Egocentrismo escrita por Aluada


Capítulo 1
No metrô.


Notas iniciais do capítulo

Baseado numa fala do filme "Collateral" e em coisas que acontecem pelo mundo.



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            Ponho o ticket no lugar indicado e o sinal pisca verde, permitindo a minha entrada. A catraca range. Seguro minha bolsa com mais firmeza ao passar para o outro lado, arregalo os olhos, procuro ficar mais atenta aos sons a minha volta, ando mais alguns passos, quase sou atropelada pela multidão que sobe-desce as escadas, xingo baixinho, inferno de metrô, inferno de vida.

             Foram poucos segundos para que o meu trem chegasse, abrisse as portas e me levasse junto com ele.

            R., estudante de cursinho, 19 anos, filha, irmã caçula, namorada e amante de Coca-Cola. Todos os dias meus despertador apita desgraçadamente às seis horas no meu ouvido para me lembrar de viver. Todos os dias eu acordo mais cedo para me maquiar e, depois de olhar meu reflexo gordo no espelho, espalho todas as minhas apostilas no carro da minha mãe. Vou para a aula, todos os dias. Mas essa semana tem sido diferente –  horrivelmente diferente, terrivelmente diferente, catastroficamente diferente, inferno de vida.

            Eu lembro disso enquanto procuro em vão um lugar vago dentro do vagão. Acabo tendo que ficar em pé, fazendo acrobacias para segurar todas as apostilas de ciências exatas.

            Papai sempre alertou mamãe para dirigir mais devagar. Agora não adianta mais. Ela bateu o carro, ficou com os prejuízos; o amassou em todos os ângulos possíveis, quebrou as lanternas, destruiu o pára-choque, destruiu minha vida. Perdi minhas caronas matutinas, minhas saídas de fim de semana. Estou à mercê de uma família de único carro, de um namorado sem dinheiro para a gasolina, de uma vida sem carteira de motorista. E tenho que pegar o metrô para ir ao cursinho, inferno de vida.

            A voz anuncia a terceira estação a parar. Giro o pescoço a procura de um assento. Tem que ser antes de chegar à Sé, por favor...

            Eu gostaria de ser aquele senhor, largado em seu assento preferencial cinza, a cabeça baixa, no sétimo sonho. Mas, não, tenho que fazer revezamento de braços entre o material e os tubos de apoio, públicos e – tem um cara que não tira o olho de mim, ele é estranho e me dá medo. Viro a cabeça e tento ir mais para o meio do vagão, onde o ar é tremendamente pesado, ruim, uma mistura de cheiros que prefiro não desvendar. Seguro a respiração, seguro o material, seguro a vontade de gritar que está atravessada na minha garganta, inferno de vida.

            Sinto algo no bolso vibrar. E se for ele? E se for meu namorado? E se for? Pare o metrô porque tenho que atender o celular!

            Dois dedos, só dois, é tudo o que preciso. Eu tento largar o material e apóia-lo na cintura, mas as coisas escorregam, eu as seguro com a outra mão, o trem pára, eu tombo, eu caio em cima das pessoas. Sinto os olhares fulminantes atravessando a minha nuca. Ouço os palavrões murmurados. E será que ninguém pode cuidar da própria vida? Ninguém ouviu celular tocando, todos julgam o que bem entendem. Mundo violento, estressado, mal-amado, mal-humorado – ah, eu realmente gostaria de consertá-lo, mas tenho que atender o celular... consigo me mexer e me apoiar numa parede – será que ninguém pode segurar minhas coisas um instante? – pego o celular e descubro que era só uma mensagem... inferno de vida.

            Preciso falar com vc ;-(

            Ai. O que foi que eu fiz? O que foi que aconteceu? Será que ele está bem? Será que fiz algo de errado? Será que ele fez algo de errado..? Guardo o celular de volta no bolso e continuo apoiada na parede do vagão, porcamente equilibrada mas ainda em pé. Eu vejo o mesmo cara estranho me encarando, eu vejo o mesmo velhinho dormindo de cabeça baixa, mas não enxergo. Acho que fico sem piscar por um bom tempo. E minha boca deve ainda estar aberta. Tanto faz. Ele me escreveu uma mensagem não-auto-explicativa e só vou poder entendê-la depois do meio-dia. Odeio quando ele faz isso, odeio ficar sem saber, odeio essas pessoas que não param de me olhar, odeio essa vida, inferno de vida!

            Então o metrô chega na estação da Sé, e eu nem preciso me mexer para sair do vagão. Sou tragada pelo vai-e-vem e sumo para outro trem não tão longe dali...

   

           

 

            São nove horas da noite quando volto para o mesmo trem onde meu inferno começou.

            A esta hora, o vagão está muito, muito mais vazio. Os poucos lugares ocupados são por pessoas lendo, dormindo ou olhando para o nada. Olhando para mim? Talvez, porque eu sou o nada, eu não sou ninguém. Minha carcaça de corpo está vazia, ou possivelmente cheia daquele ar de metrô lotado. Não sei. Não penso. Não sou. De alguma forma minhas pernas me trouxeram até aqui, e ainda elas me fazem sentar num assento cinza próximo a uma janela.

            Não sou mais capaz de me queixar da vida, porque ela me escapa.

            Na saída do cursinho, encostado no portão da escola, estava ele, me esperando. Não me abraçou. Me beijou no rosto. Evitou meu olhar. Não respondeu às minhas perguntas. Me levou para outro lugar, seu apartamento, uma kit-net. Ah, que horrível... ele me falou dúzias de coisas, gritou outras centenas. Algo que parecia ser “criança” e “paciência”, algo como presença de uma ou ausência da outra. Eu chorei. Minhas lágrimas não o comoveram. Ele não preparou o jantar. Disse que precisava escrever relatórios, que eu o atrapalhava. Tentei me fazer de forte. Ainda assim, não pude comovê-lo. Saí.

            Se o senhor ao meu lado ronca ou não, não ouço. Se o trem se move, pouco me importa. Eu... eu... eu não...

            Droga, agora não posso mais segurar as lágrimas. Eu acho que vou abrir a boca para respirar melhor e explode um soluço agudo, e depois disso não me calo. Tudo aquilo que senti e repreendi, toda aquela sensação de perda e miséria, tudo, tudo, tudo agora se materializa nas minhas lágrimas salgadas. Amargas. Porque este é o gosto da solidão. Amarga. Como uma fruta estragada, como tudo que é ruim. E ninguém aqui é capaz de entender o que digo, o que choro, porque as frutas de todos eles ainda são doces e maduras.

            Enquanto o vagão chacoalha, eu finjo existir. Ninguém me olha, ninguém me nota.      

            Todos eles, centrados em seus próprios mundos cor-de-rosa – ou que sejam eles negros, azuis, púrpuras – todos estão preocupados demais para me oferecer um lenço de papel. Afinal, são muitas contas a pagar, certo? Errado. É fácil xingar a garota desajeitada que não consegue segurar seus livros num metrô em movimento, é fácil tentar se distrair com uma estudante de uniforme. A menina triste é sem-graça, ela atrapalha, ela ocupa espaço. Ela não precisa de um abraço. Podem todos continuar nessa dança egoísta e egocêntrica da vida.

            Aposto que se eu morresse, aqui e agora, ninguém perceberia.

            E então a voz mecânica anuncia a próxima estação, o mocinho de fones de ouvido e chapéu a minha frente se levanta e eu devo realmente ser invisível, porque ele quase me derruba – inútil – e tromba com o senhor dormindo ao meu lado. Eu viro travesseiro; ele apóia a cabeça no meu ombro, ferrado no sono. Ó-ti-mo.

            Eu o cutuco uma, duas, cinco vezes.

— Moço? Moço..?

Com um movimento do ombro, o afasto de mim – sem direção, ele vai virando até finalmente cair no chão com um barulho. Estava duro, frio, seus olhos arregalados. Morto. Há horas.

Sem que ninguém percebesse.              


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