Contato E Distância escrita por Mayumi Sato, Alface


Capítulo 1
Contato e Distância


Notas iniciais do capítulo

"Ele decidiu que a melhor maneira de lidar com Alfred não seria manter-se longe dele. Pelo contrário. Aquele paciente parecia tão ávido por companhia que a melhor forma de lidar com ele seria aproximar-se dele para então tentar compreendê-lo. A medicação dos sintomas visivelmente não estava resolvendo alguns deles e os psicólogos apavorados que acompanhavam o seu caso não conseguiram construir um enlace com Alfred em suas visitas semanais, o que indicava claramente que outras medidas eram necessárias."



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– O senhor tem certeza de que vale a pena insistir no tratamento... deste aí?

Arthur virou-se, surpreso. Uma jovem médica que há apenas dois anos trabalhava no Centro Psiquiátrico o encarava, nervosa. A jovem Elizaveta possuía uma confiança em si mesma admirável, mas naquele momento uma grande incerteza aflorava em sua mente. Mas antes de respondê-la, Arthur pareceu ponderar por alguns segundos. Ah, então era dele que ela estava falando.

- Não vejo razões para desistir tão cedo, doutora Elizaveta – com um forte sotaque inglês o homem se pronunciou de maneira calma – Mas o tratamento parece surtir efeito no meu paciente, houve uma melhora incrível nestes últimos oito meses.

A jovem húngara se coçou, desconfortável, e Arthur sabia bem o porquê. Ela já fora a doutora responsável por Alfred F. Jones, e tais momentos lhe traziam memórias perturbadoras.

– Ele... nunca o arranhou? – sua voz pareceu tremer por alguns segundos, mas logo recuperou sua confiança – Este paciente apresentava um quadro bem instável e diversos médicos já foram responsáveis por ele, e todos foram machucados gravemente. O senhor nunca...?

- Até onde posso me recordar... não. – Arthur levantou levemente sua sobrancelha. Sabia muito bem desta história, mas para si mesmo era um mistério o fato de nunca ter sido agredido fisicamente por seu paciente – Suas emoções ainda são bastante instáveis, mas seu quadro de descontrole parece ter sido amenizado pelo tratamento.

A doutora Elizaveta observou Arthur com uma visível admiração e incerteza em seus olhos. Sabia que o homem era um médico renomado e que dedicava sua vida a seu emprego e pesquisas. Deu um suspiro audível, depositando sua mão no ombro do inglês.

- Não poderia esperar menos do senhor, doutor Arthur Kirkland. – A jovem sorriu, sendo retribuída pelo olhar seco que Arthur sempre dirigia aos outros – Mas não posso deixar de sentir pena do rapaz. Aquele garoto possui lembranças que muitos adultos não aguentariam viver com... apenas tome cuidado, sim?

Arthur balançou sua cabeça em concordância. A doutora Elizaveta Hedervary, uma húngara que havia se mudado para os Estados Unidos faz pouco tempo, era uma das poucas que compreendiam e sabiam lidar com o comportamento sarcástico e distante de Arthur. Muitos acreditavam que tal comportamento era fruto de um ego inflado, mas na verdade foi o resultado de uma vida amarga, completa de desilusões amorosas e familiares, levando-o a simplesmente abdicar de sua vida pessoal.

Com dois toques na porta, Arthur a abriu, adentrando no quarto de seu paciente. Alfred encontrava-se deitado em sua cama de maneira desajeitada, lendo uma revista do Capitão América na qual havia insistido muito a ponto do inglês não ter escolha a não ser comprá-la para ele. Imaginava como um homem de vinte e seis anos poderia agir de maneira tão infantil, mas no fundo sabia que o americano era um homem bastante inteligente. Sua conversa com Elizaveta transpassou sua mente enquanto o observava largar a revista e correr a seu encontro. Por que ele nunca havia o machucado em suas crises?

- Arthur! – o americano o abraçou com força, logo depois bagunçando seus cabelos e deixando Arthur murmurando irritado pelo excesso de contato físico – Você demorou. E aí? Você conversou com seus superiores? Sobre me liberar... você sabe.

Ele parecia tão esperançoso. Os olhos dele cintilavam com animação. Droga.

Arthur Kirkland precisou tomar fôlego para dar uma resposta. Era verdade que ele poderia estar mimando o garoto, ele estava consciente disso, contudo Arthur realmente detestava deixá-lo chateado. Sem contar que ele era especialmente fraco contra os seus clássicos olhares-de-filhotes-quando-os-donos-chegam-em-casa. Droga. Droga. Droga.

Desprovido de escapatória, ele pigarreou e tentou soar convincente:

– Honestamente, Alfred, a burocracia nessas clínicas é...

– Oh, não? De novo? – gemeu o rapaz, colocando o rosto de Arthur entre suas mãos e focando um olhar frustrado e aborrecido sobre ele. – Quanto tempo eles pretendem me manter aqui?

Como a tentativa de soar convincente foi uma completa falha, Arthur teve que passar para uma ardente defensiva.

– Você é o último paciente de quem eu quero ouvir reclamações! – ele exclamou, revirando os olhos com irritabilidade, antes de devolver o olhar de Jones com uma intensidade raivosa dezenas de vezes superior a dele - Se você saísse daqui para construir uma vida nova, você provavelmente continuaria a passar o dia inteiro trancado em um quarto lendo gibis. Não há razão para que você fique apressado e muito menos para que você desconte sua impaciência em mim.

– Quê?! – os braços de Alfred caíram por conta de seu injustificado espanto, e sua companhia aproveitou essa deixa para recuperar um pouco do seu espaço pessoal. - Sem chances, cara! Eu não iria...!

– Eu sou a pessoa que deve tentar entender os reflexos do seu subconsciente. – Arthur declarou com muita calma, ajeitando as suas vestes amarrotadas pela afeição demasiadamente expressiva de Alfred - Você acha que eu não conheço a parte mais óbvia da sua personalidade?

Diante desse argumento, Alfred fez um esforço legítimo para pensar em uma réplica, que transpareceu em uma expressão compenetrada sua. Seu problema para conseguir obtê-la foi a sua dificuldade de mentir – mais por falta de talento do que de vontade – e o seu confronto com uma conclusão correta e precisa.

– Certo, certo! Eu faria isso! – ele bufou, sentando-se na cama com os braços cruzados e um bico - Mas eu queria ter a escolha de ficar trancado no quarto lendo gibis!

– Um argumento perfeitamente sensato.

Essa resposta teria sido muito agradável para Alfred se um largo sorriso sarcástico não estivesse pelos cantos da boca de seu psiquiatra.

– Bah! Esquece. – ele falou em um tom lamurioso que combinava com suas sobrancelhas franzidas e seu beiço mal-humorado - Não é como se você pudesse entender. Você praticamente mora nesse hospital por vontade própria, seu velho solitário e monótono.

Urgh. Ofensas e absurdos (eles tinham a mesma idade!) à parte, Alfred estava tão visivelmente decepcionado e chateado. Ele era como uma criança incapaz de entender o motivo de um adulto restringir sua diversão. E era tão estúpido como Arthur detestava vê-lo com esse humor.

– Muito bem. – ele fingiu tossir para cobrir seu rosto ligeiramente avermelhado com uma mão - Enquanto eu não posso tolerar que você se comporte como um garoto cheio de birras na minha frente, eu devo admitir que não foi exatamente nobre de minha parte fazer um compromisso que eu não conseguiria cumprir...

– A minha liberação era um compromisso que você não conseguiria cumprir?! – Alfred arregalou os olhos com alguma indignação - Valeu, Artie! Nossa! Você sabe aquecer o coração de uma pessoa!

– Prosseguindo – ele interpelou aquelas exclamações com um nível amador de sarcasmo, ciente de que tinha recursos para melhorar o ânimo do Jones e de que essa era uma oportunidade única para que ele fingisse que tinha obtido tais recursos com apenas esse propósito em mente - eu imaginei que você ficaria chateado, portanto tomei a liberdade de trazer sorvetes para que nós possamos comê-los juntos na cafeteria. É a minha forma de compensar o que aconteceu. Estamos acertados?

Alfred fez um som de deboche com a boca fechada parecido com um “Há!”, ergueu uma sobrancelha e perguntou lentamente em uma voz bastante séria:

– Você acha mesmo que consegue me comprar com sorvetes? – ele continuou a encarar fixamente o seu psiquiatra até chegar a uma conclusão e grunhir com resignação - Droga, Artie, como você me conhece tão bem?

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Alfred F. Jones era um paciente com níveis intensos de problemas causados por estresse pós-traumático que estava internado em um hospital psiquiátrico desde os seus doze anos. Esta era a sua história: Alfred era um garoto ligeiramente franzino e baixo para a sua idade que gostava de brincar no jardim de sua casa, onde eventualmente recebia a companhia de um vizinho adulto com quem ele se sentia completamente à vontade. Alfred morava sozinho com a sua mãe desde o falecimento do seu pai e como ela trabalhava bastante para sustentar os dois, ele passava um longo tempo por conta própria e estava sempre contando com a ajuda desse vizinho. Justamente porque ele convivia tanto com aquele senhor amigável, ele não achou estranho quando este veio visitá-lo em uma tarde de verão, durante o horário de trabalho de sua mãe, nem recusou o pedido do vizinho para que os dois descessem até o porão para que pudessem buscar novas coisas para brincarem. Alfred chegou a dizer que não havia nada de especial no porão de sua casa, entretanto o vizinho estava nervoso e impaciente e insistiu que eles descobririam algo divertido quando chegassem lá. Alfred decidiu escutá-lo. Todavia, quando eles adentraram o porão e fecharam a porta, o homem o atacou repentinamente.

Alfred não gostava de falar dos detalhes da experiência que ele viveu. Ele tentou resistir com todas as forças, porém algum abuso sexual físico e verbal foi sofrido por ele e ele tinha ânsia de vômito quando se recordava deles. Alfred F. Jones era somente um garoto fraco e pequeno aos seus doze anos e por mais que ele se debatesse, não conseguia se soltar das mãos de um homem adulto e forte. Levou uma eternidade para que ele caísse no chão e desistisse. Nesse momento, ele esteve a poucos segundos de ser estuprado pelo homem, quando o destino deu outra curva dramática: a mãe dele apareceu no porão. Por motivos que Alfred desconhecia na data, a senhora Jones retornou mais cedo do trabalho e ela deu um grito de horror terrível ao vê-lo naquele estado. Ensandecida, ela correu em direção ao vizinho para atacá-lo, porém ele se assustou com aquela intrusão e tirou um revólver do cinto, dando um tiro no tórax dela. Alfred gritou, gritou e gritou. O mais horrível foi que ela não morreu instantaneamente. O homem estava nervoso demais para conseguir mirar corretamente e ele atirou mais três vezes, enquanto ela lutava para se aproximar dos dois, até que ele conseguisse controlar seu tremor e dar um tiro fatal em sua cabeça. Foram esses tiros que levaram a sua mãe e salvaram a vida de Alfred, pois uma colega de trabalho que estava esperando na porta da casa para receber os documentos que a senhora Jones havia esquecido em sua cômoda, conseguiu escutá-los e chamou a polícia. O resgate chegou antes que o homem pudesse concluir seu ataque porque a resistência de Alfred ao segundo ataque foi bem maior e mais violenta do que a primeira. Não tendo sido pego de surpresa dessa vez e desesperado com o que havia acontecido com a sua mãe, Alfred lutou violentamente com o homem. Ele atirou objetos, bateu nele com um pedaço de madeira, mordeu o braço dele quando ele chegou perto de tocá-lo, chutou o seu estômago e reagiu como podia.

Quando a polícia chegou ao porão, ela encontrou o corpo ensaguentado de uma mulher estirado no chão e um homem sem calças com um corte na testa tentando controlar um garoto despido repleto de marcas arroxeadas.

O homem foi preso e Alfred F. Jones conseguiu se salvar. No entanto, o fim daquela história não havia sido remotamente feliz.

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Quando chegou à mesa que Alfred havia pegado para os dois, trazendo vários potes de sorvete e alguns chocolates, Arthur Kirkland noticiou os olhares desconfiados voltados para aquele ponto e deu um suspiro exasperado. O Jones era livre para sair de seu quarto, pois sabia-se que elementos muito específicos – portanto, evitáveis - desencadeavam suas crises, todavia ele era “recomendado” a sair em horários de pouca movimentação e, no fundo, todos os pacientes e funcionários se sentiriam mais tranqüilos se ele nunca saísse de lá.

Eles não conseguiam evitar o receio que nutriam dele, e a opinião de Arthur sobre esse temor coletivo dividia-se entre “Pobre Alfred” e “Azar o deles”.

– Por que você está suspirando? – a sua companhia reclamou com certa impaciência - Sente logo! Eu vou começar a comer sem você!

Arthur agitou o rosto para os lados. Oh. Aquele Alfred F. Jones. Tão desesperado por alguns sorvetes. A sua idade realmente não bastava para que ele tivesse um comportamento menos infantil, não era?

– Os seus hábitos na mesa continuam péssimos. – ele comentou.

– Eu estou abrindo um pote ~ – cantarolou Alfred e não foi por acaso que ele apanhou um pote de sorvete de baunilha que esteve todo o tempo sob o olhar discreto de Arthur.

Aquele descarado!

– Espere! Eu comprei os sorvetes! Deixe-me escolher o meu sabor primeiro!

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Aos seus vinte e seis anos, a parte consciente de Alfred F. Jones havia superado as suas experiências do passado. O comportamento dele poderia não ser tão cavalheiresco e maduro quanto seria o tipo de Ar... digo, quanto Arthur Kirkland gostaria, contudo aquele rapaz definitivamente exibia uma personalidade animada e extremamente amistosa, diferente do seu “eu” obscuro apresentado nos registros de vários anos atrás. Se ele conversasse com alguém fora daquele hospital, seria capaz de cativar qualquer indivíduo com o seu bom humor e charmes juvenis. Além disso, quando perguntado sobre os acontecimentos trágicos de tantos anos atrás, ele dizia que sim, tudo havia sido tão horrível que ele nem gostava de recordar, mas o importante é que ele estava vivo agora e, portanto, deveria seguir em frente com otimismo...

O problema era que o seu subconsciente não concordava com isso.

Por mais que ele falasse que estava tudo bem e aparentasse ter um humor muito melhor do que a maioria dos médicos daquele hospital, Alfred podia ter ataques de pânico quando ficava em quartos escuros com a porta fechada, era acometido por uma depressão profunda quando a data da morte de sua mãe chegava e, o mais importante, ele tinha surtos de violência sempre que alguém o tocava.

Sempre.

O consenso geral dos médicos que o trataram era o de que a experiência traumática gravara na porção mais profunda de sua consciência, o instinto de lutar para se proteger ao ser tocado, pois qualquer toque alheio seria associado ao abuso que ele sofreu. Esse instinto agressivo era mais forte do que ele. Alfred não conseguia controlá-lo, uma vez que ele começasse. O grau dele variava de acordo com o nível do contato. Toques rápidos e acidentais podiam receber apenas arranhões ou tapas como resposta. Uma mão no ombro poderia resultar em uma crise que o levaria a esmurrar uma pessoa até que os enfermeiros conseguissem controlá-lo. Não foram poucos aqueles que haviam sofrido os impactos dessa reação defensiva de Alfred F. Jones e as lendas ao seu respeito eram ainda maiores e mais sangrentas.

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–... Mas falando sério, Artie, você precisa terminar o meu tratamento logo e me tirar daqui. – Alfred afirmou, quando estava esmagando alguns chocolates dentro de um pote de sorvete de menta - A comida que eu recebo é horrível. O primeiro canto para o qual irei quando sair daqui será uma lanchonete! Eu tenho sonhos com hambúrgueres!

– Em primeiro lugar, esses sonhos devem ser ridículos. – Arthur replicou com franqueza, com o rosto abaixado voltado para os potes de sorvete e o olhar sério e crítico erguido para a fonte das lamentações - Segundo, não é como se você pudesse reclamar da comida do hospital. Eu sempre trago lanches clandestinamente para você.

– Exatamente! – o sorriso de Alfred cresceu - A comida que eu recebo é horrível!

– Seu ingrato, estúpido, insensível, desprezível...!

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Foram essas lendas sangrentas que foram repetidas tantas vezes para Arthur quando ele aceitou encarregar-se do caso de Jones há oito meses. Ele se recordava de ter ficado ligeiramente assustado na época. O conselho “Fique longe daquele ali!” foi repetido tantas vezes que ele chegara a cogitar em aceitá-lo...

No entanto, quando entrou no quarto de Alfred, ele não viu a besta descontrolada que todos descreviam. Ele viu apenas um rapaz com a atitude mais sociável e o sorriso mais sincero que ele já conhecera e teve vergonha e remorsos por ter pensado nele como uma espécie de animal raivoso por alguns minutos. Verdade fosse dita, Alfred podia ser um paciente com problemas causados por estresse pós-traumático, mas ele parecia uma pessoa muito afável.

Verdade fosse dita, se ele não fosse um paciente com problemas causados por estresse pós-traumático, Arthur Kirkland com certeza o convidaria para o seu apartamento com as piores intenções possíveis.

Ele decidiu que a melhor maneira de lidar com Alfred não seria manter-se longe dele. Pelo contrário. Aquele paciente parecia tão ávido por companhia que a melhor forma de lidar com ele seria aproximar-se dele para então tentar compreendê-lo. A medicação dos sintomas visivelmente não estava resolvendo alguns deles e os psicólogos apavorados que acompanhavam o seu caso não conseguiram construir um enlace com Alfred em suas visitas semanais, o que indicava claramente que outras medidas eram necessárias.

Sendo assim, a primeira pergunta de Arthur a Alfred F. Jones não foi algo profissional como “Você está se sentindo bem?” ou “Defina seu estado de espírito”, e sim um “Considerando-se que eu estarei acompanhando o seu caso por algum tempo, eu preciso que você responda algo fundamental para o progresso do nosso relacionamento e do seu tratamento: você gosta de fadas?”.

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Os potes estavam acabando e Arthur não havia conseguido cumprir seu segundo objetivo. O primeiro era relativamente simples: melhorar o humor de Alfred. O primeiro pote de sorvete solucionou o problema. O segundo objetivo, um pouco mais complicado por várias razões, era perguntar ao seu paciente por que diabos ele nunca havia o agredido, quando eles tinham uma quantidade de contato físico nada desprezível.

Não era como se ele pudesse ir direto ao ponto, tendo em conta que pareceria que Arthur Kirkland estava guardando uma preocupação longa com aquilo e Alfred poderia fazer a sua terrível expressão de “filhote-com-a-pata-acidentalmente-pisada” a qual incitaria sentimentos de culpa que acabariam com ele. Por outro lado, seria bem abrupto se eles fossem de uma conversa sobre os desenhos da Pixar para o tema “Por que você nunca me atacou, Alfred?”, logo a arte da sutileza seria necessária para que a conversa seguisse o fluxo correto.

– Por que você quer tanto sair desse lugar, Alfred? – Arthur perguntou, aproveitando a brecha do assunto que eles haviam discutido antes e fingindo estar distraído em tirar a tampa anormalmente emperrada de um pote - Você não tem nada no mundo exterior e, para ser honesto, ele também é uma espécie de hospital psiquiátrico repleto de pessoas mentalmente perturbadas. A única diferença é que elas não recebem abrigo, comida e tratamento médico gratuito.

Alfred soltou um riso breve e suave.

– Sabe, deve ser difícil para você compreender o que eu quero, tendo em conta você é um amargurado que não sabe se divertir... – apesar de terminar essa sentença com um sorriso deveras implicante, o seu rosto foi inteiramente tomado por um entusiasmo vívido e verdadeiro quando ele prosseguiu, e os olhos dele se acenderam como um céu azul de verão - mas eu acho que existem muitas coisas empolgantes que eu só poderei vivenciar do lado de fora. Eu vim para cá com doze anos, Artie! Eu tenho um universo de experiências para vivenciar! Eu quero viajar pelo mundo, escalar uma montanha, criar um negócio, fazer cinqüenta ou sessenta amigos!

– Você está ciente de que as suas expectativas para o lado de fora são completamente irrealistas, não está? – Arthur indagou de forma pragmática, insensível à gigantesca animação da pessoa com quem conversava.

– Nada é impossível para quem tem um sonho! – Alfred continuou sorrindo.

– Essa ideia é mais irrealista ainda! Eu me impressiono como um enorme fã de Batman como você, não tem uma percepção muito mais sombria sobre a vida urbana.

Alfred riu novamente com uma sonoridade quase afetuosa.

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Alfred F. Jones infelizmente não gostava de fadas ou de unicórnios, porém ele gostava de Harry Potter, dos heróis da Marvel, de filmes de alienígenas, de sorvetes, de documentários científicos e de cachorros. Além disso, a despeito do que o seu perfil(idiota) sugeria, ele era um ávido leitor e adorava as obras do Tolkien e do Julio Verne. Ele e Arthur se tornaram próximos rapidamente.

Arthur Kirkland conversava todos os dias com ele. No início, ele tentou fazer isso com a desculpa de que a proximidade dos dois possibilitaria a sua compreensão profunda da psiquê de Alfred e etc, contudo ele não conseguiu mais mentir para si mesmo, depois da tarde inteira que eles passaram discutindo se a Hermione ficaria com o Harry ou com Rony no final dos livros da J.K. Rowling.

Argh.

Por mais que ele tivesse se esforçado para negar, cabia a Arthur Kirkland aceitar o seu destino. Após uma longa vida de decepções e péssimos relacionamentos, ele obteve seu melhor amigo em um hospital psiquiátrico.

Ele gostava tanto, tanto de Alfred que chegava a doer. Ele nunca admitiria isso a ninguém, mas ele adorava cada parte daquele idiota. Cada parte. Incluindo aquela voz excessivamente alta que sempre fazia o seu coração disparar. Ele apreciava imensamente a sua companhia e encontrava alegria nos momentos mais simples ao seu lado. Ele gostava de poder sentar na cama de Alfred e ler por cima do ombro dele, as revistas e livros que os dois adquiriam. Gostava de assistir filmes com ele na televisão da cafeteria e discutir com ele sobre quão bons ou ruins eram os atores ou os enredos. Ele gostava de subornar Alfred com sorvetes e ser subornado com os olhares dele. Ele gostava de poder ouvir alguém dizendo “Que droga, cara”, em vez de se afastar dele e chamá-lo de “ranzinza”, quando ele tinha um dia difícil. Ele gostava de ver como Alfred sorria e ria quando estava com ele. Ele gostava da forma como o seu coração ria e sorria quando ele estava com Alfred.

Céus, como ele gostava daquele grande imbecil.

A sua teoria era a de que ele não era o culpado pela existência de um sentimento de intensidade importuna. Alfred F. Jones era naturalmente cativante. Se as pessoas pudessem evitar o medo que sentiam dele e dessem uma única chance a Alfred, todas elas seriam capturadas pelo carisma dele. Algumas simplesmente não conseguiriam evitar sentir algo por ele.

Por uma questão de segurança, ele preferia não nomear o que esse “algo” seria.

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– Não fique muito ansioso. – Arthur declarou, fazendo um esforço consciente para soar profissional e confiante. As suas mãos estavam se remexendo inquietamente na superfície da mesa. Eles estavam no último pote e ele deveria usar sua cartada final imediatamente - O seu quadro de controle emocional melhorou consideravelmente nos últimos oito meses porque eu sou um excelente psiquiatra, é claro, porém as suas crises desencadeadas pelo toque continuam acontecendo, embora com uma intensidade mais moderada, e você sabe perfeitamente que elas não permitem que você possa viver em sociedade.

– Caramba, Artie. Você não pode ser um pouco mais otimista? – ele reclamou com uma cara que era ao mesmo tempo magoada e aborrecida, aparentando estar vagamente ofendido com a conclusão de Arthur - A minha situação está melhor! Veja, além de todo o meu avanço geral, eu nunca bati em você e toco em você, tipo, o tempo todo!

Bingo.

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Por gostar tanto dele, Arthur Kirkland tinha sentimentos contraditórios quanto à sua recuperação.

Ele sabia perfeitamente que Alfred F. Jones era um indivíduo fantástico, muito melhor do que o próprio Arthur jamais fora, e uma vez que ele estivesse do lado de fora, não haveria limites para as suas potencialidades.

Alfred seria um cara popular. Ele certamente conseguiria os cinqüenta amigos que queria, estaria sempre ocupado com suas novas diversões e logo arranjaria uma linda namorada, deixando o seu passado no hospital para trás.

Deixando Arthur para trás.

Ele tinha tanto, tanto medo daquilo. Alfred era o seu melhor amigo, a única pessoa com que ele convivera que fora capaz de dar e receber a sua afeição, um raio de esperança no destino cinzento e solitário de Arthur Kirkland. Enquanto havia poucas pessoas, como a doutora Elizaveta, que conseguiam lidar com Arthur, era somente Alfred que realmente gostava de estar com ele...

Arthur, no entanto, estava convencido de que Alfred F. Jones apenas se sentia dessa forma em relação a ele por não ter outras opções. Dentro do hospital, ninguém gostava daquele paciente ou se aproximava dele e Arthur era a sua única companhia naquele lugar. Era um fenômeno natural que ele confundisse um sentimento de gratidão por amizade. Fora dali, o atraente e brilhante Jones o esqueceria em um piscar de olhos.

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– Por que eu?

– Hã?

– Por que você nunca me bateu? – Arthur observou o chão atentamente, buscando concentrar-se na cerâmica para ignorar o incômodo em seu estômago e em seu coração. As suas expectativas pessimistas e otimistas estavam enchendo o seu interior e o deixando terrivelmente ansioso - A sua reação ao contato é instintiva. Não deveria fazer diferença quem é a pessoa que está tocando em você. Você não acha um pouco estranho que você não tenha essa reação comigo ou que você se sinta perfeitamente confortável em me tocar? Eu me pergunto qual seria a causa disso...

– Não, eu não acho estranho. – Alfred replicou com perfeita serenidade em uma atitude muito oposta a de Arthur Kirkland, a pessoa que agora o fitava com estarrecimento - Como você é estressado, Artie. Relaxe e coma o resto desse sorvete que eu comecei a comer, mas não gostei do sabor.

– Você não acha estranho?

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Havia uma porção íntima de Arthur a qual julgava que a liberação de Alfred faria com que eles se separassem irreversivelmente e temia a aproximação desse dia. Havia outra porção dele que ansiava pela liberação de Alfred porque ele era o seu melhor amigo e merecia toda a felicidade do universo por conseguir um feito como esse.

Por fim, havia uma bagunça em seu coração provocada pela curiosa maneira como Alfred lidava com contatos físicos, tratando-se especificamente dele, e pelas possibilidades que esse comportamento trazia.

Desde que os dois começaram a se falar, Arthur evitou tocar em Alfred. Ele não tinha pavor da possível reação de seu meio-amigo e meio-paciente porque a diferença de tamanho deles não queria dizer que Arthur não poderia contê-lo no caso de uma emergência - os anos de delinqüente juvenil de Arthur Kirkland serviriam para um propósito, afinal. A sua motivação para evitar qualquer contato físico com Alfred provinha de seu conhecimento da experiência traumática que o Jones relacionava ao toque e do seu desejo sincero de não apavorá-lo daquela forma. Diferente dos outros funcionários do hospital, ele sabia que a principal vítima das crises de Alfred era o próprio Alfred. Sendo assim, ele jamais se permitiria fazer com que o garoto passasse por tamanho tormento por conta de um descuido seu.

Ele não o tocava, porém mantinha uma distância curta entre os dois por conta de seus princípios. Ele sempre achara absolutamente ridículo que aquele garoto fosse tratado como um pitbull descontrolado ou algo do gênero.

Ao manter-se próximo de seu paciente sem nunca tocá-lo, Arthur Kirkland esperava somente conseguir obter a confiança de Alfred e isso ele obteve mais rapidamente do que cogitara. Entretanto, o que ele jamais imaginaria era que o senhor Alfred F. Jones seria aquele que tomaria a iniciativa de tocá-lo.

A primeira vez em que isso aconteceu foi um verdadeiro susto. No quarto mês da relação dos dois, Arthur sentiu um contato delicado e hesitante em seu pulso quando eles estavam sentados na cama de Alfred, falando sobre adaptações cinematográficas de livros, e teve um sobressalto assustado, erguendo-se da cama imediatamente. Ele arregalou seus olhos e uma corrente fria correu por seu corpo, fazendo-o recuar para a porta o mais rápido que podia em uma tentativa de proteger-se do que estava prestes a vir. Ele ainda murmurou um “Alfred?” notoriamente assustado, antes de perceber que o seu paciente havia permanecido sentado na cama, observando-o com um olhar desapontado vagamente infantil. “Relaxe um pouco, Artie.”, foi o que Alfred lhe disse com um contrair de lábios ressentido, “Eu só estava querendo experimentar como seria tocar em você”.

E para o maior espanto geral, Alfred tornou a repetir essa experiência diversas vezes.

Os primeiros contatos foram rápidos e discretos, limitando-se a um encostar de ombros ou mãos. Foi de maneira gradativa que o nível de proximidade deles começou a subir, subir e subir até chegar a um ponto no qual Arthur Kirkland tornou-se o mais desconfortável com os contatos físicos dos dois.

Argh. Ele não sabia se era mais estressante não poder tocar em Alfred de forma alguma ou ser tocado repetidamente por alguém que o fazia querer retribuir aquele contato com muito mais intensidade do que a sua ética profissional permitia.

Era um acontecimento extraordinário. Além de Alfred F. Jones poder tocar em uma pessoa específica sem problemas, um fenômeno nunca ocorrido naquele caso médico, ele também não tinha problemas em ser tocado desde que soubesse que o contato provinha de Arthur. Mesmo em suas crises, ele podia conter-se e ficar paralisado e trêmulo no instante em que o seu psiquiatra o tocasse.

Arthur podia segurar sua mão, tocar no seu ombro, agarrar as suas roupas, e ele não fazia nada! Era impressionante. Mais do que impressionante. Era terrivelmente maravilhoso para Arthur e maravilhosamente conveniente para o hospital que aquilo estivesse acontecendo. Havia alguém capaz de manter aquele paciente sob controle. Uma exceção à regra.

... Ser essa exceção deixava Arthur Kirkland esperançoso e confuso. Se Alfred F. Jones tocava apenas nele não significaria que Arthur era especial para ele? Talvez especial da mesma forma que ele era para Arthur? Ou será que Arthur estava sustentando uma impressão extremamente errônea quanto à relação dos dois que só poderia ser positiva para o masoquista que havia dentro dele? Oh, céus. Como ele buscava disfarçar o quanto se perguntava sobre aquilo, quantas vezes ele chegara a conclusões otimistas e rolara em sua cama, fazendo sons animados abafados pelo travesseiro, com o coração pulsando fortemente, e quantas vezes ele chegara a conclusões realistas que deixavam uma espessa nuvem escura sobre o seu humor... Era terrível, de fato, aquela aflição de não saber se uma esperança deveria ou não ser alimentada.

De certo modo, ele era grato à doutora Elizaveta por lhe dar um impulso e uma suposta curiosidade profissional para fazer uma pergunta que há muito o atormentava por dentro. Ele não teria coragem de fazê-la de outro modo. Arthur Kirkland era tão bom em seu trabalho como era péssimo em sua vida pessoal.

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Havia risadas no programa de humor que passava na televisão ao longe. Os raios ensolarados daquela tarde de verão entravam pelas janelas de vidro da cafeteria. Potes vazios de sorvete cobriam a mesa onde estavam Arthur Kirkland e seu melhor amigo.

Era um pouco engraçado como um cenário tão alegre poderia ser tão pesado por conta de uma simples questão.

O silêncio dos dois estava carregado de coisas provavelmente distintas. No caso de Arthur, ele estava cheio de nervosismo, hesitação e apreensão. No caso de Alfred... Quem podia saber o que estava na mente daquele imbecil? Ele não parecia estar compartilhando da mesma confusão de Arthur Kirkland e, observando com atenção, era possível perceber que ele estava surpreso com a confusão de Arthur, como se toda aquela situação fosse clara como a água.

– Bom, é verdade que eu costumo ficar fora de controle quando alguém toca em mim, Artie, mas você não é “alguém”. – Alfred franziu as sobrancelhas, expressando um estranhamento que não deveria estar ali - Escuta. – ele apanhou a mão de Arthur, cujo coração emitiu um alerta imediato, e falou em um tom sério e suave – Na tarde em que aquilo aconteceu, lembre... Eu vi a minha mãe cambaleando de dor até receber um tiro fatal. Você entende? Eu vi a minha mãe receber tiro atrás de tiro e não pude fazer nada. – a expressão de Alfred contraiu-se imediatamente, como se a sua boca estivesse experimentando um sabor inesperadamente amargo.

Alfred não costumava falar muito sobre a morte de sua mãe e Arthur sentiu seu peito pesar tanto com a visão de seu rosto quando ele se lembrava dela que se sentiu tentado a interrompê-lo. Ele realmente teria o feito, se o psiquiatra dentro dele não o recomendasse a escutar o resto. Ele tinha que escutar o resto, apesar dos sentimentos ásperos que aquela conversa lhe trazia. Era uma experiência importante para Alfred falar sobre aquilo. Como paciente e como amigo.

Percebendo o silêncio atento de sua companhia, Alfred começou a correr seus dedos pela extensão da mão de Arthur, recompôs-se e prosseguiu:

– Aquilo doeu mais em mim do que qualquer agressão que eu tenha recebido naquele dia. – ele suspirou muito profundamente e conseguiu retomar o seu semblante firme - Por que eu não bato em você? – ele ergueu uma sobrancelha - Eu acho que, no fundo, o meu desejo de nunca mais ver as pessoas que eu amo se machucando continua a ser maior do que os meus instintos agressivos.

Pessoas que eu amo.

– Ah. Hm.

Arthur buscou desesperadamente algo para olhar que não fosse o rosto de Alfred. Ele queria dar uma resposta inteligente e adequada que não o comprometesse, contudo o seu melhor resultado foi um balbuciar de monossílabas sem sentido. Ele estava ocupado demais, tentando não respirar como se tivesse corrido uma maratona, para conseguir organizar uma sentença coerente.

– Gaguejar não vai mudar o significado do que eu acabei de dizer, viu? – Alfred falou e Arthur pôde sentir o sorriso cretino nas palavras dele ainda que estivesse evitando encará-lo. Nessa altura, o seu rosto estava ardendo tanto que ele se sentia febril.

“Controle-se, Arthur Kirkland. Controle-se, Arthur Kirkland. Uma criança no jardim de infância sabe que existem vários tipos de amor. Não cometa um engano estúpido. Acalme-se. Acalme-se. Acalme-se.”

– Eu... – ele umedeceu seu lábio inferior e forçou um sorriso arrogante na direção de seu acompanhante - Que bom que você sabe me apreciar devidamente, garo...

– Eu não disse que aprecio você, Artie. – Alfred sorriu amplamente - Eu estou bastante certo de que usei outro termo. O termo certo, por sinal.

O pomo-de-adão de Arthur subiu e desceu em um segundo.

– Quer ouvir uma estória? – Alfred inclinou seu rosto para frente, ignorando prontamente o quanto seu rosto estava tão próximo de Arthur que era possível sentir a respiração dos dois se mesclando - Há oito meses, eu mesmo não achava que fosse conseguir me recuperar. Especialmente quando o meu novo psiquiatra entrou no quarto e a primeira pergunta que ele me fez foi “Você gosta de fadas?”. Eu me lembro que pensei: “Nossa, se a primeira pergunta dele é uma coisa dessas, fica bastante óbvio que eles desistiram de mim”. Sinceramente? Eu não dava muitos créditos a você, Artie. Para mim, o senhor sobrancelhas-gigantes... Ei! Não se irrite! Eu não havia memorizado o seu nome ainda! De qualquer modo, eu não achei que você seria diferente dos outros médicos que tentaram me ajudar. Eu não sou um pessimista como você, porém há limites de quantas vezes um cara pode receber tratamentos diferentes e não suspeitar de que todos são incompetentes demais para lidar com ele. Para a minha sorte, eu estava errado dessa vez. Você não estava me perguntando se eu gostava de fadas por não ter a menor esperança no meu caso. Você estava me perguntando isso porque você tinha um legítimo interesse estranho por fadas! Que plot-twist! Mas, sabe, eu não havia sido totalmente convencido de que a minha situação iria mudar. – ele deu de ombros - É um saco ter expectativas sobre algo e perdê-las, entende? Eu deixei que você se aproximasse de mim e que tudo se desenrolasse no seu ritmo, não por achar que você me ajudaria a ficar melhor, e sim porque eu te considerei meio... – um sorriso peculiar surgiu em seu rosto - engraçado.

“Engraçado”. Aquele era o último adjetivo que o usualmente rabugento Arthur Kirkland poderia associar a si. Ele ficou surpreso e não teve a capacidade de julgamento necessária para ver se estava sendo elogiado ou ofendido.

– Engraçado? – ele piscou repetidamente.

– Não em um mau sentido. – Alfred esclareceu, dando um riso morno e baixo - Apenas... Você sabe quando você encontra um filhote de cachorro em algum lugar e não consegue resistir à vontade de brincar com ele?

Espere um maldito minuto. Era o Alfred que deveria ser o filhote entre os dois! Poderia ser somente uma impressão de Arthur, mas aquela conversa estava tomando rumos estranhos e embaraçosos e estava se tornando progressivamente mais difícil que ele ignorasse a possível interpretação errada que estava surgindo dali.

– Bom, eu não imaginava que o nosso relacionamento se desenvolveria assim. – Alfred agitou o rosto para os lados com os olhos fechados e um meio-sorriso que expressava alguma diversão com essa ideia - Eu dava dois meses para que você desistisse do meu caso. Foi um choque total quando você continuou comigo. E eu também não estava esperando gostar tanto de você.

Arthur inspirou fundo. A mão que era segurada por Alfred estava um pouco trêmula e úmida.

– Há quatro meses, uma pergunta surgiu do nada na minha cabeça durante os comerciais de um seriado que eu estava assistindo. “Como será que é a pele do Artie? Macia? Áspera? Quente? Fria?”. – Alfred prosseguiu com uma casualidade perturbadora quanto a essa revelação que fez a boca de Arthur quase desabar de seu rosto. - Pode parecer um tanto bizarro, mas a partir desse dia eu realmente fiquei curioso com isso. Eu tentei ignorar essa pergunta porque... Wow. É estranho ter esse tipo de curiosidade sobre o seu melhor amigo e não era como se eu pudesse tirar a dúvida, senão eu acabaria me tornando uma espécie de Mr. Hyde, batendo em você e seria mega-dramático.

Todas as forças de Arthur foram voltadas a evitar pensar no quanto Alfred tornou-se mais atraente após essa referência literária.

– Ignorar essa pergunta, fez outras dúvidas surgirem na minha mente. “Como é o toque das mãos do Artie?”, “Como ele reagiria a um abraço?” e outras questões igualmente constrangedoras. Aquele mês foi um tormento horrível, cara. Você nem imagina. – ele gemeu como se a mera lembrança daquilo fosse cansativa – Chegou um certo ponto em que eu não consegui me controlar. Eu tinha que tentar. – Alfred precisou tomar um pouco de fôlego e essa foi a primeira vez em que Arthur notou algum desconforto nele. - Você estava tão perto e tão envolvido com a nossa conversa... – a voz dele começou a ser engolida por sua garganta e as orelhas dele não estavam parecendo mais vermelhas do que antes? - O resto, você sabe.

O resto era constituído por uma fuga de Arthur até a porta, um olhar decepcionado de Alfred e uma atmosfera tão pesada dentro do quarto que os seus ombros poderiam ter sido afundados.

Dependendo da extensão do que seria “o resto”, ele também devia ser composto por um aumento gradual de interações físicas entre os dois e diminuição exponencial de qualquer hesitação da parte de Alfred. Ou de um aumento gradual do desconforto de Arthur e diminuição exponencial de seu profissionalismo.

– Hm. – ele fez um tímido e abafado som de reconhecimento.

Arthur Kirkland conseguia lembrar-se perfeitamente desse segundo “resto”. Para ser honesto, ele tinha dificuldades em esquecê-lo. Especialmente em manhãs chuvosas e frias.

– Depois desse dia, eu descobri que não era difícil tocar em você. – Alfred deu o seu sorriso mais largo e espontâneo daquela tarde - Eu podia tocar em você. Você faz ideia do quanto essa descoberta foi incrível para mim, Artie? Eu consegui tocar à vontade em uma pessoa e ser tocado por ela sem problemas! Há oito meses, eu não imaginava que eu conseguiria me recuperar nunca e olhe onde estamos agora! Eu encontrei alguém que eu consigo tocar, alguém que eu gosto de tocar e quero tocar o tempo todo! Oito meses, Artie. Eu esperei mais tempo pela nova temporada de um seriado! Pense um pouco no quanto eu poderia progredir, agora que eu comecei a melhorar! Eu tenho esperanças, Artie. Eu estou cem por cento seguro de que sairei daqui e de que serei o cara mais extrovertido da minha vizinhança. Caramba, as pessoas vão se enjoar dos meus abraços!

Olhando por essa perspectiva, Arthur Kirkland concordou que Alfred tinha boas chances de melhora, entretanto não conseguiu sentir-se exatamente feliz com essa hipótese. Ele queria tanto conseguir sentir-se feliz por ele, todavia um pensamento não cessava de machucá-lo por dentro. Por enquanto, ele era valioso para Alfred, sendo a única pessoa que ele conseguia tocar, no entanto logo Alfred F. Jones se tornaria esse indivíduo expansivo e livre que distribuiria abraços e encontraria muitas pessoas. Era uma maneira egoísta e terrível de se pensar, contudo ele não poderia deixar de constatar que aquilo que tornava Arthur especial seria perdido quando Alfred terminasse seu tratamento.

Era difícil saber que a mesma fonte que alimentava as suas esperanças, alimentava as suas preocupações. Ele detestava o seu egoísmo tão intensamente quanto detestava a possibilidade de ser esquecido por Alfred e era tão angustiante e confuso sentir-se assim. Ele não sabia o que fazer, o que dizer, o que desejar...

– Eu não perderei mais as minhas esperanças. – Alfred afirmou de repente com um olhar de determinação e havia algo no seu tom que indicava que ele sabia que estava interrompendo os pensamentos de Arthur e quais seriam precisamente esses pensamentos - Não perca as suas também. Afinal... – em uma rara ocorrência, o volume de Alfred foi abaixado a ponto de tornar-se quase inaudível, o que fez Arthur realizar com alguma surpresa que ele conseguia ouvi-lo claramente devido a curta distância física que separava seus rostos, embora não as suas testas - A primeira coisa que eu farei ao sair desse lugar será levá-lo a um jantar romântico e beijar você até os seus joelhos fraquejarem.

Ouvir aquilo foi como um trovão. Um raio. Uma explosão.

Não, não. A realidade daquela afirmação caiu sobre Arthur Kirkland como uma chuva repentina em um dia abafado e quente. Ele não conseguia acreditar que... Seria ótimo, é claro... Seria maravilhoso, é óbvio, porém... Ele simplesmente não cogitara que poderia ser... Céus, céus, céus.

Mas era real. Alfred F. Jones dissera aquelas palavras. E ele estava na sua frente, com os seus olhos tão próximos que era possível ver o brilho de ansiedade que os preenchia, e sua mão segurando a de Arthur com a mesma força, determinação e esperança que seu semblante mostrava.

– Eu... – ele começou em um fio de voz, desviando o seu olhar para baixo e tentando pensar em algo que ele poderia dizer que não soasse tão desesperado quanto um “Por que você não me beija logo, seu grande idiota?!”. Ele não podia esquecer-se de que era um cavalheiro e de que, sinceramente, os dois estavam na cafeteria de um hospital psiquiátrico. - pensei que a primeira coisa que você faria seria... – Urgh. Era bem mais fácil lidar com o constrangimento quando ele acontecia apenas em um plano ficcional. Respiração, respiração, respiração. -... ir a uma lanchonete. – ele concluiu com uma voz embargada e feições que não conseguiam decidir-se entre sorrir ou franzir severamente.

Arthur Kirkland estava verdadeiramente feliz, radiante, vibrante, mas uma fina camada de ceticismo e desconfiança insistia em cobri-lo. As palavras de Alfred eram muito animadoras, entretanto pareciam improvisadas e pouco sinceras. Ele havia dito que a primeira coisa que faria seria ir a uma lanchonete.

– Er... Quer dizer que o nosso jantar romântico não pode ser em um Subway? – Alfred perguntou, inclinando o rosto para o lado e soando legitimamente confuso e alarmado com aquela nova informação - Oh, isso é uma pena. – ele lamentou, esfregando a parte de trás de seu pescoço e sorrindo um pouco sem jeito.

...

A camada derreteu e escorreu para o chão como um cubo de gelo em um dia quente.

Arthur Kirkland ergueu-se imediatamente. Seu rosto estava intensamente sério e ruborizado.

– Eu preciso sair. – ele anunciou.

– Hm?

– Eu vou para a minha sala. – afirmou ele, apanhando seus pertences, com as sobrancelhas franzidas denotando uma concentração elevada - Você pode voltar para o seu quarto sozinho.

– Ok. Sem problemas. – Alfred riu tranquilamente. Pela sua calma e casualidade, era visível que ele estava compreendendo os atuais sentimentos de Arthur. Talvez até se divertindo um pouco com eles, aquele idiota.

Ao ficar de costas para ele, Arthur Kirkland falou com gravidade e resolução.

– Alfred?

– Diga.

– Eu vou escolher o lugar do nosso primeiro encontro. – ele declarou, cerrando os punhos e erguendo seus ombros involuntariamente - Está decidido.

Alfred riu brevemente, o que fez Arthur congratular-se por ter se virado cedo e evitado ver que tipo de sorriso ele estava lançando em sua direção e a conseqüente vergonha que ele sentiria ao recebê-lo.

– Boa sorte, doutor Kirkland! – ele disse alegremente para as suas costas.

– Humpf. Eu farei o meu melhor, Jones.

Arthur Kirkland deu essa resposta muito apressadamente e saiu correndo para a sua sala e para os seus livros de estudo. Ele esbarrou em alguns psiquiatras no caminho e quase esbarrou em uma coluna mal-posicionada no meio do corredor, porém nenhum desses acontecimentos conseguiu destruir o discreto sorriso que teimava em escapar pelos cantos de sua boca ou o calor agradável que ele sentia por dentro, a despeito da quantidade de sorvetes que havia consumido.

Ah, ele precisava encontrar o tratamento ideal para Alfred, o mais breve possível.


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Notas finais do capítulo

Olá, queridos leitores! Obrigada pelo tempo de leitura que vocês dedicaram a essa one-shot!

Eu penso que pessoas com doenças mentais, embora precisem ser tratadas de fato como se tivessem doenças(o que explica porque o amor do Arthur não deixou o Alfred completamente curado e o próprio Arthur decide que irá pesquisar formas de tratamento adequadas para tirá-lo dali), precisam receber suporte emocional também(o que explica porque o Arthur pôde promover certa recuperação no Alfred), pois eu acredito firmemente na teoria de que o corpo relaciona-se muito com o que sentimos. Não é nada romântico, vejam. Existem determinadas substâncias que são liberadas de acordo com as nossas emoções que podem afetar o corpo e contribuir para a piora de certas doenças mentais.

No meu caso, por exemplo, eu tenho depressão por conta de uma tendência biológica na minha família. Apesar de muitas vezes, as minhas "crises" de depressão aparecerem sem nenhuma razão porque o meu organismo produz menos uma substância que deixa as pessoas mais animadas, a verdade é que certos fatores emocionais podem dar impulso a elas ou piorá-las.

Pessoas com doenças mentais também possuem sentimentos comuns e muitas vezes são capazes de se relacionar com outras normalmente. Eu tenho depressão e estou muito bem, obrigada. Eu também sei de pessoas próximas com esquizofrenia, síndrome do pânico e transtorno bipolar que tomam os seus remédios e vivem uma vida praticamente normal. Sendo assim, eu quis trabalhar também a questão da discriminação dos pacientes com doenças mentais.

Desejo sinceramente que essa one-shot tenha conseguido entretê-los e que esteja à altura do universo alternativo proposto pela senhorita Alface! Eu espero que vocês tenham apreciado a sua leitura e que façam comentários que continuem me estimulando a escrever!

Muito obrigada e até breve ~

PS: O blog desafiosparaficsdehetalia terá outro evento em dezembro! Esse será individual! Por favor, participem do blog e tentem mandar ou responder desafios e contribuir com esses eventos!^-^