Diário de Dramas escrita por CK Bellini


Capítulo 2
Torpores


Notas iniciais do capítulo

Qualquer semelhança entre autor-personagem é mera coincidência.



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Tenho um problema com gente que é muito talentosa. Tudo bem, você pode até entender isto como inveja, mas veja bem: Para alguém cuja vida é baseada em levanta-deita-dorme, um talento seria essencial para o destaque. Pois é, a diferença entre mim é o destaque é a falta de talento.

O despertador soou em uma interminável batida de tons polifônicos, que reverberaram profundamente dentro do meu crânio. A mão esquerda tateando o aparelho amaldiçoado alcançou o smartphone e fechou os dedos, desistindo da busca.

A mão caiu estatelada e completamente adormecida sobre o corpo, carregando o defunto eletrônico que silenciara após os pios agônicos de despertador. Eu embarcara em uma viagem pelo mundo dos desejos proibidos e ditados pela libido. Estava em êxtase enquanto me derramava de prazeres sobre um ser de tamanha perfeição e beleza.


Uma casa salta para o lado e uma descarga luminosa eletrocuta meus olhos. Vendo estrelas, solto um pio de desconforto. É com assobios que imagino uma série de coisas. Aperto pompons de toucas desconhecidas, com um nível de destreza ninja. Quando o alvo percebe, desapareço em uma nuvem de perfume.



Não existe nada melhor do que perfume em uma pessoa. Pelo menos é o que eu penso. Fedor é como um aviso de “Ei! Saia de perto!” ou até mesmo um aviso persistente de algo desagradável, como alguém realmente chato te cutucando.


A terça-feira guarda segredos muito mais desagradáveis do que o céu parcialmente tempestuoso, herança do clima do dia anterior. O cinza é pesado e frio como chumbo, embora a temperatura em nada se compare com a depressão grudenta do dia anterior. Não chove, porém uma garoa fina cola nas janelas e vidraças e embaça, fazendo com que o exterior pareça opaco ou tomado por uma densa névoa. Terça-feira é dia de Espanhol, de gaita de fole e de orelhas de gatinho.

Qual a razão de eu citar esses objetos? Em algum lugar do mundo alguém estará tocando gaita de fole e/ou usando orelhas de gatinho. Ou até mesmo os dois. Só Deus sabe o que escoceses e japoneses são capazes de fazer. Com relação ao Espanhol, sim. Hoje é dia de Espanhol. Na minha humilde opinião, saber Português já lhe dá destaque sobre o Espanhol, língua desnecessária na minha futura vida, se é que esta seguirá o curso no qual eu planejo.

Olhei no espelho hoje de manhã. Eu vi o futuro. Não era um futuro, exatamente. Era a face de alguém que já vira muito. Observei as linhas de expressão, cada faísca refletida nas lágrimas que molhavam o globo ocular. Cada uma delas encontrara um destino. Não que eu seja de chorar, aliás, exatamente. Cada lágrima que eu não permiti rolar ficou armazenada, como que depósito de coisas passadas e até futuras. Pense no tempo como uma esfera, na qual se pode ir e vir. Cada vislumbre de lembrança é um giro no globo de ferro.

Após a ligeira alucinação, o ônibus deu uma virada tremenda, mas consegui me segurar em tempo.

“You build up a world of magic because your real life is tragic”

Ok, não exatamente trágica. O que é preciso para, atualmente, eu me considerar feliz?

— O ônibus seguira o itinerário, e eu parara sozinho no meio da calçada, observando algumas pombas voarem para cima dos fios, pensando em nada. —

Obviamente questões materiais sempre vêm em mente, como por exemplo, o dinheiro. Quem não seria mais feliz se tivesse mais dinheiro? Algumas pessoas diriam que comprariam a felicidade, ou que era melhor chorar em uma limusine do que no coletivo da tarde. Concordo com todas as coisas, mas quem diz isso não se sente exatamente infeliz. Aliás, qual o significado de ser infeliz?

Entenda o conceito de ser feliz.

Ser feliz é se sentir bem? Pois bem, não me sinto mal todos os dias, mas não é possível me definir como feliz apenas por estar com as duas narinas desentupidas ou ter todos os membros saudáveis e locomotores.

Não, sentir-se mal no sentido emocional. Emoções não são situações criadas pelo cérebro para maquiar algo ou alguma situação? Então a infelicidade é apenas um descontentamento maquiado. Dizia Camões que o amor é contentamento descontente. Eu digo que é piada.

Rindo internamente, continuei a curta caminhada até o colégio. Minha respiração se condensava em nuvens brancas que eram varridas para trás com meus passos. Exatamente entre o terceiro poste e a esquina da rua, uma escola infantil estaciona-se feliz e fria, como um monólito verde. O portão está aberto e vejo crianças correndo em direção ao portal. Os pais riem, alguns tios da perua dão tchau. Eu me vejo sentado em um degrau, abrindo a lancheira do Cebolinha e encontrando uma nota de cinco reais, com um bilhete. Não sabia ler, logo pedi para minha professora do primário ler para mim. Esta, achando se tratar de um bilhete para ela, leu sobre a sala, com cara risonha.

“Desculpe, mas não temos tempo para fazer o seu lanche. Use o dinheiro e compre alguma coisa para comer. — Mamãe.”

A expressão da professora foi embrandecendo, tornando-se triste. Eu observava meus sapatos, mudo como um bonequinho de cera. A professora desceu do pódio de tapete voador, o qual voava sobre a sala e distribuía informações, e ficou ao meu nível.

— Eles não têm tempo? — Perguntou ela, carinhosamente.

Fiz que não com a cabeça, ainda sem levantar.

A professora me abraçou e me mandou sentar.

Um dos meus colegas olhou pra minha lancheira.

— Por que é que você tem isso, então? Minha mãe sempre faz lanche para mim.

Sei que ele não quis ser maldoso, até porque nem ele entendia o que acontecia, mas o comentário fora deveras desnecessário. Feriu-me e cicatrizou, embora ainda sangre com frequência.

Acordei do transe em frente ao armário. Não sei por quê tenho aquilo (muito menos por que pago), mas sinto como se fosse um porto seguro. Isto é, até desenharem nele um pênis de caneta hidrográfica preta. Hoje nem perto passo mais. Voltei-me em direção às escadas, desejando um acelerador temporal.

Encontrei-a, de relance. Como um cortinado de veludo, agora negro. Observei-a andar levemente saltitante, como se andasse em nuvens. Então, em um apagão, Karina entrou exatamente em frente a mim.

— Yollo — fez ela, imitando um rapper norte-americano de tal forma cômica que ri alto.

Ela sorriu de volta.

— Bem vindo ao mundo terrestre. De que forma posso te servir?

— Nem te conto.

Rimos os dois, mas então me lembrei do cortinado de veludo negro e olhei por cima do ombro de Karina. Sumira.

— Bosta...

— O que? — Perguntou ela, seguindo meu olhar até o ponto onde eu a vira.

— Nada... Ah, depois eu te conto.

Seguimos para a sala através do longo corredor azul. Em cada porta aberta, eu a buscava. Qual a possibilidade de isso acontecer? Alguém que talvez saísse comigo, alguém que eu, talvez, jamais fosse ver novamente, estudar aqui? Sacudindo o clichê gritante para longe, foquei em ir em frente. Passara da porta. Karina ria, olhando-me ir em direção ao fim do corredor.

A capacidade de me desligar quase completamente da realidade atual e me perder em pensamentos e devaneios é incrível. O tempo passa de forma arrebatadora, como um furacão ou coisa parecida. E num piscar de olhos, o intervalo soara e as aulas de biologia e literatura passaram direto quando eu não estava olhando. É como se minha mente tivesse desligado.

Karina sentava-se muito perto, uma cadeira à frente. Tinha corpo de violão e cabelos muito cacheados. Laís sentava-se ao meu lado e seu namorado depressivo, Thomas, bem em frente. Thomas era do tipo que via todos rindo e se fechava em um estado de tristeza espiritual tão profundo que até o mínimo “oi” poderia arrancar-lhe lágrimas. Eu, particularmente, não entendo o motivo de tanta depressão. Talvez pelo fato de Laís ser um tanto quanto... Indelicada, se a palavra a mim for permitida. Logo atrás de Laís, Regina sentava-se com a comissão de frente tão avantajada quanto seu coração. Se algum dia eu encontrar moça/garota/mulher tão meiga quanto Regina, darei um abraço.

Natália sentava-se atrás de Regina e, mais atrás ainda, sentava-se Malu.

Estas eram as pessoas de quem eu mais gostava no mundo (a exceção, talvez, de Thomas. Não sou muito fã de tristeza, visto que a minha própria vida é triste. Ok chega de drama.). Não incluí ainda a outra parte da sala, gente das quais têm um cubículo reservado no arquivo do meu coração. Em frente e mais alto, Sérgio observava a lousa com uma convicção tão forte de que ela era útil que eu me senti tentado a dormir. Atrás, Marina olhava para o teto, com a boca aberta e dentes recém-tirados do aparelho. Marina e Sérgio eram namorados, mas do tipo nojento. Sempre digo que é o casal mais homossexual, porém hétero, que conheço na vida. Ainda mais ao fundo, Bárbara mexia em seu estojo de lata de Nescau, com os óculos ligeiramente quadrados na ponta do nariz. Bárbara recentemente dublara o barulho dos trilhos no metrô de tal forma que lágrimas de riso saltaram dos meus olhos. Ao lado de Bárbara, sentava-se uma das mais belas criaturas já feitas por Deus neste mundo. Alice. Não era a beleza o ponto mais incrível em Alice, mas a forma como esta era impressionante por si só. Dizem que o caráter define uma pessoa, eu digo que o caráter embeleza.

Karina caíra da cadeira com estrondo no fim da aula de Espanhol. Ria-se como uma criança, embora ligeiramente envergonhada. Acordei de um sono meditativo ótimo, porém ocioso. Ria sonolento com a falta da amiga, mas ainda assim ria.

Ela estava bem aqui, pensei comigo, mas desaparecera. Por quê?

A sineta soou e eu parti de mais um dia produtivo, porém ao contrário, para casa. Rumo ao desconhecido.

Ainda via os olhos dela. Escutava You’ve got her in your pocket de novo.


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