Mary Alice escrita por Lushaws


Capítulo 1
Capítulo único.




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Estávamos no ano de 1974, quando eu a vi pela primeira vez. Mary Alice. Ela era a mulher mais linda que eu já tinha visto.

Seus cabelos castanhos e levemente ondulados caiam até o meio de suas costas, seus olhos eram de um azul tão intenso quanto o próprio céu, sua boca era vermelha e carnuda, seu nariz afilado e arrebitado, seu corpo esbelto e perfeito. Tudo nela era tão atrativo quanto uma droga.

Ela era um ano mais nova que eu, e gostava apenas de andar com suas amigas. Coração bom, alma ajudante. Era tão fácil amá-la.

Eu a observava de longe, imaginando que seus sorrisos eram todos causados por mim. Ela nunca me vira, mas eu não a culpava, pois ela era ocupada demais. Ocupada demais em transformar o mundo. Em transformar o meu mundo.

Pareceu-me um dia qualquer, a rotina igual, mas ela não saíra de casa aquele dia. Eu preocupei-me, meu coração apertou-se, o silêncio fez-se meu fiel companheiro, o mundo já não estava tão transformado assim para mim.

Pela noite, fechei meus olhos e relaxei meus músculos, viajei por muitos quilômetros, sem realmente chegar a lugar nenhum. No dia seguinte, ao acordar, percebi o porquê de minha viagem sem destino: Mary Alice era responsável por meus sonhos.

Mal me levantei, corri até a janela e meu coração aqueceu-se quando pus meus olhos nela. Sentada no único banco da praça, o pranto dos céus molhando-a. Seus ombros pareciam pesar, seus olhos cravados no chão molhado, sorriso ausente. Pensamentos não entraram em minha mente, só peguei meu casaco e sai. Seus olhos fitaram-me quando sentei ao seu lado, mas eu não falei nada.

Passamos alguns minutos calados, até ela levantar-se e entrar em sua casa.

Outro dia iniciou-se, e estava difícil respirar. Meu nariz parecia estar entupido e vieram, então, as consequências dos minutos sob a chuva. Não me importei, tomei meu café da manhã e sai porta afora, com meu casaco.

Mary Alice pareceu-me melhor, e meu mundo transformou-se novamente. O dia tornou-se desconfortável para mim ao entardecer, os ventos vieram frios e pareceram congelar-me os olhos. Todos começaram a entrar, mas Mary Alice sentou-se novamente no banco da praça, um caderno na mão. Mais uma vez, sentei-me ao seu lado.

Ela olhou-me questionadora, e eu senti-me corar. Ela sorriu, e voltou seus olhos para o caderno a sua frente. Caneta na mão, rabiscou. Mais um vento, mais uma palavra, meus olhos dirigiram-se para frente, focando na calçada.

Assustei-me com um barulho, e olhei para o lado a tempo de vê-la amaçando a folha de papel e jogando-a no chão. Surpreendi-me. Mary Alice poluindo o meio ambiente?

Ela fechou o caderno e levantou-se em um rompante, ao mesmo tempo em que espirrei. Seus olhos azuis voltaram-me para mim, ao mesmo tempo em que o som dos sinos celestiais saiu de sua boca em forma de palavras. "Você está bem?", preocupou-se. Eu respondi-lhe que sim, mas que o tempo chuvoso de ontem não havia me feito bem. Mary Alice pareceu-me culpada, então eu sorri-lhe. No dia, acabamos tomando uma xícara de café na casa do anjo.

Mais um dia, depois outro, e mais um. Não sai da cama, pois meu corpo estava quente, perigosamente quente. Minha mãe trazia-me canjas e sucos, mas eu queria poder contar-lhe que o verdadeiro motivo para minha febre não era doença, e sim Mary Alice, que aquiesceu com exagero meu coração.

Quando respirei novamente o ar livre, vi os olhos preocupados de Mary Alice focarem-se em mim, e observei ela caminhar em câmera lenta em minha direção. Palavras e explicações trocadas, tudo bem. Ela convidou-me para uma festa, e eu concordei.

Mais tarde, arrumei-me todo com as roupas de meu pai, com a intensão de parecer mais velho e mais homem. Minha mãe e meu pai trocaram olhares cúmplices e sorrisos maliciosos, enquanto diziam-me para que eu me divertisse. Mal sabiam eles o quão especial era Mary Alice e que eu nunca me arriscaria com ela.

Música alta, bebidas, pessoas, danças, música, bebida, pessoas, dança, dança, pessoas. E, finalmente, ela. Desceu as escadas graciosamente, deixando seu brilho colorido por onde passava. Cumprimentou a todos, e parou em minha frente. Disse meu nome, e sorriu lindamente. Meu coração acelerou quase imediatamente. E ela controlava toda minha mente.

Convidou-me até a pista. Dançamos juntos, arrastando-nos ao ritmo da música. Mary Alice parecia mais magra, pálida, e estava quente, muito quente. Eu esperava que a febre dela também fosse causada por mim.

No dia seguinte, sentei-me no chão da praça com ela e seus amigos. Conversamos, animamos, e no fim da tarde todos entraram, deixando apenas eu e Mary Alice. Passei a mão por seu rosto, planejando unir nossos lábios, mas percebi sua temperatura elevada. "Está tudo bem?", ela me disse que sim, mas seus olhos desmentiam-na. Abracei-a e olhamos juntos as estrelas. Ela levantou-se alegando cansado, e despedimo-nos sob a luz da lua.

O sol brilhou, e levantei-me, arrumando-me cantante e saindo porta afora a procura de minha amada. Mas ela não saiu de casa hoje, em nenhum horário. Perguntei para seus amigos, mas não obtive respostas, seus vizinhos afirmaram que você saíra com seus pais, antes que eu acordasse. Passei o dia sentado sobre o banco de praça, até avistá-la pela janela do carro que seu pai possuía. Pareceu-me abatida, e ao sair do veículo, correu para meus braços.

Eu queria fazer-lhe mil perguntas, mas minha voz não saia. Apenas abracei-lhe fortemente, sentando-a em meu colo. Senti seu pranto na pele de meu pescoço, mas nada pude fazer, se não confortá-la. Seus pais olharam-nos com seus olhos chorosos, e eu sentia-me cada vez mais confuso e desesperado. Mais tarde, em seu sofá, ela deu-me a notícia: Tinha leucemia linfoide aguda, o que lhe causara fadiga excessiva, sudorese noturna, emagrecimento e febre vespertina, que sempre lhe tocava no final da tarde e início da noite, como eu já havia percebido.

Naquela noite, levei-a até a cama, e nós nos unimos o máximo possível. Corpo a corpo, pele com pele. Ela sussurrou meu nome em meu ouvido, e gemeu. Vai-e-vem, prazer, amor. Dormimos juntos, e eu enxuguei seu suor a noite toda.

A partir daí, o mundo foi transformado de novo. Posso lembrar-me com perfeição da primeira quimioterapia. Foi horrível. Eu chorei, Mary Alice chorou, seus pais choraram. Meu coração doía ao vê-la daquele jeito. Depois, segurei seus cabelos enquanto ela vomitava tudo que podia.

A maior crise que tivemos em nosso namoro foi quando seus lindos cabelos começaram a cair. Seus pais me pediram ajuda, para convencê-la a raspar, para poupá-la de mais sofrimento futuro. Ela chorou, disse-me que não me merecia, que eu deveria largá-la e ir viver minha vida com uma pessoa que tivesse cabelos e saúde. Eu esperei que ela falasse tudo, para então responder-lhe: Não me importo se você tem ou não cabelos, Mary Alice. Você me faz feliz todos os dias, só por respirar. Você é linda, e eu não consegui tirar meus olhos de você desde o momento em que te vi. Adoraria que tivesse saúde, mas passaria por tudo novamente apenas para tê-la em meus braços. Eu amo você. Ela chorou e agradeceu-me por estar ali. Então, o silêncio deitou-se ao nosso lado na cama, e dormimos. Naquela noite, eu sonhei. Sonhei porque Mary Alice estava ali comigo.

Depois de algumas semanas, ela piorou e teve de ser internada. E então as coisas realmente pioraram.

Ela já não passava mais de um mês em casa, e seus pais resolveram interná-la de uma vez. Ela chorava, agora silenciosamente, conformada. Nós passamos a ler e assistir filmes juntos, e sempre que ela passava por algum tratamento, eu recitava algo de seu poeta favorito.

Seus amigos também a visitavam, pelo menos uma vez por semana, e sempre era a maior festa. Ela sorria, e mudava meu mundo ainda mais.

Foi em mais uma manhã ensolarada que eu cheguei em seu quarto e não vi seus olhos azuis sorrirem para mim.

Meu coração estava dilacerado, e minha vida estava tão acabada quanto à dela. No velório, seus pais vieram até mim e entregaram-me aquele seu caderno. Eu segurei-o em meu peito, sentindo o cheiro que tinha dele, e continuei ali. Quando seu corpo foi enterrado, dirigi o mais rápido que conseguia até a praia, onde ela dizia ser seu lugar favorito.

Sentei-me na areia e abri seu caderno no meio. A folha estava vazia, completamente vazia. Fui passando as folhas até o final, e finalmente achei uma preenchida com a letra dela.

"Não sei mais quanto tempo vou poder aguentar. Está tudo muito difícil, e eu sinto dores e incômodos por quase todas as partes do meu corpo.

Não sei se alguém vai ler isso, mas, se lerem, tenho a certeza de que será você. Você, querido, que me ensinou tantas coisas que nem posso contar, que me fez sentir a mulher mais amada do mundo.

Ele mudou todo o meu mundo, e eu o amarei por todo o sempre - o nosso sempre.".

Passei meus dedos pela folha, e ao passar pela última frase, notei a tinta mais forte, como se tivesse sido escrito recentemente.

E só então pude entender, Mary Alice continuaria mudando meu mundo, sempre para melhor, assim como eu também mudara o dela.

Naquela noite, eu sonhei. E também entendi o motivo pelo qual eu sonho. Eu não sonho apenas por ela estar presente, eu sonho porque eu a amo.

E eu continuei sonhando por todas as noites da minha longa vida.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por lerem, adoraria que deixassem reviews dando suas opiniões.



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