Devaneios de um escritor escrita por Jessearth


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Essa vai para a série "Coisas que a gente escreve quando está matando o tempo".
Boa leitura!



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Coloco a água na cafeteira e espero. Não sei por que, mas de uns tempos pra cá isso vem se tornando uma bebida muito importante. Talvez seja a idade. Mudamos de gosto sem perceber. O aviso da cafeteira toca e tiro a xícara depositando o líquido na caneca que ganhei de um leitor. Para que sempre que eu precisar me alimentar ou servir-me de tempo inútil, olhar para ela e lembrar que alguma pessoa de bom coração pelo país gastou dez pratas de seu bolso apenas para demonstrar seu carinho por minha escrita. Olho para ela e lembro que ainda tenho trabalho a fazer. Realmente, ela nunca falha em seu dever – ao contrário de mim.

Volto à sala morosamente, arrastando os pés. Estou atrasado? Sim. Mas não há necessidade de pressa. É, talvez a idade realmente me afete. Não se engane, não sou velho. O tempo é relativo nas diversas formas em que se apresenta. Na minha vida, ele mostrou-se como um borrão incolor, que passou sem sequer ser visto.

Sento no sofá duro da sala e bebo um gole do café. Está fervendo, mas prefiro assim. Há um maço de cigarros sobre a mesa de centro. Pego um e acendo. Não sou fumante. Mas fumo. Há uma beleza silenciosa no ato de acender um cigarro e aspirar a fumaça cancerosa. Uma beleza perdida por séculos de pensamentos e filosofias vãs que se tornaram simples manchas negras no raio-X. Coloco o cigarro no cinzeiro ao lado do notebook e deixo a fumaça clara subir. Bebo um gole do café.

O rádio está ligado. Toca uma música qualquer sobre um tema qualquer. Pouso as mãos sobre o teclado do notebook, mas não me movo. Olho além da janela. A vista é feia, por isso imagino um jardim, ou a horta que queria cultivar, mas não tive tempo nem dinheiro para investir. Volto minha atenção ao notebook e digito:o tempo escorre fluido e lentamente. É pesado, e força em minhas costas, curvando-as para frente enquanto alongo-as para alcançar o teclado, onde digito essas palavras sem sentido. Olho a caneca sobre a mesinha. Talvez devesse escrever um pouco mais – em honra aos dez reais gastos – mas nada de importante me vem à mente.

Pronto. Minha existência acabou de perder o sentido. Às vezes isso acontece. Bebo um gole do café que esfriara. Pronto. Meu café também perdeu o sentido de sua existência.

Um quadro na parede chamou-me a atenção. Há um celeiro, uma árvore e um campo de trigo; tudo representado em cores mortas e vazias. Por que tenho um quadro assim?, penso lenta e verdadeiramente curioso. Talvez representasse minha existência daquele momento. Ou talvez um insight sobre minha existência de agora.

O marcador pisca na tela do notebook avisando-me que ainda vivo e que ainda tenho de terminar aquele texto. Uma história não acaba até o derradeiro ponto final, lembro-me insinuante. Sinto-me importante outra vez e digito:é fugaz, este sentimento que me mantém vivo. Mas se há, realmente, um sentido para se viver, agarrar-me-ei a ele com todas as minhas forças. Porque ainda não me foi ensinado o doce saber de não viver.

Levanto do sofá e volto à cozinha. Busco biscoitos e café quente. Da torneira cai, em breves intervalos de tempo, uma gota de cada vez. Paro tudo o que estou fazendo e observo. A torneira pinga. Pinga. Pinga... Fecho o registro. A torneira para, junta suas últimas forças e derrama um último pingo. Ele cai na pia e escorre para o ralo. Acho que acabei de ter um pensamento filosófico muito profundo sobre a vida e sobre a existência humana, mas não quero compartilhá-lo agora. Usarei em algum futuro livro e, talvez, ganhe um urso de pelúcia dessa vez. Eu preciso decorar meu quarto também.

Volto à sala apressadamente, sentando-me no sofá e digitando. Um sentimento novo me invade e me impulsiona a digitar. Talvez seja o medo de que meu editor ligue mais cedo e pergunte sobre o projeto; talvez seja a esperança de que aquele leitor mão-aberta tenha outras coisas inúteis para me enviar; talvez seja a ansiedade pelo término, um simples anseio irracional de apressar-me em uma tarefa só para ter a satisfação de vê-la concluída. Talvez eu esteja entediado e não tenha nada mais interessante para fazer. Sim, a última opção sempre é a que mais faz sentido.

Coço os olhos sem sono. O cigarro apagou; acendo-o novamente e trago até o fim. Foi inútil e sem sentido. Não há beleza nisso. Acendo outro cigarro.

Noto que escrevo apenas frases soltas, sem sentido interligado. Penso nisso e digito:a vida é uma infinita sucessão de fatos já há muito repetidos e gastos, que se repetiram de novo e de novo, eternamente, até que a roda se canse, ou as pessoas, e que não terminará antes que o mundo pare de rodar. Paro de escrever. Pego meu cigarro cheio de filosofia cancerosa e trago. Fico assim por um bom tempo, tragando e aspirando fumaça, e antes que pare, o telefone toca. É meu editor.

O diálogo entre um escritor e seu editor.

‘Como vai a história?’

‘Bem’. Olho a página em branco no editor de texto. ‘Tenho ótimas ideias. Acho que terminarei antes do fim de semana’.

‘Entendi. Você está travado. Estou indo aí agora’.

Desliga e me pego rindo. Se você é um escritor, não há pessoa que o conheça melhor do que seu editor. Ele lê entre minhas mentiras, como lê as entrelinhas sarcásticas de minhas histórias infantis. ‘Esta não é uma história para crianças’, ele dissera, ‘é sua reflexão sobre a podridão do mundo. Não faça as criancinhas chorarem por isso’.

Há algo mais a escrever? Minhas mãos pousam sobre o teclado e me pego tendo lembranças boas sobre meu início de carreira. A excitação, a ansiedade, o júbilo... Bebo meu café e bocejo. O gosto amarga minha garganta. Acho que vou precisar de alguns antiácidos antes mesmo de terminar minha história.

Escrevo mais algumas frases soltas; e penso sobre a vida. Estarei eu realmente contribuindo para a história da humanidade ao escrever estas palavras? Elas redigirão o legado do fui? Alguém lerá isso, num futuro distante, e se perguntará quem foi o escritor que as pensou? O que se passava em sua mente? O que era sua vida?

Eu serei lembrado?

Penso que sim. Afinal, pois, já dizia o poeta francês: um idiota sempre encontra um idiota ainda maior para admirá-lo.

Bebo um gole do café, mas este já esfriou. Olho minha página vazia, conto os minutos até meu editorchegar, fito o quadro morto na parede.

Pronto. Minha existência acabou de perder o sentido outra vez.


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