Gris escrita por Petit Ange


Capítulo 11
Capítulo 10: Fate of the Unknown


Notas iniciais do capítulo

Só uma coisa a dizer: Tamaki!Demyx e Haruhi!Zexion is love.
Cahem, e desculpem a demora infame em postar isso... Sério, não há palavras suficientes pra que eu peça desculpas. u-u



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/44834/chapter/11

GRIS Petit Ange

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira.~ Anna Karenina (Tolstói).

 

 

Capítulo 10: Fate of the Unknown. [37]

 

Lembrar nunca é difícil.

O problema é lembrar-se sem deixar as próprias memórias se embaralharem no mar da ambigüidade.

Porque memórias se reconstroem de acordo com o que se vive.

E Demyx aprendera isso daquele jeito: tentando se lembrar, sem nenhuma opinião pessoal, do que sentiu naquele dia.

Era impossível.

Talvez porque não houvesse nada a ser lembrado.

Porque estivera apático todo o tempo naquela sala branca sem nenhum aroma realmente marcante.

Lembrava-se de estar com sua mãe. O pai, como sempre, tinha uma reunião de última hora e não pôde comparecer.

Mas, mais tarde, ele sem dúvidas receberia os exames e a notícia.

A sala era branca. Um branco puríssimo e perfeito.

Na verdade, muito lembrava um asilo, uma casa de saúde mental... Não havia nenhum estímulo. Era apenas branco no branco.

Demyx tinha a impressão de que lembrava do rosto do seu doutor.

Ele era tridimensional, mas parecia não ter rosto.

Sua apatia, certamente, o impediu de ter qualquer memória mais profunda a respeito daquela pessoa, além de seu jaleco de médico.

Até mesmo sua voz o moreno não conseguia lembrar, de fato.

Era simplesmente uma vibração assexuada em sua mente.

- Está vendo esse exame aqui?

Sim. Ele e sua mãe estavam vendo; os olhos estavam secos. Ao menos os seus. Os dela, ele já não tinha certeza.

Mas estavam vendo com clareza.

- Dá pra ver direitinho que algo está errado.

...Sim, realmente dava.

Demyx teve vontade de afrouxar aquela gravata que, subitamente, parecia estar sufocando-o.

Mas não conseguia se mover. Estava tudo parado.

- Vamos fazer uma bateria de exames específicos para confirmar e depois, procuraremos o mais adequado dos tratamentos.

Seus olhos, seus músculos, sua mente, seu coração... Tudo parado.

- ...Mas, para ser sincero, as chances de recuperação são, na pior das hipóteses, nulas.

Estava ali, numa sala branca, ouvindo sua sentença.

 

Abrindo os olhos com vagar, Demyx teve medo.

Teve medo de aquilo não ser só um sonho. Como se aquela sua fuga é que fosse o sonho de fato e, agora, ele simplesmente estivesse numa cama de hospital, cercado de enfermeiras estranhas e de lágrimas de sua mãe.

Ele não queria isso. Nunca, jamais queria isso. Preferia morrer de uma vez a definhar daquele jeito patético.

Ou melhor... Quem sabe, por isso fugiu? Porque sabia que não queria mais isso.

Lembrava-se de Axel.

...Ah, sim. Axel, talvez, era a única coisa que Demyx sentia falta em Tokyo.

Ele não o encarou com dó, nem com pena, nem com desprezo ou mesmo medo por ser de uma “hierarquia” muito mais baixa que a do outro.

Simplesmente o encarou como se encara um qualquer dentro de um ônibus, por exemplo. E aquilo causou no moreno uma estranha sensação de acolhimento. Mesmo que fosse com indiferença, sentiu-se compreendido.

Porque aquele era um olhar que ele nunca teve. Foi visto como um “herdeiro”, depois como um “doente”.

Nunca como “Demyx”. Não havia espaço para “Demyx” até Axel ter aparecido.

...Mas, talvez – e aquela idéia brotou-lhe do fundo da mente como uma semente perversa, uma erva-daninha –, o que ele quisesse mesmo era morrer de uma vez. Morrer e, se possível, voltar àquela infância onde sua única preocupação, de fato, era manter as notas sempre no topo e, no futuro, angariar prestígio dos poderosos ao seu redor.

Podia parecer uma vida muito cruel, se vista por um terceiro, mas ali dentro daquela gaiola dourada, daquela vida feita de festas, de perfumes caríssimos e de homens áusteros de terno, aquele era o destino mais benevolente que se podia esperar. Era a mais pequena das responsabilidades.

E Demyx queria voltar àquele estado. Porque a doença lhe parecia só uma desistência, um jogar de toalha no meio do jogo.

Mesmo assim, que diferença faria?

Era como naquela música que ouviu pelo rádio do táxi, ainda em Tokyo, tão logo fugiu de sua casa. Os lobos continuariam espreitando, a multidão furiosa ainda estaria cercando os muros do palácio...

Não havia lugar para onde fugir. Não havia mais nada o que pudesse ser feito. Era sentar e, literalmente, esperar.

...Mas ele não queria aquele destino patético, aquela passividade que lhe dava ânsias. Ele atravessou os lobos e a turba do povo odioso.

Tudo para encontrar... O azul dos olhos de Zexion.

Porque essa era a única coisa na qual conseguia pensar. Só o que parecia valer a pena naquilo tudo.

Virando-se, antes que começasse a pensar demais e certamente só adquirir uma enxaqueca e nenhuma solução, ele percebeu primeiramente que o pescoço doía. Devia ser por dormir de mal jeito no carro.

E, depois, percebeu Zexion. Ele parecia bastante concentrado na tarefa de dirigir, desde que saíram de Ohmachi.

- Zexy? – chamou-o.

Sem desviar o olhar, mas mostrando que escutou-o, Zexion respondeu:

- O quê?

- Não... Só queria mesmo ouvir sua voz. – sussurrou. – Por um momento, eu achei que estivesse sonhando.

Ele não se moveu. E o moreno perguntou-se se suas palavras alcançaram aquela muralha tão forte, tão imensa de seus sentimentos.

Não era uma mentira. Estava mesmo com muito medo de tudo aquilo ser um último sonho feliz. Porque agora, mais do que nunca, se sentia tragado por uma onda invisível. Um destino inevitável.

- Quando foi que acordou? – o outro perguntou-lhe, porém.

Surpreso com aquela reação (afinal, achou que ele fecharia a cara ou ficaria quieto. Era o lógico), Demyx demorou a responder.

- Ah... A-agora a pouco, na verdade...

- Sei. – e, olhando de relance, rapidamente, para o outro, voltou os olhos logo em seguida para a estrada. – Ainda dói algum lugar?

Aparentemente, e isso ele sentia, iria ainda se surpreender bastante naquele dia que prometia ser tão longo.

- ...Não. – negou, com mais veemência do que o necessário.

- ...Tem certeza? – desconfiado.

Ele sorriu. – Não vou vomitar no seu carro, prometo.

(É claro, pensou Zexion, que isso o preocupava. Mas não era a coisa mais importante dali, maldito idiota tapado!).

- ...Você devia ter ido a um hospital, Demyx.

Mas é claro que Zexion insistiria naquilo! Desde Ohmachi estava só dizendo que aquilo era um erro, uma insânia, algo sem sentido algum, um assassinato consentido, um patético suicídio, e um monte de outras baboseiras.

Mesmo assim, e era até engraçado perceber isso, em nenhum momento obrigou-o a ir ao dito hospital. Em verdade, até devia admitir que desde aquela noite (do jeito que falava, até parecia ter se passado dias! Foram algumas horas, só), ele estivera ajudando-o bastante.

Demyx achou que Zexion iria falar daquele beijo...

Não se arrependia e estava pronto a admitir isso, mas achou que o outro ia falar sobre. Era óbvio que a pergunta estava entalada na garganta do outro.

Mas em momento algum essa conversa abandonou os lábios do rapaz de olhos azuis. Foi só o silêncio e, vez ou outra, muito raramente, muito respeitosamente, uma pergunta sobre seu estado de saúde.

- Sim... Eu sei disso. – concordou.

- ...Não gosta de hospitais?

- Não tenho nada contra eles. – negou. – Apenas... Sei que é inútil procurar um. Vai apenas nos atrasar mais.

Zexion calou-se. Havia tantas coisas que queria perguntar...

Tinha vontade de sacudir aquele garoto até que ele reagisse. Porque aquilo não era normal de Demyx.

Era como um pobre diabo que estava indo à forca. Não era normal de Demyx; ou, talvez, era simplesmente chocante ver aquela transformação. Não saberia explicar. Só sabia dizer que, sem dúvidas, lhe dava uma desagradável sensação.

- ...É assim tão grave? – suspirou.

- Não sei...

Meneando a cabeça, e finalmente percebendo quão inútil era aquela discussão que, em verdade, jamais aconteceu, Zexion prestou atenção na estrada.

Ah sim, era óbvio que ele estava frustrado. Demyx podia ver isso de longe.

Mas algum instinto profundamente enraizado em si não queria. Negava-se e se debatia com toda a força; apenas acha inútil continuar.

Encarou-o, de repente. Porque era sempre uma surpresa encarar Zexion.

No começo, aqueles olhos azuis eram insondáveis e cheios de mistérios. Eram muros intransponíveis; agora ele já não o sentia assim tão distante. Era apenas um imenso oceano. Tão insondável quanto, mas também estava ali a beleza de todo um lugar nunca pisado por ninguém.

- Sabe, Zexy... – sussurrou-lhe, então, alheio ao mundo ao seu redor, como se lhe segredasse algo.

Ainda prestando atenção na direção (que julgou, ao menos, ser bem mais prática e lhe dava resultados imediatos), parando de olhar de soslaio para o moreno, o outro rapaz apenas arqueou levemente a sobrancelha.

- O que é? – incitou-o a falar.

- Sei que isso não é o suficiente... Sei disso. E também sei que estou muitos anos atrasado... – olhou para baixo, como que subitamente compreendendo o peso daquele “pecado”. – Mas... Mas se ainda for possível... Eu gosto de você. Amo. É. E, se isso foi o bastante pra você, ao menos por enquanto, fico feliz. Só quero que saiba disso.

Zexion não soube o quê dizer. Talvez, porque no fundo compreendesse exatamente o sentido daquela frase.

Estranhamente, não havia mais aquela frase que lhe sussurrava que aquilo era errado. Aquela que lhe disse isso quando Demyx o beijou naquela noite.

Não houve nenhum som, nenhum comentário adicional.

Era como se estivessem em uma estranha despedida. O peito encheu-se outra vez, ainda mais dolorosamente, daquela má sensação.

Mesmo assim, só houve um estranho contentamento ao fim de tudo, como só há o sol depois de uma tempestade.

E, junto com ele, timidamente, a estranha e agradável sensação de que, sim, aquele sentimento era mais do que o suficiente.

 

~x~x~x~

 

Só então, quase quarenta e oito horas depois, é que Demyx começou, enfim, a achar que estava cometendo o talvez pior erro de sua vida.

Ele não devia estar se metendo, era essa a verdade. E aquela súbita compreensão caiu-lhe como um raio. Como um infarto. Foi tão súbito que ele demorou até mesmo para processá-la. Porém, uma vez jogada em sua corrente sangüínea, foi como uma praga: ela estava lá e exigia ser reconhecida.

E, o que era pior: estava completamente certa...

A verdade é que ele percebera que não tinha nenhum direito, muito menos dever, de se intrometer na vida do outro. Não sabia nem porquê diabos estava ali, esperando-o abrir a porta de sua casa.

- ...Onde é aqui? – perguntou, olhando ao redor.

- Esse bairro? Naganonanase[38].

- É mesmo bem movimentado... – comentou, sentindo na voz aquele nervosismo inerente à situação. – Diferente do que eu achei que fosse... Sempre me veio a imagem de templos tradicionais quando falo de Nagano.

- Deve ser porque a Downtown não é muito longe daqui. Além disso, é a capital. – respondeu Zexion, despreocupadamente. – É assim mesmo.

O corredor daquele prédio, diferente do térreo, mais parecia um corredor da morte de alguma cadeia de segurança máxima. Era impessoal, claro e estranhamente não-acolhedor.

Se, pensava, tivesse conhecido-o antes, naquele tempo em que Zexion lhe era uma incógnita de gelo escuro, sem dúvidas teria achado que aquele era um lar ideal para um cara como ele. Mas, agora, só achava aquilo muito triste; era mesmo como se aquele prédio simplesmente houvesse tomado para si tantas dores e se moldado para também mostrar a dor.

Zexion abrira a porta e deixara o moreno entrar primeiro, fechando-a em seguida. Uma sensação de calor acometeu Demyx, talvez pelo fato do corredor ser mais fresco que ali dentro.

...E, surpreso, percebeu que aquela era uma casa muito diferente da que ele havia pintado em si.

Totalmente diferente do que pensou.

Era só um simples apartamento de talvez uns 3K[39]...

Talvez estivesse surpreso daquele jeito porque Zexion sempre lhe passara uma imagem de sofisticação, por baixo de toda aquela frieza (e quem sabe essa mesma frieza fosse mais um motivo para achar que morava em um lugar bem cool).

Ou, talvez, porque aquele parecia um lar tão perfeito. Tão pequeno, tão estranhamente calmo... Não era o cenário de um suicídio e de uma família despedaçada que ouvira falar já algumas vezes.

- ...Demyx?

Acordando daquele estranho transe, o moreno virou-se, tentando apagar do rosto qualquer vestígio do choque que lhe traiu.

- Ah, o que foi? – forçou um sorriso no mesmo instante.

- ...Você esqueceu de tirar seus sapatos. – suspirou.

Percebendo-se entrando na casa assim, ainda de tênis, ele parou exatamente onde estava. Em choque.

É mesmo! Estava em uma casa popular!...

- Desculpe! Já vou tirar!... – gota.

Depois do “pequeno acidente” envolvendo seus tênis (Zexion continuou olhando-o como se dissesse assim, sem palavras, “seu maldito filhinho de papai”. Ele já pedira desculpas!), o moreno tentou, na medida que seus parcos conhecimentos permitiam, agir o mais naturalmente possível.

Quando Zexion disse para deixar sua mochila na sala do tatami[40], aceitou aquilo à contragosto, envergonhado por não saber se havia como fazer diferente. 

Porém, quando o mesmo ofereceu-se para lhe mostrar a casa, negou educadamente. Esse era um tópico que ele negava-se a entabular: a óbvia individualidade da casa. Aquela intimidade era só de Zexion, e não dele.

Até porque, de alguma forma muito estranha, não sabia como iria agir quando conhecesse o quarto de Ienzo, por exemplo (onde, muito provavelmente, foi o lugar no qual o suicídio ocorreu). Nem o resto daquela casa. Era uma selva que ele não queria arriscar desbravar.

Da mesma forma estranha e respeitosa que Zexion se mantinha longe dos assuntos privados do próprio Demyx; aquela sua doença, os motivos daquele beijo, e tudo o que aconteceu desde então.

Demyx, portanto, aceitou apenas ficar na sala de estar. Sentou-se sobre seus pés e esperou pacientemente. Mas, depois de alguns minutos quase tranqüilos, lembrou-se subitamente de algo.

- Ei, Zexy! – chamou-o.

- O que foi? – respondeu o rapaz, da cozinha.

- ...Aqui vocês também oferecem coisas para o anfitrião, não é?

- Como assim “aqui também”? – a voz de Zexion denotava a irritação pela frase. Era quase óbvio que estava dizendo “filhinho de papai”. – É claro que sim.

- ...Err, eu não trouxe nada comigo. – súbita preocupação.

Irrompendo a sala de estar (e jantar, por que não dizer?) de repente, Zexion depositou na mesa amadeirada a bandeja. Demyx olhou, abismado, o companheiro de fugas ajoelhar-se perto dele e colocar as duas xícaras ali, silenciosamente.

Mais assustado ainda ele esteve ao perceber que ambas estavam cheias de um líquido fumegante e... De boa aparência.

- Zexy! Foi você quem fez isso?! – ele tentou, realmente tentou, e ninguém poderia dizer que não... Mas a curiosidade mórbida foi maior!

- É claro que sim. – disse, de forma a frisar o óbvio do óbvio.

- Uau... – surpreso, muito surpreso.

Suspirando, tentando achar dentro de si toda a paciência para lidar com aquele idiota que parecia só ter ficado mais idiota desde que chegaram à Nagano, Zexion pegou sua xícara nas mãos.

- Desculpe, mas não tenho nenhuma fatia de torta para oferecer junto com o chá. Tem algum problema pra você?

Aquele tom estranhamente formal despertou no moreno sua imediata resposta:

- Ah, não! Não, não precisa se preocupar... – e bem mais não-comportada do que previra inicialmente. – Só o chá está bom...

Apesar de ser... Assustador”, completou mentalmente.

Entregando seu destino nas mãos de Buda, Kami-sama ou quem quer que fosse, Demyx provou um gole.

E foi com uma surpresa inenarrável que largou a xícara na mesma de novo. Ficou daquele jeito, imóvel, silente, como um cadáver, por tanto tempo que pareceu-lhe toda uma eternidade. Mas, talvez, não houvesse se passado muito. Só soube que em todo aquele espaço, um pensamento apenas cruzava sua mente.

Fatal, incrível, único.

- ...Isso é delicioso. – e, ao colocá-lo para fora dos lábios, o choque pareceu ainda maior. Como se estivesse absorvendo o impacto daquela descoberta.

Zexion, obviamente alheio àquela epopéia patética, bebericou de seu chá calmamente, apenas lamentando que aquilo não fosse café.

- É assim tão surpreendente? – perguntou.

- ...Hum?

- Eu saber fazer chás.

- Ah... – gota. – Você percebeu...?

- Qualquer um perceberia.

Bom, era de Zexion que estavam falando, não é? Ele percebia tudo! – Bom... É que foi mesmo surpreendente. Você tem cara de alguém que tem uma empregada só pra isso... E, bom...

- Eu cozinho. – deu de ombros.

Silêncio. Muito silêncio.

- ...Cozinha?

- É claro. – ainda mais calmamente do que antes, falou, bebendo mais chá.

- Cozinha tipo... Panelas e...

- Sim, Demyx. Eu cozinho “tipo” assim. – revirou os olhos.

E, afinal, o que se deve dizer quando se recebe uma notícia capaz de abalar todos os sustentáculos da barraca?

Demyx fez o que simplesmente qualquer ser humano normal faria ao ouvir que Zexion, o auto-suficiente, poderoso, salve-salve, engomadinho Zexion colocava um avental e ia para frente das panelas.

- Uau... – é. Só isso não parecia o suficiente, mas era tudo o que tinha.

- Se for ver bem, Demyx, é, na verdade, muito lógico. – objetivou, ignorando solenemente toda aquela infame surpresa. – Ienzo e eu morávamos praticamente sozinhos. Nossa mãe chegava tarde, graças aos seus dois empregos. Se ninguém cozinhasse por aqui, morreríamos.

Aquilo parecia mesmo o que alguém como Zexion faria: lei da adaptação e da sobrevivência. Assentindo para si, Demyx percebeu que, afinal, era lógico.

- Sim... Faz sentido pensar assim... – mas, também era bastante triste. – ...Puxa, Zexy, por que nunca me contou isso?

- Porque você nunca me perguntou.

É claro, veio-lhe junto com aquela resposta prática a vontade extrema de soltar uma indireta absurdamente direta, do tipo “você também, senhor Eu-só-Estou-Meio-que-Fugindo-né, não é lá alguém que conta tudo”.

Mas ele era um homem controlado e ponderado (o exato oposto daquele imbecil); jamais ia fazer algo tão inútil quanto discutir por aquilo.

- Ao invés disso...

Porém, mesmo um homem muito controlado e centrado como Zexion também tinha suas fraquezas. Alguns momentos de deslize.

- ...Você poderia me responder uma coisa.

Demyx, acabando com seu chá, colocou a xícara na mesa, encarando o outro.

- O quê?

- ...Por que me beijou anteontem?

Em algum lugar de sua mente, o moreno já imaginava que, hora ou outra, aquela pergunta seria posta em pauta; e exigiria ser respondida. Não do jeito que se faz num telefone, com mentiras veladas, mas simplesmente daquele jeito de quem sabe que não precisa mais esconder: a pura verdade. Nua e crua.

Demyx procurou em si os motivos que o levaram a fazer aquilo. E tudo do que se lembrava era da sensação de estranha tontura, do silêncio, do mundo que se desvanecia ao redor deles enquanto os lábios de Zexion tencionavam entreabrirem-se, ou de como ele era quente, mesmo quando passava uma sensação de total frieza.

- Não sei também. – meneou a cabeça. – Eu apenas... Olhei pra você e... Por um momento, me senti perdido. Quando dei por mim, estava te beijando. Desculpe.

O rapaz dos cabelos azuis ficou calado, absorvendo aquela resposta sozinho.

Sim, lembrava-se como se houvessem marcado a ferro e fogo aquela noite em sua memória. Cada iluminar de vaga-lumes, cada pequeno som dos grilos, cada silêncio preenchido de surpresa e torpor.

E lembrava-se principalmente daquele ínfimo momento onde desejou fechar os olhos e ficar ali até quando lhe permitissem. Aquele foi... Talvez, o único instante onde realmente se sentiu acolhido.

Eram os braços de Demyx que fizeram aquilo. Foram seus lábios que tiraram-no daquele esquife de gelo e solidão. E por isso o assustava.

- Não é preciso pedir desculpas... – sussurrou, em retorno. – Foi só... De repente. Não achei que faria aquilo.

- Eu também não achei. – confessou.

- ...Você também disse que me amava. – lembrou-lhe.

- Sim. – concordou ele, sem hesitar. – Eu não achei jamais que chegaria a este ponto, mas... Acho que me enganei.

- Entendo...

Zexion baixou os olhos, esmagado por aquela súbita compreensão. Ainda se lembrava de como se sentiu... Feliz? Era essa a palavra? – quando Demyx lhe falara aquilo. Ainda carregava consigo aquele estranho e caloroso sentimento, na verdade. Ele se alojara ali desde aquele momento.

Encarou-o, então, num misto de embaraço e decisão, sentimentos assim tão antagônicos que vinham ao mesmo tempo. Como ele e Demyx.

- ...Demyx. Mesmo agora, você ainda sente vontade de me beijar?

Engolindo em seco, o rapaz percebeu que aquele era o ponto: ele podia escolher entre voltar à normalidade ou dar o passo que mudaria tudo entre eles.

Hesitou, ao entreabrir os lábios para responder. Por alguns milissegundos, teve vontade de regressar no tempo e ter evitado tudo aquilo. E, então, no instante seguinte, sabia que faria tudo de novo, mesmo assim.

- ...Sim. – confessou.

Zexion deixou escapar um sorriso. Um pequeno, rápido sorriso.

- ...Entendo. – e suspirou.

Engatinhou os dois passos que o separavam de Demyx, e aproximou-se dele. Uma sensação de aconchegante nostalgia dominou-o instantaneamente.

Alguma parte racional de seu cérebro ainda tentou perguntá-lo o que diabos estava acontecendo com o plano de um chá normal. Que aquilo era totalmente impensável, errado e estranho. Mas essa era uma parte que havia gritado da outra vez, e simplesmente sido paralisada. Ignorada, ele diria.

Achando-se verdadeiramente ousado por aquilo, Zexion tocou na mão tensa de Demyx, sentindo-o relaxar ao toque.

Os orbes azuis de ambos encontraram-se, numa profusão silenciosa de luz e cores. Eles estavam ali, sussurrando todas as declarações, deixando entrever todos os possíveis mundos e, ao mesmo tempo, não estavam fazendo nada. Apenas fechavam-se, devagar, naqueles segundos palpitantes que antecedem o beijo, às vezes mais emocionantes que o mesmo de fato.

Lentamente, sem nenhuma explicação, eles encontraram-se. Zexion percebera o moreno estranhamente gelado, mas aquela fricção foi quente e delicada. Era a mesma coisa que estar beijando uma mulher – não pôde evitar o pensamento –, e ao mesmo tempo, era completamente diferente. Não de um jeito nojento; muito pelo contrário, precisava admitir.

A mão de Demyx, quando ele menos percebeu, escorregou, timidamente, em suas costas. Ela estava tão... Gelada.

E Zexion se perguntou, subitamente, o que diabos tinha Demyx.

Porque lembrou-se de como ele lhe pareceu frágil naquele dia, onde mostrou-se verdadeiramente doente. Ou naquela vez, no ryokan, onde passara a noite ouvindo seus lamentos que desapareceram na escuridão da noite aos poucos.

Forçando o moreno, então, a entreabrir os lábios, como se quisesse com aquele ato insuflar à força sua essência para dentro dele, Zexion perdeu, e soube muito bem disso, o último resquício de presença de espírito ali. Tudo o que teve diante de si era aquele menino tão frágil e tão estranhamente forte ao mesmo tempo. E soube que era muito mais do que o suficiente.

- Cheguei. – porém, aquela voz o despertou de uma forma horrenda, como quem é arrancado à força, de forma traumática, do melhor dos sonhos. – Ah. Zexion, já está em casa? Está com visitas?

Demyx, tão igualmente horrorizado, soltou-se de imediato do outro. Sentia em si aquela adrenalina derramar-se violentamente, como a água o faz nas cataratas que só via em fotos.

- Ah... – recobrando o ar perdido naquele susto, ele passou a mão pelos cabelos, nervosamente. Aquela sala nunca lhe pareceu tão quente, tão abafada antes. – Estamos aqui, mãe.

Tão desconectado que estava daquele cenário – qual era a palavra? Doentio? –, Demyx só teve tempo de perguntar-se, ainda confuso, “mãe?”.

A porta abriu-se, então.

E por ela, uma jovem senhora com um belo sorriso adentrou.

- Ora... Temos mesmo uma visita! – ela encarou Demyx, que manteve o sorriso cordial e congelado, quase que automaticamente.

- Olá, mãe. – Zexion saudou-a, parecendo levemente entediado.

- Boa tarde, os dois. – e, voltando-se para a visita, sorriu-lhe ainda mais. – Seja bem vindo. Desculpe a bagunça...

- N-não, que nada... – respondeu, tenso.

- E muito prazer. – inclinou-se, por fim, numa polida e corretíssima mesura. – Eu me chamo Ayumu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

[37] Faixa 12 da OST de Kingdom Hearts Final Mix.

[38] De fato, um bairro da capital Nagano, e de fato, não tão longe da Downtown. Google Maps ajuda muito nessas horas de necessidade.

[39] K é uma unidade japonesa de medida. 3K corresponde, mais ou menos, a um apartamento de três quartos, sala de jantar e uma cozinha.

[40] Tatami é o piso mais tradicional do Japão. Fica nas áreas secas de uma residência e serve de medida para os cômodos. O tamanho tradicional é de 90x180cm.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Gris" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.