Premonição 7: Clube da Morte escrita por Lerd


Capítulo 1
Odisseia


Notas iniciais do capítulo

Voltei, gente :DEssa fanfic não tem absolutamente NENHUMA relação com a minha hexalogia anterior. Ela é basicamente um "reboot", sabem? Espero que gostem e acompanhem :DPs: fotos dos personagens podem ser encontradas aqui http://premonicaofanficsource.blogspot.com.br/2013/09/premonicao-7.html



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/413084/chapter/1

Eram frequentes as noites em que Cassiel acordava repentinamente, completamente suado, após um pesadelo. Seguia-se um ritual, no qual ele caminhava até o quarto da filha e a observava dormir em seu berço por bastante tempo, até que seu próprio sono voltasse.

Julia era a criaturinha mais bonita que Cassiel havia visto em toda a sua vida. Tinha cabelos castanhos (diferentes dos dele) e a bochecha rosada. Dormia a noite toda e dificilmente chorava. Pelas contas do rapaz, ela devia ter um ano e três meses. É, é isso. Com os nove meses da gravidez, fecham dois anos.

Dois anos. Exatamente dois anos, com poucos dias de diferença. Esse fora o tempo que Cassiel Hendrix fora mantido cativo na Síria. Fora capturado em 2011 e liberado apenas em 2013. A Guerra Civil Síria, porém, continuava. Mesmo dois anos depois, ainda não entendia porque fora mantido vivo.

Quando fora capturado, junto de outros sete companheiros, Cassiel teve a certeza absoluta de que seria morto. Não havia porque o deixarem vivo. Ele era um militar estrangeiro, alguém que os rebeldes sírios odiavam mais do que o seu próprio governo. Cassiel havia resignadamente aceitado seu destino. Mentalizara o rosto de Katie uma última vez e fechara os olhos.

Viveu sob a constante ameaça de morrer cada um dos mais de setecentos dias em que ficou preso. Fora alojado em uma cela minúscula com todos os seus companheiros, e ali ficou pelos dois anos seguintes. Foi torturado (física e psicologicamente), passou fome, frio, medo. Assistiu a morte por desidratação de um de seus colegas de serviço. Viveu no inferno.

Durante os primeiros dias, não quis morrer. Queria poder escapar, queria reencontrar sua mãe, seu irmão, Katie. Queria viver, acima de tudo. Conforme os dias foram passando, porém, seu ânimo foi ficando cada vez mais baixo, até que um dia um de seus companheiros tentou se suicidar na cela, se enforcando, enquanto os outros homens dormiam. Cassiel acordou no meio da ação e conseguiu convencer o colega a aguentar firme. Por algum motivo, aquela situação lhe deu forças. Ele sentiu que precisava se manter vivo para manter seus companheiros mentalmente fortes. Aquela era a sua missão, dali em diante.

Além disso, havia Katie acima de tudo. Dormia com o sorriso dela em sua retina todas as noites. Sonhava com os seus beijos, com o seu toque. Com os cabelos compridos e sedosos que ela tinha. Com as mãos delicadas e com o pescoço rosado e cheiroso. Sentia tanta falta de Katie. Arrependia-se de ter um dia se relacionado com ela, porém. Havia feito com que ela sofresse, mesmo que não fosse sua culpa. Isso era algo que ele jamais poderia mudar.

Mas aquilo tudo fazia parte de seu passado. Seu inferno acabara.

Mas Katie não existia mais.

Cassiel saiu do quarto de Julia, mas dessa vez não foi voltar a se deitar. Seguiu até o banheiro e prostrou-se, nu, na frente do espelho. Parecia dez anos mais velho do que quando saíra dos Estados Unidos, apenas dois anos antes. Parecia cansado. Nas raras vezes em que se vira no espelho, não se achara bonito. Isso não mudara.

O rapaz era loiro e tinha os cabelos ainda cortados em estilo militar, com a máquina dos lados e a tesoura em cima. Seus olhos eram azuis, e sua orelha era um pouco proeminente. Sua sobrancelha era bem clara, o que, aliado com a sua estrutura facial, lhe dava uma aparência zangada. A boca grande e os lábios grossos enfatizavam essa sensação de que ele era carrancudo. Mas aquela não era a verdade.

Cassiel era doce. Mais doce do que se podia imaginar um veterano de guerra.

Era gentil e não era muito paranoico. Claro, tinha seus pesadelos e sabia que sofria de estresse pós-traumático, mas não era um lunático de guerra. Não temia que seus captores voltassem para buscá-lo nos Estados Unidos. Aquilo seria um delírio. Os sonhos ruins que tinha em geral envolviam perder Julia. Ou Katie, mesmo que conscientemente ele soubesse que já a havia perdido há muito tempo.

Fez a barba de dois dias e escovou os dentes pela quarta vez naquela madrugada. Depois apagou a luz e ficou mais alguns minutos no quarto de Julia, observando-a dormir. Cansado, caiu na cama e teve o resto da noite sem sonhos.

x-x-x-x-x

Marissa terminava de fazer panquecas, na frente do fogão, quando Erika acordou e a abraçou por trás. As duas trocaram um beijo rápido, sorrindo.

— Acordou tarde. — Marissa observou.

Erika concordou com um aceno de cabeça.

— Eu não dormia até tarde a uns dois anos.

As duas estavam juntas há sete anos. Conheceram-se quando Marissa serviu de fonte para uma matéria que Erika estava escrevendo, na qual denunciava fraudes dentro do exército norte-americano. Como era de praxe, o nome da garota jamais foi revelado, mas começou ali uma bonita relação.

Erika era cinco anos mais velha que Marissa, com trinta e sete anos bem vividos. Era bastante bonita também. Tinha os cabelos castanhos e levemente ondulados nas pontas. Os olhos eram cinza escuros, e ela tinha uma carnuda e bonita boca. Era alta e extremamente confiante em seu modo de falar, andar e gesticular.

Já Marissa tinha uma figura mais doce. Era loira, de cabelos compridos e lisos. Tinha olhos azuis, dentes branquíssimos e um sorriso encantador. Era médica e oficial do exército dos Estados Unidos, o qual amava tanto quando amava sua parceira. Fora esse o motivo pelo qual ela aceitara denunciar as sujeiras dentro da instituição: por amor. Como uma mãe que coloca um filho de castigo para que ele melhore seu comportamento.

A outra mulher era uma importante editora-chefe de uma grande revista, a Anubis. Erika Bergström era de descendência sueca e formara-se em jornalismo, em Yale, com grande mérito. Era inteligente, dedicada e extremamente profissional. Era considerada uma das editoras-chefe mais implacáveis do estado da Flórida.

— Eu falei com o Jamal pelo telefone, hoje de manhã. Ele está ansioso pelo passeio de amanhã. — A loira contou. Erika sorriu de maneira terna.

Jamal era um garotinho de três anos que elas estavam tentando adotar já fazia alguns meses. Elas estavam em uma fase de transição, quando a criança ainda não está oficialmente adotada, mas mantém um constante contato com os futuros pais. Ele estava morando em um orfanato administrado por freiras, e Marissa e Erika visitavam-no pelo menos três vezes por semana.

O passeio aconteceria no dia seguinte, um domingo, no Roar Zoo, um zoológico do centro da cidade. Aquela seria a primeira vez que Jamal ficaria cara a cara com bichos de verdade.

— O Cassiel também vai estar lá, com a Tina e o Paul.

— Ele vai sair de casa? Uau, isso é ótimo. — Erika comentou.

Marissa conhecera Cassiel durante o tempo em que eles serviram na Síria. Ela fora para lá junto com ele, em 2011, e por pouco não fora capturada também. Voltara para os Estados Unidos imediatamente após o incidente, junto de alguns companheiros, e por fim decidira retornar à Síria em 2013, algumas semanas antes de Cassiel ser liberto. Os dois então se reencontraram. Fora ela a responsável por examiná-lo logo quando ele chegou. Lembrava-se que o rapaz fedia tremendamente, e que estava tão debilitado que não conseguia nem tomar banho sozinho. Coubera então a Marissa a tarefa de limpá-lo e ajudá-lo a se reestabelecer. Da experiência surgiu um mútuo e sincero afeto. Além disso, ele salvou a minha vida.

Erika ainda não havia visto o rapaz, mas conhecia sua história e admirava a sua bravura. Ela conhecia era o irmão dele, Paul, já que este era um dos donos de uma importante agência de publicidade que prestava serviços para a Anubis.

— E a garotinha? — Erika perguntou.

— A Julia? Não sei. Acho que eles vão levá-la junto.

Logo quando ficou sabendo da história de Cassiel, Erika sentiu-se compadecida dele. Era uma história triste, e não só pelo fator do cárcere e da experiência terrível que o rapaz sofrera na Síria, mas pela tragédia que se desenrolava nos Estados Unidos sem que ele soubesse.

Quando Cassiel fora para a guerra, Katie, sua noiva, não tinha ideia de que estava grávida. Assim que descobriu, procurou avisá-lo, mas o rapaz já havia desaparecido. Ela passara toda a gestação sem saber do paradeiro do noivo, obtendo ajuda de sua sogra Tina e de outros parentes dele. Quando a garota estava no sétimo mês de gestação, acabou sofrendo um grave acidente de carro que tirou sua vida.

Ela estava grávida de gêmeos. Um menino e uma menina. Os médicos apressaram-se a fazer o parto, quase sem esperanças de que as crianças sobrevivessem. O garotinho chegou a nascer, mas estava tão fraco que de fato não sobreviveu. A garota, porém, ficou viva. Nascera prematura e com um peso tão baixo que novamente os médicos foram pessimistas. Contra todas as expectativas, viveu.

Julia nascera sem mãe e com um pai desaparecido.

Katie não tinha família. Seus pais já haviam morrido e ela não tinha irmãos. Coubera à Tina, a avó paterna da menina, a tarefa de criar Julia. A mulher recebera o apoio de vários amigos, entre eles Marissa e Erika, que sentiam pela tragédia familiar de um homem que estava servindo sua pátria.

— Esse rapaz sofreu tanto... Essa menina é realmente uma dádiva. — Erika comentou, e sua companheira concordou com um aceno.

x-x-x-x-x

Ulysses digitou a última frase e, contrariando todas as recomendações, enviou a matéria ao seu editor sem revisá-la. Sabia que ela não continha nenhum mínimo erro. Era um de seus dons.

Além disso, com Erika Bergström de férias, tudo ficava mais fácil. O editor-chefe que estava no lugar dela não era nem de longe tão duro em suas críticas. Ele provavelmente diagramaria a matéria sem fazer nenhuma alteração. Bem que a Erika podia ficar eternamente de férias, pensou. Gostava da mulher, mas às vezes achava difícil trabalhar com ela. Era comum que ambos tivessem divergências com relação ao conteúdo das matérias. Irritava-o que ela muitas vezes derrubasse pautas que ele considerava grandes cartadas, simplesmente porque elas desagradariam a chefia.

Com chefia, Ulysses se referia aos chefes da própria Erika. Os donos, acionistas e financiadores da revista. Os grandes. Um cachorro não deve morder seu próprio dono, dizia a mulher quando ele tentava publicar matérias que prejudicariam a imagem do veículo ou de seus colaboradores. Ulysses achava aquilo a maior idiotice do mundo, mas resignava-se e aceitava o que ela dizia.

Nessas horas, achava que devia ter se dedicado à carreira de modelo.

Desistira logo quando completou dezoito anos, ciente de que aquela profissão era extremamente cruel e impeditiva. Chegara a desfilar algumas poucas vezes, entre os dezesseis e dezessete anos, mas o forte foram as fotos e os editoriais de moda. Fizera ensaios fotográficos para importantes revistas dos doze aos dezenove anos, mesmo depois de já ter desistido da carreira e começado a cursar jornalismo. Entrara cedo na puberdade, de modo que aos doze ou treze anos já tinha o corpo de um jovem adulto.

O forte eram seus imensos olhos azuis. Ulysses tinha feições rudes, com nariz e olhos grandes e sobrancelhas grossas. Sua boca, então, era uma verdadeira bocarra, com lábios grossos e vermelhos. Tinha cabelos escuros, quase pretos, o que lhe dava uma aparência ainda mais selvagem. Ele imaginava que se seus olhos fossem castanhos, teria passado despercebido e seria mais um na multidão. Mas eles eram de um azul claríssimo, quase translúcidos. Ulysses era um em um milhão, quando o assunto eram ensaios fotográficos, e ele tinha consciência disso.

O cabelo era mantido arrepiado em cima e aparado na máquina dos lados. Ulysses também cultivava uma barba, um bigode e cavanhaque escuros, mas que nunca deixava crescer demais. Chamava a atenção de mulheres e homens. Era difícil que não se lembrassem dele.

Isso era bom e ruim. Bom porque se destacava de maneira positiva. Ruim porque jamais conseguiria se esconder na multidão.

Toc, toc. Pensamentos interrompidos.

Ulysses até se esqueceu de que estava dentro da sala do editor-chefe (com a autorização dele), e pediu que a pessoa que batera na porta entrasse.

Sorriu de orelha a orelha quando viu quem era a visita.

Themis. Sua noiva.

A garota vestia uma regata preta com uma saia branca estampada de cós alto. Na frente, a peça ia até pouco acima do joelho, mas tinha uma imensa cauda que arrastava no chão. Em seus pés havia um par de Louboutin pretos, presente de dois anos de namoro. Em seu pescoço havia um colar com um delicado pingente em forma de coração.

— O seu chefe me disse que você roubou a sala dele, é verdade?

— Sim, é verdade. — O rapaz brincou, e recepcionou a noiva com um delicado beijo.

Themis era bonita, embora não fosse estonteante. Tinha o rosto fino e alongado, e quando sorria tinha charmosas covinhas nas bochechas. Os olhos eram pequenos e escuros, e seu sorriso era lindo. Themis tinha a sobrancelha fina e algumas sardas no rosto. Seu cabelo era comprido, liso e tingido de cobre. Ela usava um delicado brinco vermelho na orelha direita.

— Como vai a matéria sobre o panda que chegou ao Roar Zoo? Você parecia concentrado nela.

— Acabei de mandar pro Mikael, alguns minutos antes de você chegar. Acho que ficou boa.

A garota assentiu com a cabeça e sorriu.

x-x-x-x-x

Cassiel acordou às oito horas e se levantou. Tomou uma chuveirada rápida e foi até o quarto de sua filha. Ela não estava no berço. O rapaz desceu as escadas e a encontrou no colo de uma oriental, no meio da sala. Sua mãe percebeu sua presença e foi logo lhe apresentando:

— Cassiel, essa é a Grace. A minha amiga de quem te falei.

— A da fundação?

— Essa mesma.

O rapaz cumprimentou educadamente a garota, e pôs-se a observá-la com atenção, sem que ela percebesse. Grace tinha uma aparência melancólica, de quem estava pronta para chorar. Parecia ser descendente de coreanos, e tinha um rosto oriental comum. Seus dentes da frente eram um pouco proeminentes e ela tinha os cabelos compridos e escuros. Parecia ser uma garota doce.

Sua mãe a mencionara diversas vezes desde que ele chegara da Síria. Grace Seoung Porter tinha vinte e quatro anos e era bastante rica. Seus pais já haviam morrido, e ela era herdeira de uma pequena fortuna feita no ramo de planejamento e execução de eventos. Sua mãe, Jin-Hee Seoung, fora uma importante socialite e fundara uma instituição filantrópica de apoio a crianças carentes. Quando ela morrera, Grace assumira a responsabilidade de administrar a fundação, que não visava nenhum fim lucrativo. Tina Hendrix, mãe de Cassiel, era voluntária na instituição e amiga de Grace havia quase dois anos.

O pior, porém, vinha por último. Tina estava claramente querendo que ele e Grace se conhecessem e se dessem bem. Julgava (segundo Cassiel erroneamente) que ela era o que o filho precisava para se recuperar de tudo o que sofrera.

— É um prazer finalmente conhecê-lo, Cassiel. Posso te chamar de Cassiel?

— Claro. — Ele consentiu. — Desde que eu possa chamá-la de Grace.

A oriental sorriu.

— Sua mãe tem me falado de você desde a primeira vez que eu conversei com ela. Mesmo sem te conhecer, tenho grande admiração por você. Você é um herói da nossa pátria.

Cassiel ficou meio sem graça. Não se julgava um herói da pátria. Nos dois anos que servira, ficara enclausurado e nada fizera por seu país. Sua intenção tinha sido nobre, era verdade, mas ele pouco conseguira fazer, na prática.

— Obrigado, Grace. Você também é uma heroína, de certa forma. Ajudando as crianças e tudo mais. — Foi só o que ele conseguiu dizer.

Grace ficou genuinamente envergonhada. Foi salva pelo choro de Julia.

— Vem com o papai, linda... — Cassiel disse, estendendo os braços. Grace docemente lhe entregou a garota. Ele então saiu para o quintal, deixando a mãe e a amiga sozinhas na sala.

Tina foi logo falando:

— Eu não te disse que ele é lindo? Modéstia à parte puxou a mim e não ao pai.

Grace gargalhou. Disse polidamente:

— Ele é mesmo um rapaz respeitável.

Tina lembrava vagamente o filho, em suas feições. Tinha a mesma cor de olhos, num rosto redondo e gordinho. Seus cabelos eram platinados, quase brancos, e estavam cortados de maneira reta na altura do pescoço. Tinha a aparência acolhedora e gentil, como a de uma avó amorosa.

Morara sozinha durante a partida do filho e até o nascimento da neta. Ela lhe fizera companhia pelo ano em que Cassiel continuou desaparecido, e há algumas semanas eles estavam em três na casa. Seu outro filho, Paul, morava em outra cidade e a visitava com alguma frequência. Apesar de ser cinco anos mais velho que Cassiel, ele ainda não se casara e nem tinha filhos. Era um autêntico bon vivant, daqueles que colecionam lágrimas e corações quebrados.

— Você me permite fazer uma pergunta um pouco indiscreta, Tina? — Grace perguntou timidamente.

— Pois faça.

— Como ela era?

— Ela quem? — Tina disse, genuinamente confusa.

— A Katie.

— Ah. — A mulher suspirou. — Era uma boa menina. Bonita, inteligente, determinada. Ela teria sido uma boa esposa e uma ótima mãe.

— Entendo...

Naquele momento, Grace sentiu uma pontinha de inveja.

Grace Seoung Porter era solitária. Nunca namorara e ainda era virgem. Tinha beijado apenas um garoto, quando tinha doze anos, e nunca mais repetira a experiência. Sonhava com uma família. Com um marido, com filhos, com uma casa cheia. Ao invés disso, tinha uma mansão vazia e que fazia eco. A instituição e as crianças que ajudava eram a sua única alegria. Sem isso, sua vida era completamente vazia.

A oriental ficou refletindo sobre aquele misterioso e bravo rapaz que sofrera tanto. Por alguns segundos fantasiou, de maneira descabida, uma vida com ele. Poderia aceitar a filha de outra mulher. Julia seria a sua filha. Cassiel era bonito, poderia fazê-la feliz. Não poderia?

Qualquer um poderia, Grace. Você só precisa de alguém, quem quer que seja. Alguém que te tire dessa solidão.

Bem que esse alguém poderia ser Cassiel.

— Bom, o que me diz de um chá com biscoitos, Grace?

A oriental aceitou de bom grado.

x-x-x-x-x

O rock tocava muito alto no quarto de Cody.

Marissa bateu três vezes na porta, esbravejando:

— Abaixa esse som, Cody! Pelo amor de Deus.

O rapaz bufou e fez o que a irmã pedia. Em seguida levantou-se da cama, só de cueca, e abriu a porta. Seguiu até a cozinha e trombou com Erika. A mulher foi logo dizendo:

— Quando o Jamal vir morar aqui, você vai precisar pôr calças.

Cody concordou com um sorriso irônico e abriu a geladeira. Pegou uma lata de Coca e foi se sentar na varanda, onde estava sol e fazia calor. Ficou sentindo a temperatura em sua pele por um tempo, e pensou que seria ótimo se houvesse uma garota ali ao seu lado.

Cody tinha vinte e um anos e quase dois metros de altura. Era magro como uma vareta e tinha diversas tatuagens pelo corpo. Tinha uma rosa verde e de caule comprido que se estendia de seu ombro direito até seu antebraço. No ombro esquerdo havia uma estrela azul, e, ao lado dela, no peito, outra rosa. Essa era vermelha e tinha folhas, mas, ao contrário da outra, não tinha caule. Somado a essas, tinha um pequeno dragão tribal negro que começava ao lado de seu umbigo e terminava na virilha. Por último, tinha um pequeno sabiá colorido nas costelas. Nas costas estava escrito, em letras extremamente miúdas: the greatest.

Seu rosto era assustadoramente angelical. Cody tinha os cabelos loiros e possuía uma pequena barba não cuidada. Tinha uma face pequena e que lembrava um adolescente recém-entrado na puberdade. Seus olhos eram azuis escuros, quase violetas, e ele tinha um piercing no septo.

Cody se parecia com sua irmã.

Marissa foi até o quintal e sentou-se ao lado dele sem dizer nenhuma palavra. Ficou alguns segundos em silêncio e então disse de maneira despretensiosa:

— Não vai trabalhar hoje?

O rapaz deu com os ombros:

— Eu me demiti ontem. Aquele merda do meu chefe acha que pode me fazer de gato e sapato.

Era a verdade. Cody não tinha muito respeito para com autoridades, especialmente quando elas eram tão babacas quanto o senhor Cho. Ele estava trabalhando há três semanas em uma loja de antiguidades, indicado pela irmã, que conhecia o dono. Marissa tinha esperanças de que daquela vez ele fosse ficar no emprego. Mais uma vez errara.

Não disse nada. Não queria magoá-lo. Cody era durão por fora, mas por dentro era extremamente frágil. Mais frágil do que qualquer outra pessoa que ela conhecera. Lembrava-lhe vagamente Cassiel, nesse aspecto. Ambos tinham sofrido duras pancadas da vida.

Cody era filho do segundo marido da mãe de Marissa, de modo que eles eram apenas meios-irmãos. Tinham sido criados juntos a vida toda, porém. Ambos sem pai, já que os dois trastes abandonaram sua mãe e nunca cuidaram dos filhos. Marissa mudou-se de casa assim que atingiu a maioridade, quando o garoto tinha sete anos. Visitava a mãe todos os finais de semana e fez parte de todo o inferno pelo qual a família passou quando Cody se envolveu com a maldita cocaína.

Ele tinha apenas dezessete anos. Foram duros anos. Cody por pouco se formara no high school, mas não tinha entrado no college. Enquanto isso, Marissa prosperou na vida. Encontrou Erika, ambas compraram uma casa e estavam prestes a formar sua própria família.

E então, oito meses antes, a mãe deles morreu. A casa foi hipotecada e da noite para o dia Cody viu-se sem ter onde morar. Marissa nem pensou na possibilidade de deixá-lo na rua. Ofereceu sua casa de bom grado e o rapaz aceitou. Ela fez isso por dois motivos.

O primeiro era o amor. Amava o irmão, apesar de todos os seus defeitos, e queria ajudá-lo em tudo o que pudesse.

O segundo era o medo. Sabia que, como dizia sua mãe, “cabeça vazia era oficina do diabo”. Se deixasse Cody sem supervisão, todo o inferno pelo qual ele passara, voltaria. Marissa sabia que cada dia era uma batalha, e queria estar por perto se sentisse que as coisas voltariam a piorar.

Erika era compreensiva, na medida do possível. Não tinha nada contra Cody, e o aceitara sem reprimendas, mesmo que isso significasse uma enorme perda de privacidade. Ficava incomodada era com a irresponsabilidade dele. O rapaz apenas esporadicamente trabalhava, e em geral passava dias a fio apenas dormindo. Era uma situação insustentável a longo prazo.

— E você tem algum outro emprego em mente?

— Acho que sim. Vou falar com o Skeelz, meu parceiro do estúdio de tatuagem. Acho que descolo um trampo maneiro com ele.

Marissa concordou, resignada. Fez um gesto de passar a mão pelos cabelos do irmão, mas um campo de força invisível a impediu. Sentiu que ele não gostaria daquele gesto e se afastou. Levantou-se e entrou em casa.

x-x-x-x-x

Cassiel comia em silêncio. Julia já havia dormido na cadeirinha, logo quando ele acabou de alimentá-la. Tina estava sentada exatamente na frente do rapaz, comendo também em silêncio.

De repente, um choro baixo. As lágrimas de Cassiel caíram dentro do prato de sopa.

Tina ergueu a cabeça e viu o filho em um choro silencioso. Levantou-se e o abraçou por trás com força.

— Oh, meu filho...

A cena durou uns dois minutos, enquanto as lágrimas se acumulavam e encharcavam a camiseta do rapaz. Doía tanto que ele não conseguia exprimir em palavras. Katie fazia muita falta. E o garotinho? O garotinho que ele sequer chegara a conhecer. Tina lhe contara que ele teria se chamado Tyson, e que Katie escolhera aquele nome porque o achava bonito.

Tyson. Cassiel nunca chegou a tocá-lo ou vê-lo, mas mesmo assim sentia a dor de sua partida todos os dias.

Doía pensar no que poderia ter sido.

Tina segurou o rosto do filho entre as mãos, também com os olhos molhados, e disse em tom maternal:

— Meu amor... Eu sei que dói. Eu sei. Eu também gostaria que tudo tivesse sido diferente. Que você, Katie, Julia e Tyson pudessem estar aqui, todos jantando nessa mesa. Oh, eu faria tudo para mudar isso, meu querido. Eu daria a minha vida pra poder te dar essa felicidade. Mas eu não posso. Ninguém pode. Você precisa apenas confiar em Deus e acreditar que a sua vida vai ser boa. Você e a Julia tem um ao outro, e vocês dois têm a mim. Oh, meu bebê...

E ficaram abraçados por vários minutos, até que Julia acordou e começou a choramingar. Cassiel sorriu tristemente e levantou-se para confortar a filha.

x-x-x-x-x

Nas manchetes, o “Cara de Coelho”, como era conhecido, era a maior estrela do momento. Assassinara cinco pessoas, três homens e duas mulheres, em menos de dois meses.

Seu modus operandi nunca havia sido quebrado. Ele encontrava suas presas através de redes sociais. Descobria diversos fatos sobre elas e então as caçava, sabendo previamente onde poderia encontrá-las. O assassinato era em geral bastante brutal e a vítima era encontrada em algum ponto da cidade completamente desfigurada. Até aí nada garantiria que se tratava de um serial killer, já que os assassinatos poderiam ser obra de pessoas diferentes.

O que o denunciava e tornava os casos relacionados eram as fotos. Todas as cinco vítimas tinham seus perfis de todas as redes sociais invadidos e as fotos de perfil eram trocadas pela foto de uma máscara de coelho, a qual originara o apelido. Ele então postava um sucinto e misterioso recado:

Hacked by Bunny Face.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O próximo capítulo sairá em breve, prometo não demorar. Estou bastante empolgado de voltar a ativa :D