Luz Negra I - Oculta escrita por Beatriz Christie


Capítulo 4
Luz Negra




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/438061/chapter/4

Durante o percurso rumo á nova casa Andrew e eu não conversamos muito. Ele sabia o que aquele momento significava pra mim. Mas, quando paramos o carro em frente a casa branca de numeração 27, ele não destravou as portas imediatamente.
– Só... - ele parecia buscar palavras enquanto encarava a estrada - Pense que poderia ser pior.
– Você sempre diz isso. - tentei sorrir enquanto ajeitava minha touca de lã. Ultimamente frio aumentava mais e mais a cada dia que passava. - Esse outono está parecendo inverno.
Ele sabia que eu estava tentando mudar de assunto, tentando não falar de sentimentos.
– Ele poderia estar te levando para outro estado. - ele me ignorou - Mas está te levando para uma casa melhor, do lado bacana da cidade e ainda não vai te tirar da escola. É melhor do que esperávamos, não é?
Eu não sabia se ele estava tentando me animar, ou se estava tentando convencer á si de que tudo poderia ser como sempre foi. Que eu passaria na madeireira no fim da tarde quando o trabalho dele houvesse terminado. Que iríamos ao cinema vazio assistir algum filme de baixo orçamento ou que ele ainda me daria aulas de direção, mesmo que nestas aulas eu passasse mais tempo o irritando e rindo, do que aprendendo alguma coisa.
– Você está certo. - assenti. Talvez tudo isso não fosse difícil só pra mim. As vidas de mais pessoas sofreriam mudanças. - Obrigada por roubar o carro do seu pai.
– Não foi nada.
Saí do carro. Andrew deu duas buzinadas, para alertar meu pai de que eu havia chego, assim abririam o grande portão branco mais rápido e eu ficaria menos tempo na chuva. Acenei sem saber se ele estava vendo e toquei a campainha.

Depois de meu pai abrir o portão segurando um guarda chuvas, ele me levou para dentro e me fez tirar os sapatos na porta. Eu iria fazer, mesmo que ele não dissesse, mas não posso negar que este não era um costume na antiga casa. A criação dele seria outra. Ambos de meias, ele foi me guiando pela nova casa. Era moderna, dois andares e quatro quartos. Grande, sem sinal de plantas, tirando um arranjo artificial sobre a mesa de vidro da cozinha. Muito concreto, muito vidro e cores sóbrias. Ela era tudo que a antiga casa não era, mas tentei parecer agradecida enquanto ele mostrava tudo que havia no quarto que ele havia pedido para uma amiga arquiteta montar, assim como fizera com o resto da casa.
– Eu não entendo nada de decoração. - ele parecia constrangido ao assumir que não havia escolhido nada na casa. - Esse é o seu, ao lado é o da Abby, e o da frente é da Amanda. O meu fica no fim do corredor. O que achou?
Parei para admirar o quarto. Ele tinha um formado irregular, encostada na parede e virada na diagonal estava a cama. Ao lado dela estava uma lareira, que contava com pequenos objetos "modernos" de decoração em tom terroso, que para mim pareciam mais um dos vasos que eu tentava fazer, incentivada por minha mãe e nunca davam certo. Como alguém pagava caro em algo assim?
– É, parece aquelas casas de revista de decoração.- respondi. Foi o melhor elogio que consegui fazer. Ao menos foi o bastante para fazer o meu pai sair satisfeito do cômodo.
Mesmo completamente molhada, sentei-me na cama e fiquei olhando ao redor. O edredom azul safira ainda cheirava a novo, tudo era grande e branco demais. Percebi que não importava, minhas coisas simples não combinariam com aquele ambiente. Esse quarto seria meu refúgio por um bom tempo... Eu precisava fazer algo, mas o que?
Passei as horas seguintes trancada em meu quarto, em meio ao ritual de desempacotar. Essa não era de longe a pior parte da mudança, mas não se pode negar que era cansativo e entediante. Abri primeiro a caixa de roupas e fui guardando tudo no guarda-roupas novo. Restou um grande espaço vago, pois este era bem maior do que o antigo. Adicionei meus objetos e mudei algumas coisas de posição, tentando tornar o ambiente mais "meu". Enquanto pensava, olhei para o porta retrato na mesa, ao lado do computador que eu ganhara em meu aniversário de 15 anos. Na foto, estávamos eu e mamãe no dia em que ela trouxe Abby da maternidade. Não precisei pensar mais, eu já sabia o que fazer. Quando abri a última caixa, percebi que ela não era minha. Também não havia nada escrito do lado de fora, de modo que pensei em vascular para descobrir de quem era. Enquanto remexia na caixa encontrei uma foto de mamãe e meu pai juntos, no dia de seu casamento. Não tive tempo de ter qualquer reação, pois fui interrompida por uma batida na porta.
– Só um minuto! - Rapidamente empurrei a caixa para dentro do armário e guardei a foto no bolso do casaco. – Pode entrar!
– Mel, posso ficar com você?
Era Abby, sua voz e feição estavam completamente amuados.
– Pode, o que foi?
– Nada, eu só quero ficar aqui...
Eu sabia que era mentira, pois Abby sempre pedia para ficar comigo quando estava assustada ou doente. Ela não assistira nenhum filme, então não devia estar com medo, mas também não diria caso estivesse se sentindo mal, pois odiava hospitais.
– Venha cá. - coloquei a mão em sua testa, ela estava ardendo em febre. - Meu Deus Abby! Venha temos que achar a tia Amanda, ela tem que te levar ao médico agora mesmo.
– Não, por favor Mel! Você sabe o que vai acontecer!
Injeções, o pesadelo do mundo.
– Olha só, você lembra o que a mamãe dizia? Quanto mais rápido nós irmos, menos chance de você tomar injeção. Então, temos que ir agora.
Era difícil ir contra aquela carinha, ainda mais doente, mas eu me sentia responsável por ela agora. Eu nunca havia passado por isso antes. Vê-la doente e não saber bem como lidar com isso, me fez ter mais sentido de urgência.
– A tia Amanda saiu.
– Só me faltava essa! - ao menos ela poderia ter me avisado, pensei. Amanda não tinha qualquer jeito com crianças e também não se importava - Pra onde ela foi?
– Não sei. - ela deu de ombros - Posso dormir? Estou muito cansada.
– Você pode, assim que voltarmos.
Levei-a no colo até seu quarto. Não sei quem, mas já haviam desempacotado todas as suas coisas e colocado no lugar. Vesti Abby e tentei ligar para Andrew, mas meu celular estava sem bateria. Busquei o telefone fixo da casa e encontrei um na parede da cozinha. Sem linha. Meu pai não deve ter tipo tempo de pedir para ligarem. Decidi seguir por minha única saída, ir andando.
O hospital ficava a seis quadras da casa, então saí caminhando a passos rápidos com Abby no colo. Não importava como, era meu dever cuidar dela. Isso não era nada perto do que eu faria para mante-la segura.
"Você não precisa de um carro", "Aprenda a economizar, manter um carro custa caro", "O Andrew te leva pra todos os lugares". Pois é mãe, o carro ''inútil'' parece bem útil agora! Enquanto eu discutia com minha mãe mentalmente, dei graças pela chuva ter parado enquanto eu estava absorta em meu ritual de mudança, deixando apenas as calçadas e ruas molhadas.
– Ei! Precisa de um carona? - Um homem bem vestido, dentro de um carro que deveria custar mais do que minha antiga casa, abaixou o vidro e parou ao meu lado. Era o homem que estava no Dino's mais cedo. Era Enzo. - Entre.
Parecia surreal ele aparecer naquele momento. Minha primeira reação foi dizer "Não, obrigada". Segui caminhando.
– Onde estava indo? - Perguntou ele, em tom de repreensão. - Você não assiste á previsão do tempo? Está vindo uma tempestade terrível, uma das piores do ano. Não há ninguém nas ruas.
Comecei a andar mais lentamente, pensando. A situação era diferente, eu realmente precisava de ajuda para Abby, mas entrar no carro de um estranho não era a coisa mais prudente a se fazer, ainda mais caso ele tenha te oferecido um presente sem que se conhecessem, como ele fizera com aquele doce.
– Minha irmã está doente. - expliquei, voltando andar rápido - Estou com pressa, obrigada.
Comecei a perceber que ela estava tremendo e suando frio em meu colo.
– Se está com pressa, um carro não seria mais rápido?
Continuei andando, sem responde-lo.
– Você vai precisar de alguém de maior idade para assinar a ficha dela no hospital.
Voltei a andar lentamente. Ele estava certo. A tarde caíra. Uma chuva se aproximava e eu precisava de alguém para assinar tudo.
Com muita relutância, entrei com Abby no banco traseiro e me sentei.
De repente, Enzo começou a tirar seu casaco. Depois disso, não pude evitar de olhar. Por baixo de seu casaco, ele usava uma blusa de gola alta verde escura e quando virou-se com ela nas mãos, percebi que seus olhos eram negros, assim como os meus. Fiquei um tanto distraída com as formas de seu corpo. Não quero dizer que ele era super musculoso ou bem definido, nada disso. Ele era o que minha mãe chamava de "um homem de postura".
– Pegue. - ele ergueu o casaco.
– Estou bem, obrigada.
– É para a criança.- Ele me disse, com um leve sorriso.
Senti todo o sangue de meu corpo correndo para o meu rosto.
– Ah, obrigada.
Foi o máximo que consegui dizer. Enrolei Abby com o casaco de Enzo.

Pelo caminho ele não disse mais nada, mas toda vez que eu olhava pelo retrovisor, encontrava seus olhos em mim. E então, logo eles eram desviados. Senti um alivio grande ao perceber que ele realmente estava nos levando para o hospital.
Após estacionar, Enzo retirou Abby do carro e levou-a no colo para dentro do hospital enquanto era seguido por mim. Parecia mais que ele era o irmão dela do que eu.
– Com licença, eu preciso de um pediatra.
Após dar uma boa regulada em Enzo, a enfermeira rechonchuda respondeu
– Desculpe senhor, estamos com muitos pacientes no momento. O senhor vai ter que aguardar.
– Como assim? Eu estou com uma criança doente aqui! Não está vendo? - ele havia alterado o tom de voz, então na frase seguinte voltou ao tom cortês - Por favor, ela esta tremendo de febre.
– Eu gostaria de poder fazer mais, mas com as chuvas há muitos acidentes e a demora aumenta. Se o senhor puder esperar um pouco...
– Eu espero MESMO que ela não piore.- O tom de Enzo fez saltar até a mim.
Com os olhos arregalados, a enfermeira deu um breve telefonema e logo um médico apareceu. Ele se identificou como Dr. Gabriel Arbus. Era um rapaz jovem, de olhar acolhedor, cabelos claros e olhos castanhos. Tinha um jeito muito certinho, de quem causava orgulho á família.
– Muito bem bebê, agora abra a boca...
Após fazer alguns exames em Abby, ele nos disse que ela estava com uma forte gripe e que deveria ficar de repouso.
– É bom que ela permaneça aqui por algumas horas, no soro. Vamos ver como ela reage aos medicamentos. Não queremos que a febre volte, não é? - disse ele, abrindo um sorriso.- E vocês, são os... - ele nos regulou de cima á baixo - Pais?
Todo o momento durante a consulta Enzo não havia saído do meu lado, Abby era pequena e gravidez na adolescência não era algo muito incomum. Tratei logo de esclarecer, mas acabei parecendo mais perdida.
– Não...Não! Eu sou irmã dela e esse é meu...- o que ele era? - Meu amigo.
– Enzo Portocallo.
Ele apertou a mão do Dr. mais firmemente do que o necessário.
– Portocallo, é? Parente de Laura Portocallo?
– Sim, sou filho dela.
– Oh, eu sinto muito. Fiquei sabendo do falecimento pela imprensa.
– Está tudo bem. - Enzo parecia realmente bem, nenhum resquício de tristeza.
– Foi realmente muito triste. Ela e os filhos terem se afogado daquela forma... - o doutor parou um instante - Você disse "filho"?
– Eu não estava no barco, apenas meus irmãos. - ele respondeu frio, então pegou Abby novamente no colo. - Onde fica o soro?
– Ah, sim, perdão. No fim do corredor. - o médico ainda confuso nos deu um papel.

Abby esperneou na hora de colocar o soro, mas logo dormiu tranquilamente. Sentei-me na cama ao lado e fiquei olhando pela janela. Enzo permaneceu de pé, sem nada dizer.
– Muito obrigada por ter nos trazido, desculpe ter tomado seu tempo. - Agradeci. Ele já havia feito muito, por que ainda estava lá?
– Por nada. Vou esperar e deixou vocês em casa.
– Não precisa, eu ligo para o meu pai ou meu amigo. Ele pode vir nos buscar. Mas - repeti, tentando fazê-lo ir - Obrigada.
– Seu amigo do restaurante? - ele deu um sorrisinho lateral.
Então sim, ele recordava-se de mim. Eu deveria agradecer pelo doce, ou fingir que nada ocorreu? Parecer mal agradecida ou evitar uma possível cena constrangedora?
– Falando nisso, obrigada pelo doce. - tentei parecer natural, não atirada, então não fiz nenhum elogio á bela rosa de açúcar vermelho sangue. - Não o comi, mas Andrew pareceu gostar muito...
– Que doce? - ele parecia realmente confuso.
– O que você mandou a garçonete me entregar lá fora. O com a rosa vermelha no topo.
– Não mandei ninguém lhe entregar nada. - ele encarou-me com olhos apertados de desconfiança.
Comecei a ficar constrangida. Ele provavelmente havia visto que eu era só uma adolescente qualquer, diferente de qualquer outra impressão que eu havia passado no Dino's e agora estava arrependido.
– Olha, eu só queria agradecer. Não quero dizer nada... - comecei a me explicar, aquilo havia ido para uma direção indesejada.
– Tudo bem. - ele suavizou o olhar e deu um sorriso que não me convenceu - Deve ter sido algum admirador seu.
– Agradecemos por tudo. - cortei o assunto e deixei claro que ele deveria ir agora.
Ele apertou novamente os olhos e deu a volta na cama.
– Por nada.
Ficou de pé em frente a mim e pela primeira vez o encarava de perto assim. Ele tinha uma barba por fazer, mas ela não lhe dava aparência desleixada ou séria. A boca bem desenhada, que seguia de um nariz não muito pequeno. Estando assim, perto, pude reparar mais em seus olhos. Em contraste com os cabelos claros seus olhos realmente negros como os meus, mas algo neles diziam que ele já havia passado por muita coisa.
– Meu casaco. - ele cortou o silêncio, olhando para o casaco que eu abraçava.
– Ah, sim. Desculpe.
Ele o pegou, mas antes de ir embora murmurou "Então é verdade."
– O que? - perguntei completamente confusa.
Ele parecia não querer falar. Não querer, ou não poder?
– Não aceite mais nada, ouviu? - Enzo começou a afastar-se.
– Aceitar o que?
– As rosas. - ele respondeu - Não aceite. - ele me olhou uma última vez e pude ver que ele estava ansioso - Recomendo que vá ver como seu amigo está.
Assim que terminou de falar, ele saiu do quarto. O segui, mas Enzo já havia desaparecido no corredor do hospital. Fiquei lá, parada, sentindo aquele seu perfume que havia impregnado-se em minha roupa. Meu coração começou a bater mais forte quando percebi que aquele era o mesmo perfume que senti enquanto balançava-me ao lado da igreja mais cedo. Aquele era o cheiro dele. Ele estava lá.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada pelos reviews. Vocês são demais



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Luz Negra I - Oculta" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.