Entre Otakus escrita por Van Vet


Capítulo 2
Rony




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Era uma típica manhã fria londrina. Rony teve um pouco de preguiça de prosseguir o percurso até o trabalho como fazia todos os dias, mas resolveu afundar mais a touca na cabeça e sair assim mesmo. Montou em sua bicicleta e desceu a leve ladeira de encontro à arteriosa avenida principal.

Suas pernas cumpridas ajustavam-se adequadamente no transporte, impondo velocidade aos aros, girando dezenas de vezes por minuto. Ultrapassou um ônibus que vinha do West King com certa imprudência e teve de jogar a bicicleta para a sarjeta se quisesse viver mais um dia. Não se importou com o modo grosseiro pelo qual o motorista da grande lata ambulante lhe xingou, apenas pedalou mais porque estava com as bochechas congelando de frio. De dentro do ônibus, a garota que comprava mangás o reconheceu. Sentada em um dos assentos apertados com uma expressão de choque por vê-lo num ato neandertal de “quase pseudo-suicídio”.

Quando chegou ao shopping, Rony prendeu com cuidado a bicicleta em um dos arcos de alumínio reservadas as mesmas e assegurou sua contínua posse envolvendo correia e cadeado no aro traseiro.

Subiu para banca ainda concentrado naquele pensamento macabro, de como poderia ter abraçado a bandeira de Digmon durante tantos anos. Teclava ferozmente em fóruns e bate-papos virtuais de todos os motivos pelo qual Pokémon perdia feio para sua saga do coração. Seu principal argumento encerrava-se na forte “carga emocional”. Então ontem, enquanto pulava de um site a outro, embolado nos cobertores, resolveu rever alguns episódios aparentemente imortalizados na sua massa cinzenta.

Ficou horrorizado. O traço, o enredo (a falta dele, na verdade), o efeito de repetição retardatário quase o fez tomar quinhentos comprimidos de Valium numa sentada só.

De imediato excluiu diversas contas pela web e recriou-as com outro Nick e outro argumento. De certo não conseguiria comentar sobre aquele aborto por muito tempo, nem que fosse com sua própria sombra.

Ao chegar ao trabalho, encontrou Hank muito animado, balançando a cabeça vertiginosamente enquanto escutava – muito provavelmente – a doce voz de Cory Taylor no aparelho celular. Hank tinha quase sua idade, um ano a menos, vinte e dois, e era seu companheiro na banca. Os dois se davam muito bem, conversavam trivialidades ao longo das horas, suavam a valer nas datas comemorativas, normalmente período que o shopping enchia mais, e ficavam muito confortáveis nos momentos ociosos. Cada qual em sua cadeira lendo alguma coisa das prateleiras. Rony, mangás. Hank todo resto.

Em dado momento daquele dia Hank erguera a cabeça do seu exemplar de “Trip” e comentara, abismado.

— Caramba! Angelina Jolie se considera bissexual! — Assoviou. — Os atrativos dessa mulher só aumentam, não é?

Rony levantou a sobrancelha e fitou-o através do Rurouni Kenshin, volume 7, como quem não está nem um pouco disposto a reiterar a observação. Para ele, super estrelas americanas como Angelina Jolie não vinham lhe agarrar nos sonhos. Um rosto bonito com caras e bocas glamourosas dificilmente o faziam suspirar. Como todo homem, notava sim, mas o assédio mental jamais perdurava.

As garotas que faziam o tipo dele costumavam ser humanas. Foi sua vizinha de infância, Leslie, com os cabelos louros palha e um incisivo tortinho, muito charmoso a cada sorriso. Foi Ashley Thompson, sua melhor amiga do secundário, que ficava vermelha e suava nas palmas da mão toda vez em que eram obrigados a apresentar algo diante da classe.

— Vai dizer que você não acha ela a maior gata? — irritou-se Hank, com a expressão perplexa.

— Digite apenas “Angelina magra” no Google. — ele respondeu voltando para sua leitura, disposto a não dar mais ouvidos para o colega.

No fim da tarde, Rony foi comer algo na praça de alimentação. Ao retornar, tomando o resto do refrigerante, percebeu um cliente saindo com o mangá de Monster. Um adolescente espinhento.

— Essa editora tá de brincadeira. Nos mandam quatro exemplares vendendo como está! Acabou tudo.

Rony correu os olhos para embaixo do balcão.

— Cadê o que tinha separado, ao lado do caixa.

— O último. Acabou de ir. — comentou Hank, despreocupado.

— Quê??? — Rony berrou. — Você não viu que estava reservado?!

Deixou o refrigerante pela metade e saiu em passos rápidos pelo corredor.

— Não tinha papel nenhum. — lamuriou-se o colega, vendo-o afastar-se.

Impensadamente Rony foi ao comprador, o adolescente espinhento, e abordou-o caminhando entre as vitrines.

— Oi... — fez um sinal desajeitado com a mão. O garoto olhou-o, impassível. — Er... sabe esse mangá que você acabou de comprar, ele... er... estava reservado. Meu amigo se enganou ao vender para você.

— Mas ele já vendeu, não é?! — o garoto deu de ombros — Direitos do consumidor.

Alarmado, o rapaz postou-se na frente do adolescente.

— Quanto você quer? — sacou cinco libras da carteira.

— Eu paguei cinco libras por ele. Não tente me enganar. — o menino disse, aborrecido.

Rony pegou mais uma nota.

— Dez libra! Que tal? — fez uma expressão de “bons negócios”. — É o dobro. Pode comprar outros dois mangás ali na banca.

O consumidor subordinado começou a gostar da brincadeira. Viu uma espécie de fascinação desesperada nos olhos daquele rapaz sardento.

— Cinquenta libras. — deu sua oferta.

A cor saiu um pouco do rosto de Rony. Estava sendo descaradamente “roubado”. Ficou pensando que tipo de coisa aconteceria com aquele projeto de ser humano no mundo pós-apocalíptico de High School of the Dead, mas a história era tão minada de garotas semi nuas em situações para maiores de dezoito anos, que só via um cenário otimista para o pequeno mercenário. Saltou de obra, e pensou que seria muito melhor vê-lo sucumbir ao senso de justiça invertido de Light Yagami em Death Note.

— Ok. Cinquenta libras. — entregou o dinheiro ao adolescente.

Ao tentar resgatar a revista o aproveitador larápio continuou retendo em sua posse.

— Espere. Eu quero ler esse volume, estou muito curioso.

E assim Rony passou cinquenta minutos nas poltronas próximas à fonte, vigiando o garoto até o término da leitura.

— Aonde você foi? — Hank perguntou, após uma hora inteira de ausência de Rony.

— Fui consertar sua burrada. — o outro resmungou, guardando o volume reservado dentro da própria bolsa.

Hank sabia ser perspicaz quando não deveria. Semicerrou os olhos, encarou o amigo e comentou numa dedução musical.

— Você tá reservando essa revista para a garota das quartas. É isso...

— Ela pediu que reservasse. Não posso ficar furando assim com clientes. — começou a ficar ruborizado. Ambos sabiam que não era apenas isso.

— Acho que você viu que ela tem uma aliança de compromisso gigante no dedo. Porque foi grande o suficiente para eu notar.

O silêncio era o grande delator de Rony Weasley. E ele calou-se em resposta ao companheiro de trabalho. As afirmações eram verdadeiras: A moça tinha um compromisso amoroso refulgente no dedo, e o gosto dele por garotas comuns, mas cheias de charme, era irremediável.


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