O Último Uivar escrita por Vilefort


Capítulo 3
A Valquíria




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/451918/chapter/3

Acordei desnorteada. Olhei para minhas mãos, estavam cheias de sangue. Me dei conta de que estava semi-nua, minhas roupas agora eram fiapos pendurados por meu corpo. Ao meu lado, repousava o corpo do lobo, ou o que sobrou dele. Não conseguia me lembrar de nada, a última coisa que minha mente processava era uma dor insuportável, seguida de um prazer indescritível. Todo meu corpo trabalhava em sincronia para saciar a vontade de sangue, a necessidade de sobreviver.

Percebi que estava com a cara cheia de sangue quando senti gosto de ferro em minha boca, e com o estado do lobo do meu lado era fácil entender o motivo. Era difícil acreditar no que ocorrera, lí tanto a respeito da primeira transformação que pensei estar preparada. Estava errada, a sensação ainda assombrava minha mente, uma sensação macabramente prazerosa, um instinto tão puro que vinha de dentro, uma necessidade incontrolável de caçar.

O sol começava a se por no horizonte. Precisava voltar para o caern e infelizmente não teremos carne no jantar. Tentei arrumar as tiras de pano que outrora chamei de roupa, não podia chegar deste jeito em casa. Consegui esconder o suficiente de meu corpo, mas o frio começava a me envolver. Olhei em volta. O campo da batalha se mantia inalterado, os ratros e marcas pela neve, árvores e chão eram intensas. Desviei o olhar, mesmo que o sentimento tenha sido bom, não era uma cena que manteria uma pessoa normal sã.

Segui na direção do caern, com passos apressados e desengonçados. Meu corpo doía, minha cabeça estava a ponto de explodir. Tentava impedir as imagens de saltarem na minha mente. Imagens borradas de uma criatura assustada sendo perseguida e brutalmente assassinada. Tudo aquilo foi feito por mim? Instinto de sobrevivência é uma coisa, aquela brutalidade estava além disso. A besta ansiava pela morte do lobo, e não cessou até conseguir seu objetivo.

As casas do distrito baixo começavam a ganhar um brilho fraco de velas conforme o sol ia se pondo. Corri pela pequena estrada coberta de neve, o que fazia com que meus pés afundassem e cada vez mais meu corpo esfriava. Chegando perto do caern, comecei a ouvir barulho de festividade. Tambores, trombetas, pessoas rindo. Corri para casa, passando pelas estreitas ruas do distrito baixo, sendo olhada de lado por todos que por ali passavam.

Eu não os culpava, afinal uma simples garota do distrito baixo, nascida na lua crescente e filha de uma Valquíria, já não era uma combinação muito comum. Ainda mais quando se está quase sem roupa, correndo ensanguentada por uma área tão pacata do caern.

Alcancei minha casa, subi os dois degraus da escada da frente e abri a porta. Meu pai não estava em casa. Ótimo, menos perguntas. Lavei o sangue de meu corpo, fui até meu quarto e me vesti. A noite estava fria, e ficar desacordada em contato direto com a neve também não ajudou muito a minha situação, vesti uma camisa e uma calça de algodão, peguei um par de botas emprestados do quarto de meu pai, e um casaco. A sensação de estar aquecida era deliciosa, quase me fez esquecer do ocorrido de algumas horas atrás.

Saí bem rápido pela porta, queria saber o que estava acontecendo, o motivo da festança. Seguindo na direção do centro do caern, passando por ruas cada vez mais lotadas, ouvia o barulho cada vez mais alto. Algo importante havia acontecido...será que...

Detive meu pensamento ao parar bruscamente em meio a uma multidão. Tentei olhar por entre as pessoas, mas pouco conseguia ver, então fui me esgueirando por entre elas, até ter uma visão da rua principal. Vi o altar do caern, sempre tão radiante. Emitia pequenos raios de luz que dançavam num ritmo calmo e sincronizado, era possível ficar observando-o por horas. Mas meu olhar foi pego por uma imagem na direção contrária do altar. O motivo da festança fazia todo sentido agora, elas haviam voltado.

Corri na direção dos cavalos que traziam belas guerreiras em seus dorsos. O que vinha na frente era marrom, aparentava estar cansado da viagem. Sua cela de couro carregava uma mulher loira de olhos cinzas, vestida com uma armadura prateada, com detalhes dourados em suas bordas. Me aproximei e gritei:

– Mamãe!

Ela olhou para mim e sorriu. Aquele sorriso sempre me acalmava. Era acolhedor e caloroso. Havia algo de diferente em seu rosto, uma nova cicatriz em sua sobrancelha esquerda. Corri e me joguei em seus braços, ela me puxou para cima de seu cavalo e me levou até o centro do caern, de frente com o altar e começou seu discurso.

– Honrados irmãos e irmãs, trago-lhes boas notícias! Liderei as valquírias em mais uma missão exploratória, onde encontramos três covis da Wyrm e exterminamos as criaturas que lá espalhavam sua destruição e corrupção suja. No processo, adquirimos informações importantes sobre o paradeiro de um grupo de Dançarinos da Espiral Negra. Vamos averiguar essas informações e cuidar desse assunto, caso sejam verdadeiras. Nós, as valquírias agradecemos a recepção calorosa de nosso povo, mas precisamos descansar da viagem. Partimos em três dias para nossa missão.

Seguimos para casa a cavalo. Lembrei que havia feito muita bagunça e não estava um lugar muito apresentável, mas nada disso importava, estava finalmente com minha mãe depois de três meses, e tinha apenas três dias para aproveitar sua companhia.

– Como você está, Nienna?

– Muito feliz pela sua volta, mamãe. Hoje aconteceu algo e preciso lhe contar.

Ao falar isso, chegamos em casa. Desci do cavalo e mamãe o amarrou próximo, checou se havia comida e água e entramos. A primeira visão ao abrir a porta, era de uma sala de estar incrivelmente bagunçada para seu tamanho. As duas poltronas estavam fora do lugar, o tapete estava dobrado e amassado, havia um baú que não fechava no meio da sala, com muitas coisas espalhadas. Minhas coisas, roupas, flechas, joias...

– Vejo que andou ocupada, onde está seu pai?

– Deve voltar logo da plantação, o trabalho fica bem puxado nessa época do ano...

Freya sorriu para mim. Aquele pavor que me dominara simplesmente desapareceu ao vê-la. Ela andou até uma das poltrona e se sentou, eu a segui e sentei em seu colo. Me peguei admirando sua beleza por alguns minutos. Freya corou e começou a rir.

– O que houve? Não lembrava do rosto de sua mãe?

– Não é isso...deixa pra lá... – Dessa vez fui eu quem corei.

– E então, qual a grande novidade? – Disse Freya se ajeitando na poltrona, esperando a história.

– Bom...eu havia saído para caçar, como de costume nas quintas-feiras. Porém um lobo das montanhas apareceu... – As imagens começaram a se formar novamente em minha cabeça e me detive por um momento. Meus olhos ardiam e o gosto de sangue em minha boca reaparecera.

– Eu me desesperei, achei que fosse morrer, meu corpo inteiro reagia a isso e de repente, eu acordei ao lado do cadáver do lobo, cheia de sangue pelo corpo, mas sem um arranhão sequer. E o pior de tudo, sem roupa.

Ela deu uma leve risada, o que me fez sorrir. Olhou em meus olhos. Eram cinzas e delicados, assim como os meus. Um pouco da delicadeza se fora com sua nova cicatriz, dando um ar mais guerreiro a ela.

– Parece que alguém virou mocinha – Disse Freya rindo.

Senti minhas bochechas queimando e me encolhi. Mamãe começou a me fazer cócegas. Ela sabia que eu odiava isso, mas hoje não importava, ela estava em casa e eu precisava aproveitar. Abracei-a forte e disse.

– Eu te amo mamãe.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Último Uivar" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.