Give Me Love escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 5
Capítulo IV - Ruas Frias


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Faz tempo que eu não posto, né? Me desculpem. Teve a suspensão do Nyah!, fic nova e mais alguns contratempos. Mas aqui está o 4.º cap.!

Sobre o cap.:
Capa: Laura Whatever. Editada por mim.
Música: "Cold Desert" - Kings Of Leon. (Link ao longo do cap.).
Itálico: ênfases, trechos da música.

Boa leitura! o/



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"'Não mandarei cinzas de rosas', porque o vento não merece meus segredos. Seguirá vil e rasgado pelas ruelas escuras."

P.I.



Dez metros de distância até o alvo. A flecha tem 0,75kg e vai atingir uma aceleração de 2m/s². A força para puxar a corda do arco deve ser de 1,5N. Oito segundos até os pontos de empecilho cruzarem a zona de foco do alvo. Ela se concentrou.

Os dedos finos levaram a corda até a altura de sua orelha, enquanto os orbes escuros continuavam fixos na calçada do outro lado da rua. Sete segundos. Ela respirou fundo, assim como seu alvo.

Seis segundos. A flecha foi lançada.

Se não fosse pelo barulho dos carros que seguiam noite a dentro, teria sido possível ouvir a ponta da flecha rasgar o ar a finco, acertando o espaço entre as escápulas do rapaz ansioso com precisão. Um ônibus passou na rua, ocultando-o por alguns instantes, ao mesmo tempo que a moça de cabelos em corte chanel parou ao seu lado com um meigo sorriso nos lábios. Yhasmin suspirou aliviada, sentando-se na beira do telhado com a aljava e o arco.

– Atrasei, não foi? - Lara colocou uma mecha do cabelo atrás da orelha, fitando o chão sem graça.

– Tudo bem, eu acabei de chegar - mentiu Antônio, radiante por sua amada realmente ter vindo.

A verdade é que ele estava esperando na frente do modesto café já fazia uma hora. Claro, não estava sozinho - embora tivesse certeza do contrário. Seu anjo da guarda o tinha acompanhado até ali e Yhasmin chegara há pouco tempo.

– Cronos - Lara leu a fachada do café, curvando o pescoço para trás. - Você costuma vir aqui?

– Na verdade não - o homem foi sincero. - Descobri que você gosta de conhecer arte amadora de uma maneira confortável e contemporânea.

Antônio deu as costas à rua, abrindo os braços o máximo que podia para apresentar o café.

– Me recomendaram o Cronos. É um lugar modesto e aconchegante, cada noite da semana um tema para as apresentações, cada dia uma categoria. Esta noite - ele caminhou para debaixo do pequeno toldo verde sobre a entrada, empurrando a porta -: poemas.

O rosto de Lara se iluminou. Ela adorava demasiadamente poemas, sonetos, haicais, qualquer coisa que andasse naquele universo de rimas, palavras curtas e sutilezas.

– E qual é o tema de hoje? - Sorriu, dando o braço a seu acompanhante para que pudessem entrar.

– Amor - Antônio puxou uma humilde e pequena camélia do bolso interno da jaqueta, prendendo-a ao cabelo de Lara.

Aquela não era a entrada principal, mas Antônio detestava chamar atenção. Além do que, um de seus amigos trabalhava como gerente do café, por meio de quem conseguira permissão para entrar pela porta dos fundos.

– Bem, meu trabalho com eles acabou - Yhasmin levantou-se quando a porta do café chocou-se contra o batente. - Antônio e Lara estão caminhando.

A cupido estendeu a mão para seu lado, fazendo aparecer um pequeno pergaminho de papel off-white e uma pena carregada de tinta preta. Com delicadeza, ela riscou o nome do casal da lista. Eles foram os primeiros da noite, Yhasmin ainda tinha mais duas missões.

– O.k. - o pergaminho e a pena sumiram. - Vamos aos próximos.

Tendo posto a aljava e o arco no ombro, a cupido esticou as asas contra o ar gélido. Os lábios se contorceram em expressão de desgosto, mas ela não se deteve em tal sensação por longo tempo. As narinas inspiraram deliciosamente aquela brisa noturna que fazia as calhas dos prédios assobiarem.

Yhasmin colocou um pé para fora dos limites do telhado. A aljava e o arco balançaram em seu ombro, escorregando as alças um pouco para o braço. Ela pendeu o peso para frente, laçando-se ao vazio desesperador que a separava do chão.

Ninguém, naquela rua suja e quase vazia - cuja única atração que pedia atenção era a fachada do café -, viu quando o corpo juvenil, condecorado com brancas asas, caiu do topo do telhado do prédio decadente e se amparou firme na calçada de chicletes escurecidos.

As poucas pessoas que passavam perto não podiam ver aquela aberração. Se parassem um pouco para realmente ver a garota, só poderiam reparar nela e, no máximo, se perguntarem o quê uma jovem armada de arco e flechas pretendia fazer àquela hora da noite.

Mal poderiam suspeitar do poder abrasador que suas flechas continham. Na verdade, ninguém que a enxergava naquele momento, suspeitava de alguma coisa. A política de qualquer transeunte da noite era "Não olhe, não encare, não repare em ninguém. Muito menos em pessoas assim, estranhas".

– Tsch - Lean cruzou os braços e apoiou os pés na mesa. - Você tem noção do que está pondo em risco, Darius?

– Hum, vamos ver - o ruivo recostou-se ao mesmo móvel, levando uma mão ao queixo. - Estou pondo em risco a falha de uma missão? Porque, Lean, convenhamos. Seus calouros não conseguem completar uma mísera missão sequer.

Darius virou-se, apoiando as mãos na mesa com um estrondo e fitando o colega a finco. As pupilas cercadas pelas íris azuis mostravam algo competitivo.

– O que estou pondo em risco, Lean? Seu cargo como queridinho da Senhora?

Os olhares foram travados num campo arisco de tensão. Um seguia os mínimos movimentos do outro.

– Está pondo em risco sua própria caloura, meu irmão - Lean o empurrou, levantando-se da cadeira. - Sabe quantos humanos são retirados do Paraíso para viverem a vida eterna como cupidos? Um em um milhão.

O menor deu a volta na sala, chegando à bancada repleta de taças de cristal. Apanhou a garrafa de vinho no balde de gelo e encheu a taça acima do que a etiqueta permitia.

– Sua garotinha foi pega para isto porquê você viu potencial nela - Lean proferiu o adjetivo com certo deboche. - Acho que sua visão está embaçada, irmão.

– Não somos frades em um convento para me chamar de irmão, Lean - Darius tensionou os músculos do punho.

– Tem razão, tem razão - o outro ergueu a taça, sentando-se na cabeceira oposta. - Mas a questão não é essa, Darius. Por que você acha que ela é, atualmente, a única ex-humana trabalhando como cupida? Todos os outros que enviamos foram arrebatados pelas trevas em sua primeira missão.

A taça foi pousada na mesa com força.

– Eros são demônios de verdade, são astutos. Não são qualquer diabretezinho que se mata facilmente. Se ela topar com um, não vai nem conseguir fugir.

Darius observou o menor sorver um gole do vinho com o os olhos ainda fixos em si. Lean arqueou uma das sobrancelhas, como que desafiando-o a retrucar.

– É o que veremos - Darius andou até a porta, colocando-se para fora da sala -, irmão.

["Cold Desert" - Kings Of Leon: http://www.youtube.com/watch?v=bWkYu-hYTZs&hd=1]

O salto grosso do par de botas estilo coturno ecoava na calçada. As avenidas pareciam ruas àquela hora, e as ruas pareciam desertos de concreto e cimento. Yhasmin articulou os dedos dentro dos bolsos da jaqueta, ajeitando a luva de lã nos vãos certos.

Ela recostou-se na quina de um prédio velho, ficando de frente à placa de indicação da rua. Seu alvo apareceria logo.

Eu estou na esquina

Esperando uma luz

Chegar

É quando eu sei que

Você está sozinha

Um rapaz de cabelos castanhos e roupas desalinhadas surgiu na esquina contrária, andando de modo despojado e, de certo modo, perdido. Ele aparentava estar sem a mínima vontade de viver, a noite certamente tinha sido longa para ele.

O alvo virou a esquina, seguindo para uma rua com alguns grupos de jovens sentados nas calçadas. Garrafas de bebida alcoólica vazias e tombadas, narguiles soltando fumaças chamativas e risos de palhaços tristes. Adolescentes desviados. Yhasmin reparou naqueles que se abraçavam às garotas sujas de rimel e batom, enquanto seguia seu alvo.

Sem suspeitar de nada, nem desviar o olhar de seus tênis encardidos, o rapaz entrou num barzinho. Yhasmin torceu o nariz ao correr os olhos pela entrada do lugar. Estava mais para uma espelunca. Para chegar até o estabelecimento propriamente dito, havia um corredor de assoalho de madeira e papel de parede mofado.

Uma música triste e solitária enchia o ambiente, parecendo ocultar os arrotos e soluços de bafos carregados de álcool e nicotina. O rapaz sentou-se ao balcão do bar, ordenando um drink e voltando-se para a dançarina - já bêbada - seminua no palco mal instalado.

– Vamos para casa - uma jovem tentava levantar um coroa desajeitado. - Todos estão olhando para você. O que a mamãe vai pensar quando te ver assim?

Assim que Yhasmin pôs os pés no bar, olhares curiosos se voltaram a ela. Ora porque ela estava limpa e sóbria, ora porque estava armada. Ela sentou-se ao lado de seu alvo. Se seu plano desse certo, não precisaria usar nenhuma das flechas ali dentro.

– Hey, belezinha - um homem fétido se aproximou da cupido. - O que acha de voltar comigo para casa esta noite?

Claramente, ele tinha bebido o quanto seu dinheiro pôde pagar. Um sorriso malicioso erguia-lhe o canto dos lábios, ao que sua mão se esgueirava pelo balcão para tocar na da garota.

– Acho que você deveria voltar sozinho, grandão - Yhasmin devolveu o sorriso, porém com um toque de compaixão. - Sua mulher e sua filha estão te esperando, não? Vá com Deus e não fale com estranhos.

– Bard, deixe a moça - o garçom pediu, pousando a mão no ombro do homem. - Faça como ela disse. Você já fez merda o suficiente esta noite.

– Tsc - o homem afastou-se com o semblante irritado. - Vai voltar sozinha para casa, idiota.

– É o que pretendo, meu senhor - Yhasmin ergueu seu copo de água para o bêbado, dando-lhe as costas em seguida.

– Sério? - Seu alvo riu ao seu lado. - Acabou de dar um belo fora num bebum e ainda por cima pede água? Num bar?

– Eu não bebo - ela explicou.

– Bem, aqui não é lugar para você então - o rapaz sorriu. - Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios.

– Olha só - Yhasmin se surpreendeu. - Uma citação de Vinicius de Moraes. Dia da Criação, se não me engano.

Ela assistiu o rapaz bebericar seu drink.

– Não é um autor nacional - ela observou. - Aqui não é lugar para cultura desse tipo, logo aqui também não é lugar para você.

– Eu sempre fui conhecido por ultrapassar os limites - ele pousou o copo no balcão. - E hoje eu acho que ultrapassei limites além do que eu dava conta.

Os movimentos da dançarina sobre o palco pareciam débeis aos olhos de Yhasmin. Não tinham objetivo, eram quebrados e morriam sempre ao toque do poste de metal.

– Eu nunca chorei quando estava pra baixo - o rapaz apoiou os antebraços no balcão. - Eu sempre tive medo de mim mesmo.

Finalmente a jovem tinha conseguido erguer o pai da cadeira e passar o braço gordo por sobre seus ombros. Estava lutando para carregar o coroa até o corredor de saída.

– Jesus não me ama - ele meneou a cabeça negativamente, sorrindo com masoquismo. - Nem ela.

– Ela quem? - Yhasmin virou-se mais para ele.

– Eu estou falando como um bêbado, mas eu só me embriago de realidade - ele não ouviu a pergunta, porém Yhasmin sabia a resposta. - Ninguém jamais carregou meu fardo e eu sou muito jovem para me sentir tão velho assim.

– Sim, sua alma está tão podre que chega a ser velha - Yhasmin apoiou mais de seu peso no balcão. - Ela não te amava, nunca amou. Mas não diga que Jesus não te ama. Mesmo que você tenha imposto um limite na vida dela... Jesus ama até mesmo os assassinos.

A última sentença fora sussurrada ao alvo.

– Ninguém sabe - o rapaz sorriu de canto com um teor de escárnio nada discreto. - Ninguém viu, ninguém além de mim.

Yhasmin pagou seu copo de água e ajeitou a aljava e o arco no ombro.

– Quando derem por falta dela, estará estampado na primeira página de todos os jornais da região. Todos saberão, todos verão. O segredo não será só seu - ela se levantou. - Salve o que ainda possui de seu amor e talvez consiga entrar no Paraíso. Porque quem ama de verdade nunca abandona. Se você realmente tem esse sentimento para com ela, termine o que começou, vá com ela até o fim, até seu limite.

O rapaz remexeu o último gole do drink no copo, enquanto a cupido sumia no corredor mal iluminado. Ele derramou o resto da bebida em sua garganta cansada de tanto gritar palavras ao vento vil daquela cidade. Pagou sua bebida, pôs se pé e enfiou as mãos nos bolsos traseiros do jeans.

Antes que a madrugada de sonhos quebrados acabasse, ele regressou ao apartamento de sua ex-namorada, tomando as habituais ruas frias. Ninguém se advertiu de sua sombra subindo à sacada do apartamento pelas escadas de metal enferrujado na lateral do prédio.

O corpo ainda estava jogado no living como ele tinha deixado há três horas atrás. Ajoelhando-se sobre o tapete lavado de sangue, empunhou a faca que usara no crime. Não queria ter chegado a esse ponto, no entanto, esteve desprovido de guia divino desde de que se metera naquilo.

– Estou indo, meu amor - lançou um último olhar carinhoso ao cadáver.

A faca enterrou-se em seu pescoço sem hesitação. Sangue jorrou para os móveis, chão e paredes. Seu corpo tombou para os braços da amada. O anjo da madrugada não ficaria ao léu.

– Agora estão juntos para sempre, cada qual em seu próprio limite - Yhasmin os observava da sacada do apartamento.

Uma brisa cortante balançou-lhe os cabelos e seguiu até onde o casal jazia. Um assobio triste, uma massa de negrume.

– Pode levá-los, já acabei meu trabalho - Yhasmin fez a lista aparecer novamente, riscando o nome dos dois mortos. - Só espero que não se engasgue com tamanha tristeza que eles carregavam.

O anjo materializou-se como um surrado boneco de pano, no tamanho de um homem adulto. Ele respondeu a cupido com um aceno de cabeça, antes de se debruçar sobre os corpos.

Yhasmin regressou ao Céu, sem o menor interesse de ver o anjo se alimentando de uma parte das almas que só emitiam paixão.


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Notas finais do capítulo

Notas:
— Na frase inicial, a citação entre aspas unitárias é da música "A Sua Maneira" - Capital Inicial. Faz parte da frase original.
— "Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios" é um dos versos do poema "Dia da Criação" do célebre Vinicius de Moraes. Yhasmin diz que ele não é um autor nacional porque, como já devem ter percebido, a cidade da estória não é brasileira.

Bem, o que acharam do desempenho da Yha em sua primeira missão?

Nos vemos nos reviews! o/

Beijos,
Lolla.



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