas avisou que iria buscá-la para almoçarem juntas.

Emília passou parte da manhã pensando no seu guarda-roupa. Ter conversado com os amigos não ajudou em nada, só a deixou mais pilhada. A única coisa que a acalmava quando estava estressada era o chocolate, mas não havia nenhum ao seu alcance, e daquela vez não tinha mais o Ken para manter o seu estoque cheio - ele não devia ter falado de bombons.

— Eu vou enlouquecer se ficar aqui! — disse a si mesma, levantando-se da cama e trocando de roupa, saindo em seguida para caminhar.

Como ainda estava muito cedo para o almoço, Emília foi conhecer as redondezas, pois antes sua tia morava em outra região de Nice. Tinha tanto o que se ver, mas nada melhor que começar pelo Parc Castel des Deux-Rois[3].

O parque não ficava longe, pelo contrário, 3 minutos de caminhada eram o suficiente para chegar ao local. Na verdade, o parque ficava atrás do prédio que a tia dela morava. A rua que ficava entre o prédio e o parque era dividida ao meio por um canteiro de árvores e arbustos protegidos por muros feitos de pedra, de aproximadamente 2 metros de altura. Da janela do apartamento era como olhar para um longo vaso rústico em forma de corredor, cujas árvores e arbustos altos, somados a vegetação do próprio parque, davam àquela rua um perfume de relva. A entrada da garagem do prédio ficava para aquela rua.

Sol caminhou por aquela estreita rua - por causa da divisão -, encostadinha do muro, deixando a passagem livre para os carros e motos que por ali passavam, quase todos de moradores daquele lugar, sentindo as folhas de um galho baixo tocarem seu rosto ao se distrair por se preocupar com um pequeno smart branco que passou do seu lado. Não teve como não notar que não haviam pontos de ônibus naquela rua, o que significava que ela teria que dar uma boa caminhada até o mais próximo, caso precisasse fazer uso deste para ir à escola num dia de chuva e outros lugares.

Assim que chegou ao parque ela lembrou da única vez em que esteve lá, quando criança. Foi na última visita que fez a avó, que falecera pouco tempo depois. Quando ela avistou o playground perto do laguinho, sorriu, lembrando de ter brincado nele. Ela não se lembrava do cheiro de planta que o lugar tinha, mas se lembrava da textura da grama sob os pés; e descalça foi caminhando pelo lugar, até que encontrou alguns degraus e estes a levaram para a outra entrada do parque. Ao sair ela se deparou com uma avenida e a rodovia. Perto dali tinha um ponto de ônibus.

— Finalmente um ponto de ônibus. Espero que aqui passe a linha que vai até a escola. — disse a si mesma, limpando os pés e calçando sua sandália.

Sem relógio ela nem lembrou da hora e que ao meio dia sua tia iria buscá-la para almoçar. Empolgada com sua nova cidade ela continuou caminhando, seguindo a rodovia e observando tudo a sua volta, até chegar a uma rotatória. Lá ela entrou num restaurante de esquina e pediu para usar o toilette, depois, ao sair, resolveu seguir aquela rua, caminhando por mais uns 8 minutos, até chegar a Promenade. Desse local ela lembrava. Sua tia já a havia levado lá algumas vezes. Apesar delas terem passado mais tempo no jardim próximo a praia que a tia tanto amava, ela lembrava daquele local onde ela estava por causa do Teatro Nacional de Nice. Ela assistiu um musical infantil que marcou sua infância, pois além de "O Mágico de Oz" ser a sua história favorita, foi a única vez que a mãe fez um programa apenas de mãe e filha por iniciativa totalmente dela. Sempre que elas saiam estavam na companhia de outras pessoas da família e quase sempre com um de seus amigos juntos, para lhe fazer companhia, geralmente o Ken, às vezes, além dele, Mila e Ana. Desta forma a mãe não precisava lhe dar atenção. Por sorte, justamente naquela semana em que estavam em Nice, estava em cartaz aquela peça e com uma atriz adolescente negra e talentosa como a Diana Ross, atriz que interpretou a Dorothy no filme favorito da mãe dela, em que o espantalho era o Michael Jackson.

Depois de descansar por uns 5 minutos ela decidiu ir embora, pois estava cansada de andar. Mas o barulho de música do tipo circense, vindo de algum lugar próximo, a seduziu. Ela caminhou por mais uma quadra, avistando do meio dela um grupo grande de pessoas, que riam sem parar. Ao se aproximar não se conteve e riu também. Uma cafeteria estava sendo reinaugurada e um palhaço de rua fazia seu show para chamar a atenção dos clientes e pessoas que por ali passavam. Mas o que realmente lhe chamou a atenção foi uma loja de roupas femininas na esquina daquele cruzamento. As roupas na vitrine eram maravilhosas, de um estilo único, mas os valores marcados nas etiquetas não eram para o seu bolso. Elas não eram caras comparando a Dupont[4], marca que sua mãe e até sua tia gostavam, mas eram caras comparadas com as lojas que ela estava acostumada a comprar suas roupas. Não dava nem para cogitar pedir à tia que lhe comprasse roupas naquela loja; seria um abuso. Ela não tinha essa obrigação.

— E pensar que eu poderia comprar se... — pensou alto. — Se liga, Emília Solles! Não adianta remoer o passado. — repreendendo-se antes mesmo de concluir o pensamento. — O que não pode ser mudado, não deve nem ser lembrado! Põe isso na sua cabeça! — saindo em seguida da frente da loja.

Ouvindo o estômago roncar ela perguntou a hora para uma senhora que ria das palhaçadas do homem do macacão laranja e apito na boca, e ao ouvir 11h15, arregalou os olhos e correu para casa. Sua tia saía ao meio dia em ponto. Por sorte o percurso de onde estava até o parque era aproximadamente 16 minutos se apertasse o passo e não parasse por nada - salvo nos cruzamentos, claro. 20 minutos depois ela já estava passando pela portaria do prédio, subindo os degraus de dois em dois, pois queria tomar um banho antes de sair para almoçar.

De banho tomado e roupa trocada, ela desceu e esperou a tia, sentada num banco de ripas, igual aos das praças, na varanda lateral do prédio, que dava acesso tanto a rua da frente onde ficava a entrada principal, quanto a rua de trás, onde ficava a entrada da garagem. Com os olhos voltados para cima ela observou aquele antigo edifício de quatro andares, sem elevador e com 4 apartamentos por andar, totalizando 12 famílias residindo nele, pois o piso térreo era na verdade a garagem, o almoxarifado e a lavanderia.

— Então esta é a minha nova casa. Um prédio antigo que precisa ser pintado, pois além da cor ser horrível, está desbotada, e com uma cerca enferrujada protegendo a varanda. — disse a si mesma, reconhecendo seu novo lar. — Será que eu aguento subir e descer 2 lances de escadas todos os dias? — perguntou-se, com preguiça até de pensar naquilo. — Bom, pelo menos vai ajudar a manter a forma, já que fiz a besteira de deixar minha bicicleta em casa. — concluiu, com um sorriso minguado nos lábios e uma dúvida no coração. Será que as coisas seriam diferentes naquela nova vida? Será que a distância faria sua mãe sentir saudades? Porque ela já sentia dela!

De pé e com os braços cruzados ela esperou a tia, olhando o movimento da rua de trás do prédio, vendo-a chegar com seu carro, passado 10 minutos do meio dia, correndo, pois tinha apenas uma hora e meia de almoço e muita coisa para fazer neste período.

Primeiro Maitê passou no banco e sacou dinheiro para as despesas da semana, depois levou Emília para o shopping. Ela corria com o carro e sua habilidade ao volante era igual à de um motorista recém habilitado, mas sem o medo. A jovem Solles segurou forte no cinto de segurança desejando chegar ao destino logo, pois a cada fininha que a tia tirava de outro veículo ela achava que ia morrer.

— Calma, minha querida. Sei que não sou nenhum piloto de Fórmula 1, mas em 17 anos de direção, nunca sofri nenhum acidente. Só umas batidinhas na hora de estacionar. — disse Maitê, tentando tranquilizar a sobrinha. — Mas a culpa é dos outros motoristas, que não deixam espaço o suficiente para eu me encaixar entre eles. — concluiu, fazendo a sobrinha rir. É como dizem, atrás do volante todo mundo se transforma.

Chegando ao shopping elas foram direto para a praça de alimentação, indo a um restaurante self service, pois o tempo delas era curto.

Enquanto almoçavam, Maitê tentou conversar com a sobrinha sobre a conversa que ela e a mãe tiveram, mas Emília não queria falar sobre aquilo. Ela insistiu, mas a garota não se sentia bem em expor seus sentimentos, principalmente quando estes lhe causavam dor.

— Desculpe-me, tia. Não é que eu não confie na senhora, mas... — tentou justificar, mas até isso lhe causava certo incômodo, preferindo ficar em silêncio. Silêncio este que a acompanhou por toda sua vida.

— Minha querida, eu te entendo. Não é fácil falar sobre o que nos aflige e até o que nos alegra depois de passar anos guardando tudo para nós mesmos. — disse Maitê a ela, pois sabia que a irmã não conversava com a filha sobre nada, salvo para questionar, cobrar ou ordenar alguma coisa. — E eu sei que apesar de você confiar em mim, não é como conversar com seus amigos. Eles estavam sempre do seu lado, enquanto eu, só de vez em quando.

Emília sentiu um nó na garganta, ela queria conseguir se abrir com a tia da mesma forma que se abria com os amigos, mas sua vida toda teve que conviver com a indiferença da mãe. Ela havia aprendido a se calar. Talvez se ela tivesse convivido bem mais com a tia tivesse aprendido a confiar nela da mesma forma que confiava naquele trio.

— Vamos mudar de assunto, tia. Por favor! — pediu, começando a sentir aquele nó lhe impedir de comer. — Tem coisas que machucam só em pensar, então prefiro não dizê-las. — justificou, com os olhos a marejar.

— Ok, minha querida. Sem tristeza, nem hoje, nem noutro dia qualquer! — falou, preocupando-se com a reação que a sobrinha teve só em pensar sobre suas aflições. Ela teria que fazer alguma coisa para aliviar aquilo, mas o quê? Ela pensaria em alguma coisa.

Terminado o almoço, Maitê tinha que retornar ao trabalho, mas ao invés de levar Emília para casa, deu a ela alguns Euros.

— Eu sei que não é muito, mas darão para você comprar algumas roupas, talvez umas três peças. — disse-lhe, colocando as notas na mão dela.

— Tia, eu não pos... — dizia Emília, sendo interrompida pela tia, que não queria saber de recusa.

— Eu sei que o novo muitas vezes nos assusta, principalmente quem não está acostumada com ele, como você. Assim como eu também sei que para ter espaço para o novo em nossas vidas, o velho tem que sair. Então, rode as lojas e escolha algo novo para o seu primeiro dia de aula na escola nova. Deixe o velho para os outros dias, quando o baque da primeira impressão não existir mais. E com o tempo, e o seu merecimento, claro, nós vamos trocando tudo.

Emília ficou tão feliz que abraçou a tia com força, sendo acolhida com a mesma força.

— Mas lembre-se de três coisas muito importantes. — avisou-a. — 1ª: Você é o que você faz, diz e sente, não o que veste! Quem gostar de você de verdade, será por estas coisas, e não por suas roupas! 2ª: Saiba usar o seu dinheiro, do contrário ele vai agir contra você! e 3ª: Nem pense em chegar em casa depois das 18h00 sem me pedir permissão antes. Eu sou a única que chega tarde naquela casa, ouviu bem, mocinha!

— Sim, tia. E obrigada! — disse a jovem, beijando-lhe a face, indo a passos rápidos na direção das lojas de roupas, com um sorriso iluminado no rosto.

No estacionamento, enquanto manobrava o carro para sair, Maitê recebeu uma ligação, e ao ver o nome no visor do aparelho não hesitou em atender, tendo uma conversa superficial, como se a pessoa do outro lado da linha não quisesse se estender.

— Eu já estava me perguntando, quando você me ligaria!

— Eu só liguei para avisar que já está tudo acertado na escola. — informou a pessoa que ligou. — Espero que a menina saiba aproveitar a chance.

— Eu agradeço novamente pelo que está fazendo. Você não tem... — tentou agradecer, sendo interrompida pela outra pessoa.

— Agora já está feito! Mas já aviso, não tente me enganar! — disse-lhe, de forma ríspida, fazendo Maitê responder com a mesma rispidez:

— Eu não sou nenhuma golpista!

— É bom mesmo! Amanhã entro em contato novamente para saber se tudo correu como o esperado. — avisou, encerrando a ligação.

— Mas que grosseria! — resmungou Maitê, ao ter a ligação encerrada na sua cara, sem nem mesmo um boa tarde, até logo, adeus ou coisa parecida. Mas não se abalou, continuando seu caminho, correndo para o trabalho. Uma fada madrinha lhe esperava para receber as últimas orientações; uma pequena princesinha festejaria seu 6º aniversário no Buffet e tudo tinha que estar impecável, principalmente o pessoal da animação.

No shopping, Emília não poupou a sola dos sapatos. Andou por todas as lojas, decidindo por gastar os seus Euros na C&A, pois tinha umas roupas legais e o dinheiro renderia mais do que em outras lojas. Ela experimentou tudo o que viu pela frente, tentando seguir o conselho de Mila, escolher peças chaves que pudessem combinar com tudo o que ela já tinha, mas que peças chaves seriam estas? Ela não fazia a mínima ideia, então pediu ajuda a uma das vendedoras. Ao todo ela conseguiu comprar 4 peças novas para o seu vestuário, um jeans, duas blusas e um bolerinho. Seu dinheiro havia rendido.

Ao sair da loja percebeu que ficou horas demais no shopping, logo daria 18h00 e sua tia havia deixado bem claro que ela deveria estar em casa antes disso. Ela saiu correndo para não perder o horário, esbarrando num rapaz que saía da escada rolante, irritando-o. Mas sua pressa era tanta que não parou, desculpando-se ainda correndo, deixando para trás seu prendedor de cabelo em forma de crucifixo.

— O que foi que você já está de cara feia, Castiel? — perguntou Lysandre ao amigo, entregando-lhe a sacola da loja de instrumentos musicais. — Eu já comprei a alça nova da sua guitarra! — justificou-se, achando que sua demora era o motivo.

— Nada! Só uma garota maluca que passou correndo e quase me derrubou. — resmungou, e o amigo perguntou se aquilo era motivo para se irritar tanto.

— Tem razão! — disse ele, acalmando-se. — Espero que tenha comprado a alça certa. Não gosto de porcarias! — ironizou, rindo, conferindo e vendo que era exatamente como a que foi perdida, preta e de couro verdadeiro.

— E o que é isso na sua mão? — perguntou Lysandre vendo que Castiel segurava uma presilha tic tac com um crucifixo prateado preso nela. — É um enfeite de cabelo?

— Isso mesmo! A louca deixou cair. — respondeu o ruivo com um sorriso malicioso nos lábios. — Agora me pertence!

— Mas o que você vai fazer com uma presilha de menina, Castiel? — questionou, tentando entender o amigo.

— Você já vai ver. — respondeu, pegando a alça da guitarra da sacola. Ele prendeu o crucifixo na alça, como um detalhe especial. — Quem sabe me dá sorte! — comentou, com o mesmo sorriso malicioso.

— Você não tem jeito mesmo, Castiel! — comentou Lysandre, que conhecia o amigo melhor que qualquer outro. Ele sabia que aquilo significava que o ruivo achara a garota interessante, mas que não adiantava perguntar, pois ele negaria.

— Vamos embora, Lysandre. — chamou, direcionando-se para a saída.

— A garota pode dar falta da presilha e voltar para procurar!

— Problema dela! — respondeu com cara de pouco caso, mas Lysandre, que não tinha aquele tipo de conduta, sugeriu que esperassem um pouco para poder devolvê-la.

— Mas é só uma presilha. Que garota perde tempo procurando uma presilha? — reclamou, mas Lysandre insistiu e Castiel concordou, a contra gosto.

Do lado de fora do shopping, Emília ensaiava para ligar para sua tia, pois se deu conta que gastou o dinheiro todo, ficando sem nenhum centavo, nem mesmo para pagar o ônibus. Mas depois de pensar por alguns minutos, criou coragem e ligou.

Maitê já havia saído do trabalho e estava a caminho de casa. Emília não havia seguido dois de seus conselhos, levando-a a levar uma pequena repreensão, que na verdade foi uma orientação. O horário deveria ser respeitado, sempre, pois ela não tinha idade para ficar até tarde na rua. E economizar para eventualidades e emergências era importante, pois dinheiro era algo que ela sempre precisaria e se não soubesse poupar, passaria apertos, como não poder pegar um ônibus.

— Se eu não pudesse vir te buscar, como se viraria?

No caminho de volta pra casa, a jovem conheceu as outras regras, sendo que uma delas a tia repetiu diversas vezes, deixando claro sua elevada importância: Não levar garotos para casa se ela não estiver presente.

Enquanto isso, dentro do shopping, os rapazes esperavam.

Passado meia hora, Castiel levantou do banco e chamou Lysandre para irem embora, visivelmente irritado. Ele havia perdido seu tempo.

— Eu vou embora, Lysandre! Se quiser, fique aí. Pegue esta porcaria. Devolva-a você mesmo se encontrar a dona! — disse, tirando a presilha da alça da guitarra, entregando-a para o amigo.

— Mas quem esbarrou com ela foi você, não eu! — falou Lysandre, sem se alterar. A calma era sua segunda maior qualidade, perdendo apenas para sua gentileza. — E eu vou acabar perdendo, ela é muito pequena.

— Não vai ficar com ela? — perguntou o ruivo, sem nem mesmo dar tempo para uma resposta, pegando-a da mão dele, recolocando-a na alça da guitarra. — Dê-me aqui, então! Se um dia a gente trombar com a garota de novo, eu devolvo. Até lá, ela fica aqui! — Lysandre sorriu.

— Se a gente trombar? — questionou o jovem de olhos bicolores. — Você não quer dizer, se você trombar com ela de novo? — Castiel olhou para o amigo de rabo de olho e nem se deu ao trabalho de responder.

— Não esqueça que eu ainda tenho que levar o Dragon para passear! Ou ele vai me perturbar a noite toda com seus latidos. Então, vamos embora! — disse, jogando a sacola da loja na lixeira.

— Por favor, Castiel, leve essa alça na sacola. — pediu Lysandre, com medo do amigo a esquecer em alguma lugar. — Ela custou muito caro!

— Da próxima vez, quando eu pedir para você segurar a alça da minha guitarra, você lembra de mantê-la consigo. — disse Castiel, rindo, deixando o amigo sem graça. Ele odiava perder algo de outra pessoa.

— Da próxima vez, eu vou dizer não! — avisou, querendo evitar gastos futuros. — Então nem me peça para segurá-la! — Castiel riu ainda mais.

— E como eu vou conseguir uma alça nova quando a minha já estiver surrada se você não perder a velha? — não teve como Lysandre não rir da cara de pau do amigo.

Castiel até teria acompanhado o amigo na caminhada, mas naquele dia em especial não estava afim de andar por quase 40 minutos até chegar a sua casa. Lys esperou que ele pegasse o ônibus e depois foi embora a pé, pois morava a 10 minutos do shopping.

Já, numa direção oposta à deles, num prédio antigo e com a pintura desgastada, a jovem Emília foi direto para o seu quarto; ela queria ver o que, no seu guarda-roupa, combinava com as roupas que havia comprado, e ao se olhar no espelho para ver uma das combinações que fez, percebeu que havia perdido sua presilha de crucifixo, chateando-se, pois havia sido um presente da Mila, de Natal.

Depois do banho ela e a tia jantaram uma boa lasanha 4 queijos, cujo aroma preencheu todo o apartamento, aguçando o paladar e a fome de Emília.

— Pelo jeito, a senhora adora massas! — comentou a jovem, deliciando-se da refeição.

— Sim, gosto, mas com acompanhamentos mais leves e só nos finais de semana. — disse Maitê, garfando a lasanha. — Durante a semana voltamos à boa culinária saudável!

Ao terminarem de comer, Emília foi lavar a louça, enquanto sua tia foi até o quarto, retornando em seguida com um presente para a sobrinha.

— Um presente? Para mim? — perguntou, surpresa. Ela nunca havia sido tão mimada. — Assim eu vou ficar mal acostumada! — brincou, abrindo o embrulho com a delicadeza de uma criança, rasgando o papel de presente escolhido pela tia com tanto carinho.

— Um diário!? — intrigou-se, sem saber o que fazer com aquilo. — Eu nunca tive um diário!

— Minha mãe, sua avó, sempre me dizia que guardar os sentimentos, sejam eles bons ou ruins, não faz bem para a nossa saúde física, mental ou emocional. — disse Maitê, zelosa. — Se você esconde suas alegrias, elas não transbordam e assim, não contagiam as pessoas que você ama, e se você esconde as angústias, elas te envenenam, lentamente. É importante compartilhar nossas alegrias e nossas dores com alguém em quem confiamos e amamos.

— Você teve um diário quando adolescente, tia?

— Não. Mas isso porque eu sempre tive facilidade de dizer o que penso e sinto. — respondeu, com um sorriso. — Facilidade esta que você não tem! Igual a sua mãe! Ela sim teve um diário! — revelou. Emília ficou surpresa com tal verdade sobre a mãe, mas não proferiu nenhum pensamento.

— Mas a senhora nunca teve algo que não conseguiu contar para ninguém? — preferindo saber um pouco mais da tia.

— Não. E não estou mentindo. Mas não pense que eu contava ou conto tudo para qualquer um. Todos temos nossos segredos, coisas que não queremos compartilhar com ninguém e isso é normal. Mas há coisas que se você não colocar pra fora, não compartilhar, vão te fazer mal e gerar angústia, sofrimento. E é aí que o diário entra. Aquilo que você não conseguir contar pra ninguém, conte para o seu diário.

— Estou confusa agora. Se a senhora nunca teve um diário e tem coisas que não conta pra ninguém, como conseguiu fazer com que elas não te fizessem mal?

— E quem disse que não me fizeram mal? Eu descobri da pior forma que nem tudo pode ser guardado apenas dentro de nós.

— Mas como a senhora lidou com isso se não escrevia e nem contava pra ninguém?

— Eu não disse que não conto pra ninguém, eu disse que não conto pra qualquer um. — respondeu Maitê, rindo. — Digamos que eu tenho um diário, mas ele se chama Patrick e é meu melhor amigo desde o jardim de infância. — contou. — Você deve se lembrar dele.

— Não muito. Lembro que ele era seu melhor amigo, mas que a vovó não gostava dele e por isso ele não ia na casa dela. Eu lembro que a senhora é que ia encontrá-lo e quando estávamos lá, às vezes, quando a mamãe deixava, me levava junto. Eu lembro que ela não se dava muito bem com ele e por isso toda vez que eles se encontravam ela ficava de mau humor e o tio Pablo, pra fugir do estresse dela saía para dar umas voltas e me levava junto. — lembrou-se, vagamente. — Me desculpe tia.

— Desculpar você do quê, querida? Você não tem obrigação de lembrar dele. Vocês se viam só no verão e apenas na minha folga, e quando sua mãe permitia. Fora que a última vez que vocês se viram deve fazer uns 5 anos ou mais.

— Não é isso. É que eu só gostava que ele ia te ver porque a mamãe ficava zangada e sempre sobrava para o tio Pablo, que para não ficar ouvindo a falação dela, fugia. Mas como ele sabia que ao voltar ia encontrá-la mais zangada por conta dele ter saído sem ela, ele me usava como desculpa. — contou, — Ele me levava junto e nós nos divertíamos. Ele brincava comigo, me comprava sorvete. Parecia até um pai de verdade. Daí, quando voltávamos pra casa ele dizia que tinha me levado para passear e ela só resmungava por não ter ido junto, mas não brigava com ele. — envergonhada de tal postura. — Isso era muito egoísta, eu sei, mas... O tio Pablo nunca foi de brincar muito comigo quando eu era criança e eu ficava feliz quando isso acontecia. Eu sabia que ele só estava me usando para poder sair de casa sem a mamãe encher o saco dele, mas eu gostava.

Maitê se entristecia a cada vez que ouvia a sobrinha dizer que sua mãe e/ou seu padrasto não lhe deram muita atenção. Ela sabia, mas ouvir a garota dizer, com o olhar sempre vago e triste, doía na sua alma. Ela até entendia os motivos do cunhado; Sol era a prova viva que o fazia lembrar, todos os dias, que Sara o traíra e mais que isso, que ela amou outro mais que a ele. E ainda assim ele conseguia ser mais atencioso e até carinhoso com a menina, que a irmã dela. Esta sim não tinha desculpa. Maitê não conseguia entender como a irmã podia ser tão fria e distante da filha, culpando-a por suas frustrações e decepções com a vida, como se a garota fosse a culpada de suas escolhas erradas. Ela sabia que Sara amava Emília, mas sua natureza egoísta a fez ser uma péssima mãe.

— Pois quando o Patrick souber disso vai dar pulos de alegria. Saber que a birra da sua mãe com ele servia para você se divertir com seu padrasto vai fazer ele dar gargalhadas. — comentou aos risos, querendo espantar a tristeza da sobrinha por lembrar daquilo. — Ele adorava azucrinar sua mãe.

— Não, tia. Por favor, não conte! Eu não quero que ele saiba! É constrangedor.

— Está bem. Será um segredo nosso, então. Mas não me condene se eu rir quando ele resolver vir te visitar e eu acabar lembrando disso.

— Desde que a senhora não conte.

— Se é um segredo nosso, não será contado, querida, nunca. Apenas você tem o direito de contar suas coisas às pessoas. Eu e qualquer outra pessoa que venha a saber coisas suas não podemos compartilhar, nem mesmo com nossos travesseiros.

— Meus amigos são assim. Eles são meu diário vivo. Eu contava tudo pra eles, que não contavam pra ninguém, nunca. Vai ser estranho fazer isso nesse caderno. Parece tão frio.

A saudade era algo gostoso e frio de se sentir.

— Uma vez, há pouco tempo, li algo sobre escrever em diários num blog e achei muito interessante. A pessoa disse que escrever num diário, mais que ajudar a desabafar, ajuda a pessoa a se entender, a se conhecer melhor, pois nas páginas do diário você não tem medo de dizer o que pensa e sente, você não se segura e fala tudo o que quer e como quer. O diário é o livro da sua vida, mas contado de dentro pra fora; e com o passar dos anos ele se torna um manual, onde você pode recorrer sempre que alguma coisa te aflige, seja para te dar força ou para te dar um conselho. — comentou, colocando as mãos sobre as de Emília. — É por isso que eu estou te dando este diário. Eu quero que escreva tudo o que sentir nestas folhas. Elas serão as páginas da sua nova vida, as páginas dos seus pensamentos, seus sentimentos, suas ações. Tudo aquilo que te afligir e que não conseguir desabafar com ninguém, ele te ouvirá, sem se manifestar, e guardará seus segredos, até que você mesma queira compartilhá-los comigo ou qualquer outra pessoa.

— Eu nunca pensei por este lado. — comentou Emília que depois suspirou enquanto olhava para o diário, cuja capa de couro era tingida de rosa. Na sua mente ecoavam as palavras que diziam que sua mãe teve um diário quando mais nova e que assim como ela, não conseguia dizer o que sentia.

— Eu não quero que você se envenene lentamente, nem que deixe de me alegrar. — concluiu Maitê, entregando para a jovem uma correntinha de ouro com uma chave dourada, deixando-a sozinha e encarando a arrumação da cozinha. Emília voltou para seu quarto e depois de olhar muito para o caderno e a chave, resolveu abri-lo, encontrando uma mensagem na folha de proteção das páginas, aquela, branquinha, que fica entre a capa e as folhas do caderno, e esta dizia:

"Porque mesmo longe, olharei pra você e te desejarei sorte!

Porque mesmo de longe, reconhecerei seus passos!

Porque nem sempre a vida é como desejamos; mas quando desejamos muito algo, e nos empenhamos para conquistar, um dia, com fé em Deus, será!"

Não havia assinatura, nem data. Mas Sol logo deduziu que era da tia. Ela o desfolhou um pouco, gostando das páginas de fundo cor de rosa, com fadinhas enfeitando todas elas. Era meio infantil, mas ao mesmo tempo, meigo, e se era um diário, ninguém as veria, a não ser ela. Depois ela o trancou, guardou-o na gaveta de lingeries, escovou os dentes e foi se deitar, estava cansada e o dia seguinte seria... Ela não sabia, e portanto, queria estar com todas as baterias recarregadas. Nem com os amigos conversou naquela noite; eles na certa a deixariam mais preocupada. Ela só não imaginava que iria sonhar com o garoto da escada rolante, que ela nem mesmo tinha prestado atenção direito. Só o que lembrava era da cor do seu cabelo e da sua voz, ofendendo-a pela trombada.

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— Será que a distância vai acabar juntando aqueles dois? — foi a pergunta que Mila fez à Ana depois do jantar, enviando-lhe um áudio no Whats, fora do grupo. — Eu nem sei dizer se eles combinam juntos ou não. Aos meus olhos um namoro do Ken com a Sol seria meio que um incesto. O que você acha Ana?

— E antes que eu me esqueça. Exagerada e vacilona é a vovozinha!

Ana não respondeu.

 

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Notas finais do capítulo

[1] École Secundaire: O ensino secundário abrange o EFII - Collège (6º ao 3ºème) e o EM – Lycée (2ºème ao terminale, podendo ser de 3 ou 4 anos).

[2] JC: Jesus Cristo. Mila sempre diz "Jesus Cristo" quando está irritada, nervosa, surpresa, animada, etc. Mas de tanto a mãe dizer para ela parar de falar o nome de Deus em vão, abreviou para JC.

[3] O Parc Castel des Deux-Rois é um parque ecológico situado em Nice, próximo a área portuária. Ele tem uma entrada principal, de portão duplo, e uma simples do outro lado. Sol mora perto da entrada principal.

[4] Dupont: grife fictícia, famosa entre as mulheres da Europa e do mundo. Algo como a Chanel.

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CURIOSIDADE: C&A é uma cadeia internacional de lojas de vestuário. No Brasil, é a maior rede de lojas de departamento do país e a décima segunda maior empresa varejista. Foi fundada nos Países Baixos em1841 pelos irmãos Clemens e August (daí C&A) como uma empresa têxtil. A primeira loja foi inaugurada na Holanda, em 1861. A rede tornou-se uma das primeiras no mundo a oferecer roupas prontas aos consumidores. Em 1911, com o crescimento do negócio, a empresa instalou-se na Alemanha, e, posteriormente, em outros países da Europa.
A rede varejista conta hoje com filiais na Alemanha, Áustria, Bélgica, Brasil, China, Croácia, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, França, Hungria, Itália, Luxemburgo, México, Países Baixos, Polônia, Portugal, República Tcheca, Romênia, Rússia, Sérvia, Suíça e Turquia.

Fonte: Wikipédia.