Na Linha Da Vida escrita por Humphrey


Capítulo 1
Bons Estudos, Martin


Notas iniciais do capítulo

Eu tô de volta!
Digo já que fantasmas não são legais, então manifestem-se através de reviews, meus queridos. Amo vocês.
Boa leitura!



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Brandon

 

Nunca fui o tipo de adolescente que se preocupava com as notas, reputação, paixonites e até mesmo amigos. Inclusive, não era a pessoa com a qual alguém gostaria de tomar sorvete em uma praça para bater um papo, ou algo assim; eu não suportava nem sair de casa. Contudo, conheci um dos piores lados do mundo, que me fez ver o que realmente importava. Um lado chamado Anne Mitchell, bonito, desenvolvido e disputado por todos, onde somente eu não suportava viver.

Mas talvez eu não o tolerasse por não ter experimentado habitá-lo. E depois que o fiz, não quis mais viajar a lugar algum.

Isso tudo teve início naquela manhã de segunda-feira.

O despertador tocou. Inferno. Passei a mão nos meus cabelos e pelo rosto, indignado por ser um estudante, enquanto me sentava na cama. Eu olhei de relance para a janela e, para piorar tudo, o céu estava cerrado e ameaçava chover. Gastei alguns minutos reclamando mentalmente que deveria ser lei não sair de casa quando o tempo estivesse nublado. E por conta do sono ainda ativo, me levantei com dificuldade, embora apenas fizesse isto; os olhos continuavam fechados.

Tratei de me arrastar ao banheiro, do lado direito do corredor, e escovar os dentes. No espelho, minha cara pálida e inchada revelava, além de uma má alimentação, um péssimo sono. Meus olhos castanhos mal podiam ser vistos, afinal as pálpebras insistiam em se fechar. Por isso, lavei o rosto e, assim que os afazeres ali foram concluídos, voltei ao quarto, aquele cômodo bagunçado e pequeno que eu tanto adorava. Mal consegui me vestir sozinho. Droga de jogo online. Sabia que receberia sermão assim que descesse. 

— Brandon, você não vem tomar café com a gente? – sentada à mesa, me perguntou minha irmã mais nova, Daisy, de sete anos, enquanto eu descia as escadas.

Olhei para a minha mãe. Seus olhos estavam vidrados na xícara de café à sua frente, e ela, pensativa ou apenas indiferente. Felizmente estava quieta, e não reclamando sobre o fato de eu ter dormido às quatro e meia.

— Não, pirralha. Obrigado.

Daisy deu de ombros. Era tão pequena que a cadeira quase a engolia; uma miniatura da minha mãe, com seus olhos verdes e cabelos escuros. Eu só tinha herdado a cor dos fios. De repente, próximo a ela, a puxei da cadeira e a peguei no colo. A menina riu e me envolveu em um abraço, seguido de um beijo no rosto.

— Bons estudos, Martin – afirmou minha mãe, saindo daquele estado robótico. O que foi bom, uma vez que já estava me dando certo medo.

Eu apenas assenti em resposta, forçando um sorriso medonho e voltando a deixar a menor no chão. Minha mãe era a única que me chamava pelo primeiro nome, pois eu o detestava. Ninguém mais sabia dele, senão os coordenadores da escola e os professores.

Após sair porta afora, caminhei por pelo menos vinte minutos. As ruas do meu bairro eram calmas e estreitas, repletas de árvores, e suas casas, simples, a maioria de dois andares. Formavam um cenário bonito, senão pelo lixo que havia no chão. Percebendo estes detalhes, soltei o ar dos pulmões quando cheguei à escola.

Como todos os dias, lá estava o grupo de garotos alienados que cercavam Anne Mitchell, presidente do conselho estudantil e filha do diretor. Um fato era que nós nunca trocávamos uma palavra sequer educadamente. Eram sempre xingamentos ou frases irônicas. Eu não sabia nada da vida dela, mas o suficiente para não a aturar: Era mimada e, definitivamente, clichê demais. Anne almejava a atenção dos outros o tempo inteiro e gostava de mostrar, com aquele jeito tosco, a sua grande habilidade com palavras, números e... simplesmente todo o resto. Apesar da personalidade carismática, ela não conseguia me convencer, até porque nunca foi gentil comigo e, por mais este motivo, era óbvio que eu não a suportaria.

E ela também não me suportava, o que tornava a coisa mais divertida.

Desviei daquela tribo e me direcionei ao meu armário, a fim de pegar os cadernos e algumas canetas. Foi quando vi David, desengonçado, esguio e meu melhor amigo, vindo em direção a mim, com uma certa felicidade estampada no rosto. Eu tinha inveja de como ele conseguia ficar assim em plena segunda-feira. A não ser que tivesse comprado algum jogo, ou arranjado a webnamorada da semana.

Ele me cumprimentou com um aceno de cabeça, antes de abrir o armário. Ou ao menos tentar.

— Essa merda... não quer abrir — reclamou, forçando o cadeado outra vez. — De novo. É todo dia essa... coisa.

Revirei os olhos. Aquilo realmente vinha acontecendo com frequência, mas, com uma batida, consegui fazer com que a porta abrisse. Ela estava mais enferrujada do que a minha única bicicleta, mais uma incompetência da nossa querida presidente, que nem para exigir bons armários prestava. Afora fosse uma das melhores escolas públicas de Montpelier, eles estavam detonados.

David Morgan era meu melhor amigo há três anos, desde que eu fora transferido para aquele colégio. Tinha sido o único que se sentara ao meu lado no refeitório, mesmo que simplesmente para perguntar se eu assinaria uma petição para a reforma do piso escorregadio da quadra. E ainda que fosse um cara um tanto esquisito e atrapalhado, conseguimos formar uma amizade legal.

O sinal soou e uma multidão foi se atropelando pelos corredores apertados. Quem ousasse parar entre ela poderia ser gravemente ferido, é sério. Ao conseguirmos entrar na sala de biologia, David e eu pegamos os lugares próximos às janelas, distantes, onde eu podia ter uma visão panorâmica dos outros cochichando sobre mim e me olhando com desprezo.

Havia uma cadeia de fatores que faziam todo mundo me evitar. Além de ter discutido diversas vezes com a Anne por conta do meu suposto mau comportamento escolar — que, palavras suas, deveria ser denunciado por ela —, eu já arranjara brigas, não participava de eventos nem projetos acadêmicos e tinha uma personalidade antissocial. Não que isso me afetasse. Eu logo sairia dali, de qualquer forma.

Enquanto desenhava algum tipo de inseto alienígena em um papel entregue pela professora, fui grosseiramente interrompido:

— Cooper, gostaria de responder à minha pergunta? – com ironia, perguntou a professora. Eu poderia jogar duas agulhas em seus olhos e as mesmas cairiam no chão ao impactarem-se com as pupilas dilatadas que me miravam com tanta força.

Ergui minha cabeça para olhá-la, pousando a caneta sobre a mesa. Já sabia bem o que ia acontecer.

— Bonito desenho, mas não estamos mais estudando os artrópodes – ela afirmou cinicamente, antes de se aproximar, tomar a minha suposta lista de exercícios e amassá-la.

Que saco, eu tinha gostado dele.

— E essa é a pergunta, por acaso? — rebati e arqueei as sobrancelhas, devolvendo do mesmo modo.

— O que adianta eu fazê-la, se eu tenho consciência de que você não vai saber responder? Sinceramente, não entendo por que está em uma turma avançada. — Passou o peso para a outra perna enquanto cruzava os braços, o giz preso entre dois dedos. Aquela implicância já estava me irritando.

Como parte da matrícula, eu tive que fazer uma prova de nivelamento, para poder me encaixar em alguma classe que consonasse com o meu nível intelectual. Minha nota fora o suficiente para que eu entrasse na dos CDFs, para a surpresa da minha mãe. No dia que soube, ela enlouqueceu de tanta felicidade, ainda que fosse algo tão trivial.

— Então por que veio aqui encher a porra do meu saco? – de repente, indaguei, e alguns murmúrios passaram a cobrir aquele clima tenso. Não a deixaria nem tentar me inferiorizar.

— Quem você pensa que é, para ter essa atitude? E cuide do linguajar! — Assim que se sentiu ofendida, a professora ajeitou a postura. — Não sou obrigada a aturar alunos que, além de desinteressados, me desrespeitam!

— Você é, a partir do momento em que é paga com nossos impostos. — sussurrei e, na tentativa de relaxar, apenas deitei a cabeça sobre os braços. Eu só queria conseguir dormir.

No entanto, a figura baixa e rechonchuda a poucos metros de mim pareceu ter ouvido, e os passos rígidos daqueles saltos contra o piso revelaram incômodo e raiva. Não gostei de ter discutido, mas também, não tinha sido o culpado de ter gerado a discussão. Ela poderia simplesmente ter me deixado em paz.

— Anne, querida, acompanhe o sr. Cooper até a diretoria, por favor.

Meus olhos se arregalaram e, se foi para me fazer prestar atenção nela, conseguiu.

— O quê? Eu tô quieto! — tentei intervir, porém Anne já estava se levantando da cadeira, aquela expressão de aversão começando a surgir em seu rosto.

— Tenha certeza de que ele não vai errar o caminho — completou a infeliz, me ignorando totalmente.

Como não planejado, mais que ir à diretoria por algo ridículo, Anne me levaria até lá. E eu só queria ficar sossegado, pelo menos na primeira aula, mas nem isso eu podia ter. Cedente, me levantei da cadeira, passei pelos olhares debochados e fui até a porta, sabendo que a garota vinha logo atrás. A parte boa é que mataria a aula, mesmo que fosse tomando as broncas sistemáticas que eu já até sabia de cor.

Começamos o trajeto em silêncio. A sala do diretor ficava um tanto distante da nossa, o que me oferecia mais tempo para pensar no quanto eu queria sair dali. Sentia saudades da outra escola, dos meus antigos amigos, da vida boa que eu levava.

— Por que inventou de discutir com ela? – Anne perguntou subitamente, o que me fez olhá-la por alguns segundos, estranhando a situação.

— Foi ela quem discutiu comigo, é diferente — argumentei, antes de um suspiro e dos olhos revirados. Ser repreendido por Anne Mitchell era só o que faltava para aquela manhã ficar ainda mais absurda.

— Poderia ter ignorado, aí não estaríamos aqui.

— Tá, vou anotar — tratei com desdém e balancei a cabeça.

Em resposta, eu a ouvi praguejar, quase que em um sussurro, e a mesma deslizou as mãos para os bolsos traseiros dos jeans. Parecia impaciente, mas, de certa forma, concentrada em alguma coisa. Nunca tinha visto aqueles olhos azuis — ou verdes? — tão apreensivos.

— Deve ter seus motivos para ser assim, aqui — Anne deduziu. Eu não consegui acreditar que ela estava tentando começar um assunto.

— Assim como? — porém, eu questionei sua afirmação. Queria saber o que ela achava de mim com suas próprias palavras, pois, até então, apenas tinha algumas suposições.

— Rude, introvertido, solitário, vulnerável...

— Solitário e vulnerável? — Eu dei uma risada irônica.

— É. — A morena me fitou, o cenho franzido. Meu Deus, aquilo era sério. — Se irrita facilmente, não tem muito controle sobre os próprios sentimentos, não sabe fazer amizades; solitário e vulnerável.

— Que base você usou para essa sua conclusão? — a retruquei, de repente, enrijecendo os ombros. — Só me vê na escola, mal fala comigo e acha que me conhece. 

— Sim, Brandon, é o que eu estou querendo dizer. Você cria uma redoma à sua volta para evitar qualquer aproximação e...

— Onde quer chegar, afinal? — acabei a interrompendo, inquieto. Minhas sobrancelhas se juntaram, e seu olhar compenetrado parou no meu outra vez. — Eu não estou nada a fim de uma aula de psicologia. Continua no seu mundo colorido, que eu fico no meu, okay? Ficar ouvindo essa sua voz desagradável me deixa ainda pior. Me deixa quieto.

Anne rosnou e, em seguida, respirou fundo, batendo as palmas das mãos nas coxas. Eu não sabia mesmo qual era seu objetivo naquela conversa, contudo nem queria, também. Depois de tanto tempo me odiando, não seria normal que quisesse se informar mais sobre mim ou até se aproximar. 

No momento em que finalmente paramos à frente da porta da diretoria, ela virou-se para mim, estressada. Sua expressão enfurecida era facilmente legível, e eu tinha plena certeza de que ela enterraria uma faca em mim, se pudesse. Só retribuí ao seu semblante, no fim, me recostando ao batente.

— Pelo menos eu tentei. Mas é, não dá, você é mesmo um babaca. — E deu algumas batidas na porta por mim. — Divirta-se com a sua milésima advertência.


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Notas finais do capítulo

Podem expor suas opiniões, eu adoro ler e responder.
Espero que tenham gostado! ♥