Lágrimas De Fogo escrita por Marrie


Capítulo 1
Capítulo 1




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Dia I


“Intocável imensidão de segredos acumulados dentro da veracidade de um olhar... Sobre a pele tão fina, inúmeras cicatrizes invisíveis percorrem teus contornos, teus traços, teus laços. Sobre pés firmes que não tocam o chão, recolhe e aquieta teus medos em sua própria rotina, tornando-os incapazes de alterar uma aura construída com a finalidade de sustentá-la. Teus cabelos negros, gélidos, caem por teus ombros como lágrimas que não mais escorrem devido ao passar dos anos, talvez ao passar de décadas. Inquietáveis gritos inaudíveis se entrelaçam por teus fios, que tendem a cobrir sua boca como um gesto de silêncio, esforçando-se no ato de conter tua respiração ofegante, protegendo-a dos mais amistosos e afáveis ventos que suplicam espaço dentre tua própria existência. Sustenta-se em tamanha pretensão através de olhos azuis tão mórbidos quanto à tristeza que carrega. Aventura-se na jornada de vagar pelo breu de teus caminhos, perseguindo o mais quente de teus sonhos, a tal luz da vida da qual todos buscam quando se menciona o mais poderoso monstro de todos os homens. A morte.


Soberana. Serás esta? Não pode ser. A morte não poderia possuir tamanha mágoa, visível além de tua própria carne, já que esta não se arrepende ao tocar seus dedos sobre a vida, puxando-a com tamanha delicadeza, a fim de levá-la deste mundo talvez para um lugar menos apático do que este que me encontro. Mas, se esta for, por favor, cautela... Cautela ao retira-me sutilmente dos meus pecados. Mesmo com tanto tempo de repouso, acredito não ser o suficiente para encontrar e reconhecer a todos. Posas na frente de olhos que há tempos deixaram de enxergar, tão inalteráveis que já puderam duvidar sobre a continuação da minha vida. Meu discernimento já não é confiável o bastante para provar tua veracidade... Mas algo inexplicável transcende nosso encontro. Sinto como se já tivera me encontrado com esta aparência, tão sombria e silenciosa como a própria escuridão que contorna a noite nos teus mais ardilosos conflitos...”


– Querida...





Viro-me assustada. Ao notar um rosto conhecido, suspiro em alívio. Estatura média, copos na mão. Roseli, minha cara colega... Sua pele negra, maltratada pelo tempo, dá a esta um semblante rigoroso, mesmo não fazendo jus a sua personalidade serena. Encontra-me, de novo, com aquela carta amarelada entre meus dedos... Nenhuma palavra é necessária para me mostrar o que pensa sobre ela, minha amiga. Se soubesse que teu olhar preocupado me fere tanto, aposto que não o faria...








– Você... Está bem?








– Sim... Acredito que estou melhorando.






Levanto-me de meu acento e estico minha mão em direção a duas muletas, talhadas a madeira, com detalhes de flores em seu entorno. Com um pouco de esforço, consigo me erguer completamente para receber minha visitante. E anda sim, recebo ajuda para permanecer de pé.





– Não se preocupe... Não pretendo mais relatar o que vi a ninguém. Só queria ter a lembrança do que vi por escrito. A quantidade e a qualidade das palavras indifere se sua significação se torna nula diante de uma maioria, que se tornou incrédula ao ler tuas linhas...





Um leve sorriso se faz em sua face, como que tranqüila, por hora, com minha declaração. Se soubesse que deveria se preocupar mais com meu estado de espírito do que com meu corpo físico... Poderíamos conversar mais sobre o ocorrido. Sim, falo da página perdida e sem explicação de uma estória de completo mistério. Uma estória paralela, talvez mais importante e imprevisível do que a minha... Ou tão inacreditável e intolerável quanto.





– Sobrinha... Faz pouco tempo que voltou do hospital... Está em recuperação, devia se sentar e repousar.





Sabes de tantos segredos meus... E mesmo assim ainda se põe ao meu lado independente das circunstâncias. Deixaste teus cômodos confortáveis para me visitar em dia de chuva, a pedido de minha mãe. Teus sapatos encardidos de lama não escondem sua simples e ingênua sinceridade.





– Aceito tua preocupação de bom grado, tia. Mas não se preocupe. Disse a você que não iria mais tocar nesse assunto com ninguém. Cumprirei minha promessa.




– Cristina... Há uma pessoa querendo conversar contigo lá fora.



Vestido azul, com tecido branco caindo sobre os panos altamente costurados, exigência da parte de minha mãe. Esta era Alva, a nova empregada da casa. Com cabelos castanhos levemente enrolados, trazia consigo um olhar receoso. Logo após emitir a mensagem, tem pressa o suficiente para afastar-se de minha pessoa.




– Outro jornalista? Alva, por favor, peça para que se retire. Não pretendo receber mais ninguém que venha a falar do meu acidente.





– Pois era o que estive tentando fazer antes de vir até aqui incomodar-te...





– Então me deixe-me resolver isso.





Apressada, me dirijo à porta. Nem os donos e nem os empregados da casa agüentavam mais tal situação. Perdurou por uma semana, na mesma freqüência, o suficiente para irritar os inquilinos. Abrindo-a com certa fúria, me preparava para gritar ao ouvinte quando me surpreendo com meu visitante.





– Srta. Cristina?





Uma moça de longos cabelos castanhos e presos me dirigia à palavra. Uma empregada. Vestida com um lindo vestido avermelhado e cheio de detalhes minuciosos, logo percebo que era de mais alto requinte do que Alva. Trazia consigo uma bandeja de prata, e sobre ela, uma correspondência lacrada.





– É você a mulher que começou a ver espíritos depois que acordou do coma em que entrou depois de sofrer um terrível acidente de carro há alguns anos?





Logo, me sinto desconfortável.





– Será que essa cidade não consegue parar de inventar boatos? Quanta bobagem. O que relatei ao médico que me atendeu não foi nada além de uma alucinação que tive enquanto estava desacordada.





– Pois bem, negação é o primeiro sintoma de quem mente.





Recuo um passo.





– Mas o quê? Peço para que repita o que disse...





– Chamo-me Geórgia, e vim entregar-te esta carta de minha senhoria. Por favor, espero que minha visita a senhorita permaneça encoberta tanto quanto o conteúdo desta carta.





Ao recebê-la, a mesma agradece e se põe a caminhar em direção a rua. Fecho a porta, me acomodo confortavelmente em minha poltrona e começo a ler. Nenhuma outra carta que recebi havia me despertado tanto interesse como esta... E ao terminá-la, percebi que não estava errada em achar sua chegada intrigante. Alva, já em recua, foge o olhar do meu, mais assustada do que de costume.





– Está tudo bem?





– Sim... Só mais uma carta de alguém que duvida de minha lucidez.





A jogo sobre a mesa com desdém extremamente falso. Depois de tanto tempo, algo parece querer instigar-me a continuar com as minhas provações.





– Por favor, me deixem só.





– Mas querida...





Pensativa, prefiro evitar contato visual.





– Por favor.





As duas saem sorrateiramente de meu aposento. Ao fecharem as largas portas de madeira, tomo a carta novamente em mãos, dessa vez, acompanhada dos pequenos óculos de meu pai.





“Ninguém pode julgar o que viu ou deixou de ver, minha filha. Saiba que neste mundo, há muito mais do que os olhos humanos são capazes de enxergar. Sei que enfrenta dificuldades neste momento, mas talvez tenha algo que possa confortar-te... Já que fugiste da morte, meu anjo, espero que possa ajudar meu pequeno a fugir também”.





Ao terminar a releitura, reclino sobre o encosto de minha confortável cadeira com a carta sobre o rosto, com um suspiro prolongado de indecisão.





– O que será que ela quis dizer com isso...?





Logo, afrouxo o cachecol de meu pescoço, suando.





– Pff... Há muita gente aqui.





As duas que outrora haviam saído, observavam pela porta. Alva, esbranquiçada, esforça-se para pronunciar algo.





– Mas... Dona Roseli... A sala está vazia.





Roseli, num gesto calmo, segura o braço da empregada que quase não conseguia ficar de pé. Respira lentamente.





– Eu sei.





Dia II

“A desgraça do alheio conforta a infelicidade de tantos que chega a ser uma atrocidade a consciência, que, por ela mesma não, percebe ser levada por tal satisfação momentânea e ilusória. O auge e queda são tão irmãos que andam de mãos dadas desde que nasceram... No entanto, são os pontos mais extremos em que se pode testar a fidelidade humana. Existência que comporta nada além de seus negros olhos... Uma alma que perdura na inutilidade de continuar vagando sobre o sol, sobrevivendo. Sobrevivendo e ignorando certas verdades”

– Amarelo... Está bom?

– M... Mas, Cristina... Tem certeza que está bem para sair?

Estico-me, ainda deitada sobre o chão frio. A tinta nanquim escorre do meu último ponto, enquanto releio o último parágrafo. Uma pequena gota suja meu rosto... Ou talvez o colore, mesmo que seja feito do mais escuro material, não deixa de ser uma cor. Viro-me e observo as janelas, enormes, com cortinas de veludo que arrastam as pontas douradas no chão... Mas também vejo que a luz não faz grande esforço para aquecer um ser frágil que se acoberta entre teus raios. O quarto está cheio de roupas, amarrotadas uma sobre as outras, reprovadas ao meu olhar... Acabo de perceber que nenhum dos tecidos que possuo me deixa confortável... E acabo de perceber que me importava demais com isso.

– Mas é claro... Quero buscar novas folhas, há uma loja aqui perto que sempre visitava quando escrevia.

– É claro? Todos nas ruas falam de você! E outra, você ainda não está bem para sair de casa! Ontem mesmo me lembro de ter ouvido você dizer que...

– Quando disse que havia muita gente aqui... Referia-me a vocês duas.

Logo, Roseli se cala. Suspira e abaixa a cabeça aliviada com a resposta, por mais que estivesse envergonhada por ter ouvido atrás da porta e tirado conclusões precipitadas. Percebo o olhar entristecido, e me sinto desconfortável.

– Escute... Não quero mais que se preocupe com isso. Sofri um acidente, entrei em coma, acordei, tive ilusões. Não acham natural ter algum efeito colateral de um sono tão profundo?

– O que quer dizer?

– Vamos apenas... Esquecer.

Observo a ponta dos meus dedos, que agora protege meus olhos da claridade. Dedos esses maltratados em aulas de piano, das quais participei arduamente para agradar uma figura materna ausente. Pego em mãos o texto que escrevi outrora... Releio os parágrafos, lembro-me do momento em que a vi. Roseli... Minhas palavras pedem para que se esqueça, mas minha mente não me permite pensar em outro assunto. Será que devemos nos preocupar com coisas que só existem dentro de nossos próprios sonhos?

– Então faremos assim. Levo a Alva comigo até lá. Ficará mais calma?

Seu olhar preocupado mistura-se com o nervosismo e a impede de mover um dedo sequer como resposta. Levanto-me e visto-me com a peça que minha mão pode tocar primeiro... Abraço minha tia, pedindo para que vá descansar. Ansiosa, ando até a porta.

– Estou pronta, senhorita.

Percebia Alva mais tranquila com minha presença. Deve ter ouvido minha explicação sobre o ocorrido ontem.

– Vamos.

Depois de alguns minutos de caminhada, sou alertada por Alva.

– Ah, acho melhor irmos por outro caminho, senhorita.

Ao observar ao nosso lado, uma briga na calçada. Os homens ao seu redor urravam para encontrar e vangloriar um vencedor de tal ato inútil... Todos observavam o alvoroço, porém... Algo me incomodava.

– Senhorita... Senhorita, o que houve?

Vejo algo do outro lado. Um homem observava a rua com um olhar intensamente frio. Cabelos castanhos cortados de forma a deixar duas pontas cumpridas descansando sobre seu peito... Vestimenta nobre, perdido em seus pensamentos... Ah... Poderia passar tardes e mais tardes descrevendo o contorno da tristeza de teus olhos... Uma tristeza insatisfeita com o que o destino lhe proporcionou. Quantas estórias interessantes e ocultas uma pessoa pode esconder através da prata e do ouro? A grande verdade é que todos somos vulneráveis ao sofrimento... A classe em que se nasce não significa absolutamente nada diante da complexidade da vida.

– Hm? Aquele homem? Ah... Senhorita... Deve ser mais um destes ricos que perderam todo o patrimônio em apostas, e agora não tem como pagar suas dívidas. Não perca teu tempo.

Não... Não se tratava disso. Teus olhos, também castanhos, eram refletidos nos vidros dos carros que passavam velozmente a sua frente. Nem Narciso haveria de ficar tão compenetrado em tua própria imagem quanto o homem da qual me refiro... Mas por quê? Tudo havia ficado lento naquele instante. Os sons, as pessoas, os carros. Não me importava com a multidão a minha frente, apenas sentia uma necessidade inexplicável de alcançá-lo. Tudo havia parado enquanto caminhava instintivamente para frente... Erguendo a mão maquinalmente, tento tocar seu ombro. Mas logo o vejo se afastar. Os carros estavam passando... As pessoas aos poucos começam a perceber algo errado. As atenções da briga ali perto recaem sobre esta cena... Ele dá um passo, os carros começam a buzinar, os cochichos aumentam. Volto a mim com uma sensação de desespero que percorre em segundos minha espinha, fazendo-me agarrar a gola de sua blusa como reação. Quando de repente...

– Solte.

Uma voz suave me faz arregalar os olhos: Alguém puxava a mão do rapaz para o meio da rua. Mãos finas e pardas. Logo, meu olhar vai de encontro a profundos olhos azuis... Meu coração dispara. Um sentimento de sofrimento invadia meu peito com a rapidez de uma bala perdida atravessando o coração de um cidadão inocente, fazendo-me respirar com dificuldade, trazendo consigo uma angustia que toma meus pensamentos por completo. Aquela que outrora havia confundido com a tal soberana morte em meu leito, agora me encarava desesperadamente. Minhas pernas tremem, mal consigo me manter em pé... Minha mão, lentamente começa se abrir...

– O deixe... Morrer.

O que... As pupilas dela diminuem. A mesma fecha os olhos o mais forte que pode e o agarra com o punho quase que instintivamente, puxando-o para trás. Com isso, se desequilibra e bate a cabeça na parede.

– Senhorita??!!

Corro até ela, sem entender. Ela continua o segurando, mesmo com o sangue escorrendo de sua nuca? O que está fazendo?! De repente, se afasta bruscamente e se apoia na parede, olhando desconfiada para os lados. Não me respondia e nem olhava em meus olhos, porém, observava o local com o máximo de atenção possível com uma expressão que nunca vira em seu rosto... Ódio. Um tipo de ódio tão profundo que uma vida não seria o suficiente para representá-lo.

– Cristina...?

Algumas gotas de sangue pingam no chão. Ela ergue o olhar em direção ao meu e com a mão, limpa o sangue que escorria.

– Eu me chamo Agnes.

Dia III

“Todos têm pontos falhos. Todos nós, sem exceção... O orgulho, porém, nos impede de admiti-los, de tal maneira que nos faz ignorar o lado obscuro da alma, dando valor apenas aquilo que aparentemente se tem de bom a oferecer. Quando se precisa de ajuda, muitas pessoas preferem não recorrer a entes ou conhecidos para acharem uma solução juntos, preferem guardar todos os problemas para si, sem regra, afundando-se num poço de soluções imaginário que muitas vezes não tem fim e nem começo. Às vezes é preciso admitir.”

– Hã?


Acordo repentinamente, como se um sono profundo houvera me feito dormir quase que contra a minha vontade. Ah... Uma tal dor de cabeça me acompanha quando tento me lembrar do que houve... A última lembrança é de ver um garoto e... Aquela mulher. Aqueles olhos profundos me encarando diante de um ato que poderia acabar em morte. Será ilusão? Não... Impossível. Meu coração palpita só de me lembrar, porém, além disso, nada me vem à mente, apenas a dor de cabeça. Acredito que estou tendo vendo coisas por pensar demais nisso... Melhor que ninguém saiba do que ocorreu, nem eu quero mais correr atrás desses assuntos. Têm me feito mal desde que comecei a falar deles.



– Céus...



Apóio-me sobre minha escrivaninha, surpresa. Meu corpo parece não ter força para se mover. O que está acontecendo...?! Devagar, arrasto-me até a porta, tentando chegar até a maçaneta. Escuto vozes.



– O que houve?



– N... Nada, Roseli.



– Ora, como ousa! Entraram pelos fundos ontem que bem sei, por que não usaram a entrada principal? O que aconteceu de tão grave que tiveram de se desviar de meu caminho?!



- Ela... Ela... Ela estava com dor de cabeça, resolvi usar a outra porta para evitar os empregados...



– Então me deixe ver.



–Mas...



– Não vou pedir de novo!



– Mas... Ela ainda não...



– Bom... Dia.



Abro a porta. Porém... Nunca vira, em toda minha vida, Alva com aquela expressão. Mais do que assustada com minha presença como de costume, me observava com grandes olheiras debaixo de teus olhos, quase como se me temesse mais do que a própria morte. Aquele olhar trêmulo me incomodava profundamente... Algo estava errado. Estico minha mão até ela.



– Alva...?



Ela dá um, dois passos para trás, quase como se não pudesse. Afasta-se de mim de forma tão desconfiada que me sinto desconfortável...



– Cristina...?



A observo com um olhar calmo e tranqüilo, tentando acalmá-la através de meus gestos.



– Eu estou bem, se é isso que queria perguntar.



Suspira aliviada como nunca antes, como se reconhecesse algo em meu tom de voz. Um minuto de silêncio se faz, até que Roseli o quebra.



– Que bom que está melhorou da dor de cabeça, filha.



Com a mão direita, faz carinho em meu rosto. Tomamos café juntas, e logo entardece. Alva esteve estranha o dia todo.



– Ah, querida... Esqueci de te avisar, mas tua mãe chegará daqui a pouco, ia te avisar ontem, mas...



Nada mais ouvia de minha querida amiga. A partir do momento em que a palavra “mãe” entrara por meus ouvidos, sinto que desliguei completamente. Não havia algo no mundo mais temível do que aquela mulher... Fria. Não do tipo de frio que quem te acolhe em cobertas, mas daquele em que lhe deixam do lado de fora esperando para que morra de pneumonia.



– Daqui... Há pouco...?



– Querida, está me ouvindo?



Sinto a dor de cabeça novamente.



– Ah, sim. Já vou me arrumar, só... Deixe-me descansar por mais um pouco.



– Tudo bem.



Ela se vai pelo corredor. Alguns segundos se passam.



– Alva...



A mesma me olha apreensiva.



– Você precisa me contar o que houve.



– N... Nada que precise se preocupar, senhorita. Ontem quando ajudou o garoto, bateu a cabeça e... E ai desmaiou. Daí te trouxe pra casa, só isso.



Isso explica a dor de cabeça. Porém, sinto que não foi completamente confiável.



– Obrigada por me trazer, então. Vou sair agora, nos vemos mais tarde.



Despeço-me e começo a correr. O mais rápido que posso, até me dirigir para a porta da frente. Precisava sair dali o mais rápido possível. Cansada após percorrer o casarão, vejo a porta da saída. A abro rapidamente e...



– Urgh!



– Cristina...?



Quase caio para trás. Meu coração acelera de tal forma que mal posso contê-lo... Começo a soar frio e sinto um arrepio terrível na espinha. Engulo a seco. Olhos negros surpreendentemente afiados me fitavam como um leão fita sua presa, degustando o momento antes de atacá-la... Desprezo. Era isso que sentia. Minhas pernas tremem... N... Não consigo me mover. Minha visão está ficando embaçada...


– Vá se trocar imediatamente, antes que te vejam nesse estado deplorável.


O quê... Céus. Observo logo a minha frente, uma cena que não esperava ver tão cedo. Minha irmã se adiantara quase que quatro horas. Certeza que viria mais cedo para aperfeiçoar os detalhes o máximo possível, mas não desta forma. A vejo segurando Cristina pelo braço. Pobre moça, aposto que está ouvindo alguma insatisfação da parte dela. Como sempre. Me aproximo com medo de que ela a machuque psicologicamente mais do que de costume.



– Irmã... Não seja tão rude.



– Não se intrometa, Roseli. Criança imperfeita, adolescente avoada, adulta imprestável. Maldita hora em que aquele homem morreu e me deixou sozinha para cuidar de tudo! Este vestido está horrível, parece até que não tem roupas! O dinheiro que gastei em vestidos caros não pode simplesmente ser ignorado por qualquer adolescente rebelde. Há muito mais do que aparências aqui. Há reputações. E não perderei a minha. Está me ouvindo, Cristina?



– Me solte.



Ela se aproxima e fala em baixo tom.



– Nesta casa minha palavra é lei... Todos têm de obedecer as minhas ordens, e isso inclui você.



O quê...? Chego a tempo de ver a discussão. Neste momento, Cristina ergue o olhar lentamente até poder encarar sua mãe. Olhos esses que formaram uma imensidão sombria com a luz que estava acima, deixando-a com uma expressão completamente assustadora. Roseli observa seu rosto, sem entender. Ela sentia que havia algo de errado com sua sobrinha. A mesma apertava em uma das mãos uma faca que pretendia devolver a louça... Mas não parecia que cumpriria este destino. Céus... E aquele olhar. Aquele olhar, de novo.



– CRISTINA!!!



Anh...? Alva... Arhh... Que dor de cabeça... Espera, o que... Olho para baixo e observo uma faca em minhas mãos. A apertava com toda a força que tinha, com um sentimento de raiva que me fazia quase cortar a mulher a minha frente. A solto rapidamente e coloco a mão sobre a boca, assustada. O que aconteceu...?! Ela corre até mim e me puxa pelo braço esquerdo.



– Sinto muito, ela precisa se retirar agora.



Correndo, vamos até os fundos da casa. No caminho, sinto minhas pernas sem forças igual à de manhã... Alva percebe e me ajuda a chegar até nosso destino. Lá, ela fecha as portas e paramos para recuperar o fôlego.



– Alva... Arf... Alva você viu...



Sinto uma terrível dor de cabeça que me impede de continuar a frase. Ela me observava apreensiva. Lágrimas vêem aos meus olhos... Não... Não era pra ser assim. Por mais rancor que guardasse de minha figura materna, jamais desejaria acabar com sua vida de forma tão irrisória. Algo estava errado. Esses pensamentos... Não me pertenciam.



– O que aconteceu?!



A mesma me abraça. A grande verdade... É que nunca achei que fosse admitir que precisasse de alguém. As duas, desesperadas, sem saber por onde caminhar dali pra frente. Sentia como se fôssemos conhecidas há séculos naquele instante. Quase como se tentasse conter a ansiedade e nervosismo por estar tão perto de alguém como eu, fala com mais calma possível.



– Cristina...



Ela fecha os olhos.



– Precisamos conversar sobre... Uma tal de Agnes.




– Vocês duas!



Viramos-nos. Roseli estava parada de pé a nossa frente, com uma expressão nervosa.


– O que está acontecendo aqui?!



Levanto-me, assustada. Se nem eu sabia, como explicar aquele momento?



– Roseli...



Ela levanta uma das sobrancelhas para Alva e a encara.



– Quero ter uma conversa séria com você.



Dou alguns passos para trás. Escuto, ao fundo, alguém falar meu nome. Aquela voz, fria... Sabia quem era. Era ela. De novo. Não podia ficar ali. Saio correndo pelas portas do fundo, enquanto Roseli tenta me impedir me chamando de volta... Os seguranças da casa começam a me perseguir... Não há mais para onde ir?! Mas nada me faria parar. Absolutamente, nada. Aquela sensação... Nunca a tivera antes. Precisava sumir... Até que abro a porta.



– Bom dia, Cristina!



Dou de cara com uma mulher de cabelos castanhos e olhos ávidos.



– Ge... Geórgia?!



Quase caio para trás. O que ela estava fazendo ali num momento como esse?! Vejo os seguranças se aproximarem e arregalo os olhos.



– Está pronta?



Ela se vira. Ao olhar para trás, vejo um carro, nos aguardando na frente da casa; Franzo o cenho... O que... Ela pega em meu braço e começa a correr.



– Não temos muito tempo, senhorita!



– Mas o que...



Longas e finas pernas me puxavam para o carro preto que nos esperava. A observo enquanto corro... Seu vestido bordado estava tão nobre quanto o de antes... Seu chapéu também era lindo, dando destaque ao seu cabelo. Os seguranças gritavam para pararmos, porém, Geórgia não diminuía o passo nem em um segundo. Estava determinada a me tirar daquele lugar, quase como se soubesse que precisava disso desesperadamente. Como é possível...?!



– Vamos, entre!



Um senhor de cabelos brancos abre a porta do carro para que nós entremos. Logo, dá uma pequena corrida até o outro lado do carro, sentando-se no banco de motorista. Ao olhar pela janela, vejo, de longe, olhos de águia me observarem... Como tinha medo daqueles olhos. Desde pequena, sempre foram os mesmos... O motorista pisa no acelerador e saímos, deixando os guardas parados nos vendo partir. Um deles, em especial, nos olhava com raiva. Parecia que o havíamos desafiado, de uma certa forma. Ele levanta o dedo indicador e o aponta para mim, como uma forma de dizer que iria me encontrar. De qualquer maneira.



– E então, como está se sentindo?



Viro-me novamente a Geórgia, sentada no banco ao meu lado. Não sabia o que responder.



– Não se preocupe menina, pode contar pra mim.



Ora. Quem ela pensa que é? Alva? Até ali, era a única pessoa que confiava para contar os meus segredos. E confiança não é algo que se ganha só por te salvarem a vida. É, bom... Mais ou menos. Ela pende a cabeça e sorri, daquele jeito dela.



– Vai ficar tudo bem.



Chegamos. Um casarão enorme, bem maior que o que meu pai havia deixado de herança para a nossa família. Um quintal gigantesco, pelo qual passamos de carro, até a porta da madeira mais cara que havia visto em vida. Em frente a ela, havia uma mulher. Cabelos brancos, presos em coque. Parecia ter uns 58, 60 anos. Porém... Aqueles olhos castanho-claros me eram familiares.



– Cristina... Que bom vê-la!



Anh?! Sou recebida com um abraço.



– Obrigada...?



– Eu me chamo Louren, é um prazer te conhecer pessoalmente. Deve estar cansada, não é querida? Vamos, vou te mostrar teu quarto.



– Mas...



- Antes de tudo, quero que descanse. Não está em condições de conversar.



Ela me empurra até um quarto e me tranca pelo lado de fora.



– ...



Dia IV

Acordo de repente... Não me lembro com o que sonhei. Se é que o fiz. Percebo a porta aberta... Sinto um frio na barriga. O que será que ela queria...? Abro a porta lentamente, não sabia o que encontraria dali para frente... Minha cabeça doía um pouco, como têm doído ultimamente todas as vezes que acordo. Ando pelos corredores... Largos e cheio de quadros pelas paredes... Quadros dos mais caros, eu imagino. Tudo brilhava, enquanto meu caminhar fazia o barulho da madeira tocar aos meus ouvidos, igual a minha casa. Logo vou me aproximando... Chego à sala central, e encontro as duas conversando. Logo, param ao me ver.

– Bom dia!


Ora... Como pode estar tão feliz logo cedo?!



– Sente-se, querida.



Acomodo-me no sofá gigantesco. Era extremamente confortável, como se abraçasse todas as minhas mágoas e medos por um instante...



– Vou fazer um café.



Geórgia sai, nos deixando a sós. A mulher me fita e sorri, enquanto olho para o chão, assustada.



– Você está melhor?



– Sim...



Coço a cabeça, apreensiva.



– Senhora Louren... Preciso de alguma explicação.



– Claro... Você a merece. Sabe... Roseli é uma grande amiga minha. Conversamos muito, e há tempos ela me fala sobre você... Contou-me tudo que eu precisava saber.



– Ah... Então ela...



– Foi tudo planejado. Bolamos em alguns dias como te trazer para cá. Ela te avisou em cima da hora que sua mãe viria, para que ficasse assustada o suficiente para querer fugir.



Coloco a mão sobre a cabeça. Não podia acreditar.



- Aquela...



Neste momento, sinto meu coração apertar de saudades dela. Sorrio feliz. Logo, me lembro:



– E Alva? Ela vai ficar sozinha?!



– Não se preocupe... Vamos buscá-la mais pra frente. Geórgia me disse que ela tem muito que aprender ainda, vai ser um prazer ensiná-la.



Franzo o cenho. Ora, que coisa! Minha empregada era ótima! Apesar de minha mãe dizer o contrário...



– Sinto que ela ficará encrencada com minha mãe naquela casa...



– Não se preocupe, Roseli cuidará dela. Também gosta muito dessa menina. Um dia desses me disse que ela te carregou até o quarto para que pudesse descansar. Ela viu tudo, sabia que estavam se tornando amigas. Ela me disse que era confiável.



– Ah...



– Mas e você, meu bem... Roseli só me contou o que sabia, sinto que tem mais por vir, não?



Olho para baixo.



– Olha... Não sei se me sinto confortável para falar disso... Mesmo por que, é impossível de resolver.



– Nunca diga que algo é impossível se ainda não tentou.



Ela sorri. Que sorriso gostoso o dela... Fazia-me querer sorrir junto. Usava uma roupa marrom, com botões num tom mais claro que prendia sua blusa. Um chapéu pequeno e marrom claro cobria seus cabelos, já brancos. Ela devia ter sido linda, ainda era.



– Lembro-me que pediu a minha ajuda... Mas sinto que ainda não sei lidar com meus próprios problemas...



Justamente! Quero te ajudar a tratar desse problema... Sua tia me disse que ultimamente tem ficado irritada com facilidade, e tem demonstrado sinais de ser uma pessoa violenta, coisa que nunca foi. Sei bastante de você, te vi crescer, moça. Sei que é uma boa garota.



Suspiro. Não sabia o que dizer.



– Bom, o negócio é o seguinte: Você sabe fazer algo que eu preciso, e eu sei fazer algo que você precisa. Que tal o acordo?



Sei fazer algo que precisa? E eu preciso... O que seria? Silêncio. A observo desconfiada.



– Meu marido era médico... Ele cuidava de muitos pacientes aqui, até que o chamaram para trabalhar na França. Nosso segundo filho também está lá, se formando em medicina para seguir com os negócios do pai.



– Ele morreu...?



– Não, não! Mesmo depois de nove anos, ainda continua a atender pacientes na clínica que abriu lá. Disse que voltaria quando nosso filho terminasse a faculdade.



– Entendo... Deve sentir saudades.


Ela desvia o olhar, longe.


– Sim, com certeza...



Logo, volta.



– Mas então... O consultório dele era nessa casa. Meu marido acompanhou seus pacientes há tanto tempo... Ele não só medicava como também dava apoio, conversando sobre seus problemas e aflições. Ouvia a todos, um por um... E criando essa relação com eles, muitos melhoraram de suas doenças. O cérebro humano é realmente incrível... Bom, confiavam em mim também por que sempre ouvira as sessões, se sentiam confortáveis com a minha presença por perto. Por isso, depois que ele foi embora, resolvi atendê-los em seu lugar.



– Mas a senhora não tem formação para isso! Não é perigoso?



– Não os medico, porém, converso. Conversar e dar carinho a alguém nunca é demais... As pessoas precisam de amor, querida. O mundo está um caos... Precisamos nos ajudar. Eles vêm e vão embora, de graça. Muitos já se curaram e estão bem, vem de vez em quando trazer bolos para me agradecer, e vem me visitar. É incrível poder ajudar de peito aberto assim.



Engraçado. Minha mãe sempre dizia que para ser alguém na vida, era preciso de um diploma... Mas... Vendo dessa maneira, Louren tem razão. Ajudar, sem receber nada em troca... Qual deve ser a sensação? Contraria tudo que me fora ensinado...



– Sei de muitas situações e pessoas que passaram por grandes dificuldades. Por isso, sei que posso te ajudar a lidar com seus problemas. Em troca... Queria que me ajudasse.



– Mas como poderia? Já não sabe tudo que é necessário?



– Nem tudo, meu anjo. Existem certos campos da mente humana que só alguns são capazes de compreender. Porém, você não está preparada para lidar com nada disso... Quero te ajudar, para que possa me ajudar. Estou incrivelmente interessada no que você pode me oferecer como crescimento profissional e pessoal.



Olho para minhas mãos, que não paravam de se mover em nervosismo.



– Sou um experimento...?



– Talvez.


Sinceridade. Algo que não faltava nas pessoas que freqüentavam aquela casa. Mas ela continua sorrindo pra mim... Não fazia idéia do que ela queria dizer. Geórgia traz o café e nos serve. A mesma senta-se à mesa e começa a tomar também. Olho sem entender... Parecia até que era da família.


– Não vejo... Como poderia ser útil pra você.



– Me acompanhe.



Levantamo-nos, e andamos por um corredor imenso. Ouço uma música, lindíssima, de piano... Instrumento esse do qual eu apreciava muito. Porém, a música era triste... E a voz que a acompanhava, era uma das mais bonitas que já ouvira. Seja quem fosse, estava quase que morrendo nas entrelinhas de suas melodias... Chegamos cada vez mais perto, até que ela coloca a mão sobre a porta, silenciosamente.


– Mas senhora Louren... Você já ajudou tantas pessoas, fez tanto por elas... Como há de confiar em mim? Se é que nem mesmo me conhecia pessoalmente, não fiz nada para provar tal lealdade...


Arregalo os olhos.



– Tem certeza...?



Vejo, no centro da sala, um homem de cabelos castanhos. Pontas maiores na frente, um olhar triste e vazio que acompanhava a melodia. Ao seu lado, uma faca talhada, toda revestida de prata, quase como nova. Tantas lembranças naqueles olhos... Transpassava em sua música. O Piano era preto com detalhes em dourado, destacando-se no centro da sala. A janela aberta dava a ele um ar angelical tão sublime que fez me perder em meus próprios pensamentos... Ah... Aquele olhar. Eu o reconheceria de qualquer maneira.



– Você...




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