CELESTIAL escrita por Leonardo Pimentel


Capítulo 11
Capítulo 11 - O Início


Notas iniciais do capítulo

O coração começa a se encobrir de trevas bem aqui...



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Céu, Tribuna Principal, 6.000 a.C.

Miguel estava estacionado perante uma edificação alta, sustentada por colunas que se destacavam pelo seu estilo único e bem feito. Eram colunas com estilo coríntio, ornamentadas de forma exuberante. Sustentavam o prédio de cem metros de altura, feito em mármore e ouro. No pátio do prédio foram erguidas quatro estátuas que retratavam os quatro pílares do céu. E, coincidentemente, Miguel parara na mesma posição que sua estátua. A expressão era austera. Ele havia parado ali, apenas para passar o tempo, longe dos problemas que o aguardavam dentro do templo. Miguel estava parado na frente da Tribuna Principal e sabia que era o único que faltava na reunião.

Trajando sua armadura de guerra como de praxe, Miguel reluzia sob uma luz amena. A espada estava presa à cintura, por uma bainha e o cabelo, bem cortado, era negro. Os olhos azuis estavam focados nos detalhes da construção, enquanto esperava que o tempo transcorresse. Ele queria passar o maior tempo longe daquela sala de reuniões, não queria ter que discordar do irmão Gabriel, muito menos ter que ouvir as palavras de Lúcifer. E estava enjuriado ao saber como Rafael não dava importância para os problemas que estavam prestes a enfrentar. Os pensamentos estavam intensos, antes de Gabriel aparecer no alto da escadaria. O primeiro detalhe a chamar atenção no Anjo da Revelação, eram as íris totalmente alvas.

─ Miguel, a reunião está para começar, mas não sem sua presença, irmão. ─ falou Gabriel, sem delongas, voltando-se para a entrada do prédio. ─ Encurte seu deveio. Não há tempo.

Miguel suspirou demoradamente e começou a subir os degraus, pouco a pouco vencendo-os. As botas da armadura ecoavam em contato com a pedra do chão. Atravessou algumas pilastras, até encontrar a entrada retangular. Venceu o pátio interior e subiu mais dois lances de escadas pelo lado esquerdo. Cansou-se. Abriu as asas e terminou o percurso voando. A visão do interiror da edificação sempre o deixava atônito, por mais que houvesse entrado ali milhares de vezes. Eram diversas salas pelos andares. As estátuas espalhadas pelo interior do local, a forma como o lugar tinha brilho, o silêncio. Tudo era perfeito. O sol entrava pelos vitrais simples e se projetava em retangulos pelo piso de mármore alvo. No primeiro andar, atrás da maior porta de mogno da tribuna, havia uma grande sala de teto alto. Miguel encostou os dedos na porta e respirou profundamente, acalmando-se. Sentiu a madeira em contato com a pele. Respirou mais uma vez, ditando ordens aos pensamentos, ordenando que a própria voz se calasse. Empurrou a porta e entrou.

Existia na sala uma construção alta de madeira, onde em cada ponto cardeal, existia uma tribuna adornada de veludo vermelho, que contrastava com a madeira polida. Do alto, um óculo circular imitava o céu do lado de fora e lançava luz ao centro do local, iluminando o belo piso de mármore, porém, deixando os cantos da sala na escuridão parcial. Na tribuna do sul, Lúcifer sentava de forma pomposa, as longas madeixas negras e sedosas escorrendo pelas laterais da cabeça, até o peitoral forte. Ao leste, Gabriel endireitava-se, sempre com atitudes calculadas, olhar severo e postura rija. Não esboçava expressão alguma e diferente de Lúcifer, Gabriel sentou-se ereto na cadeira.

No oeste, havia um anjo de cabelos castanhos claros e pele alva. Os olhos verdes esbanjavam firmeza e o semblante era desagradável. Parecia que estava ali, sendo forçado. Era forte, corpulento, as asas eram grandes. Trajava uma armadura tão brilhante e dourada quanto a de Miguel, porém, estava longe de ser tão paciente quanto o irmão. O Arcanjo de olhos verdes levantou-se na presença de Miguel e com um aceno o reverenciou. Gabriel nada fez. Miguel andou até o centro do âmbito e fitou Lúcifer, que sem levantar, meneou a cabeça em respeito ao irmão.

Miguel abriu as longas asas brancas e alçou voo até chegar à sua tribuna, no lado norte da sala.

─ Qual o motivo de sua demora, irmão? ─ questionou o Arcanjo de cabelos castanhos. Sentou-se projetando o tórax para frente, como se quisesse ouvir bem.

─ Eu estava contemplando está obra na qual estamos, Rafael. ─ Miguel tirou o cinto que segurava a bainha na cintura, juntamente da espada e depositou-os na mesa a frente.

Lúcifer passava a mão pelos cabelos, brincando com os fios sedosos, que lhe caíam a face. Parecia uma criança tola, enquanto mexia com as madeixas, pouco se importando com a reunião que se procederia ali.

─ Sem delongas. ─ intimou Miguel, levantando-se lentamente da cadeira. As asas moviam-se lentamente. ─ Gabriel, como vocês sabem, tem o dom da previsão. Porém, o dom dele mostra-se incerto, já que nossas atitudes e vontades mudam constantemente, acarretando, também, numa mudança no futuro. ─ a oratória de Miguel era impecável, calma e correta. Retomou a palavra: ─ Ele recorreu a mim, pois previu, num futuro próximo uma traição vinda de um Arcanjo, que faria nossas bases ruírem. E essa traição, levaria nosso Pai, o Altíssimo, a modificar drasticamente os planos que ele traçou até o dado momento. Quero que me falem: qual de vocês é o traidor? ─ Miguel olhou de Lúcifer para Rafael.

Rafael ergueu-se violentamente da cadeira, derrubando-a. O estrondo ecoou pelo lugar. Olhou para Miguel fuzilando-o com o olhar.

─ Como ousa? ─ disse, subindo ameaçador na mesa. ─ Está nos acusando de traição?

Rafael balançou as asas com uma velocidade constante, porém, não saiu do lugar. A mão jazia sobre o gládio, esperando o momento certo de usá-lo. Não raciocinava mediante tal acusação. Os olhos lançavam faíscas contra Miguel, que permaneceu na mesma posição ereta, as asas balançando suaves e calmas. Não se intimou contra Rafael, apenas esperou. Lúcifer mal se movera, estava atento aos movimentos e às falas e fitava em especial Gabriel. Ele já estava de prontidão, com a espada firme, porém, oculta abaixo da tribuna.

─ O que o leva a crer que Gabriel não seja o traidor? ─ vociferou Rafael, exaltando as têmporas. ─ DIGA MIGUEL, O QUE TE LEVA A CRER.

─ Gabriel é o mais puro entre nós, o mais puro. Não use palavras venenosas para profanar o santo nome de nosso irmão. ─ Miguel falava suavemente, atenuando seu caráter ameaçador. Era melhor que estivesse gritando. ─ E mesmo que ele fosse o traidor, a que preço delataria a própria insurreição?

Lúcifer riu e pela primeira vez emitiu um som.

Miguel olhou para o Arcanjo da Luz e lembrou-se como eram violentamente parecidos na fisionomia, os aspectos, a cor e as simples curvas do rosto. Apenas o corte de cabelo e a cor das íris eram diferentes. Eram os mínimos detalhes que diferenciavam ambos. Porém, Lúcifer tinha ações calculadas, um ar de frieza e aspereza desiguais. Miguel respirou profundamente antes de voltar a olhar para Rafael, que fungava alto e em tom claro.

─ Eu acho... ─ quem havia se pronunciado era Lúcifer, com sua enorme arrogância. - ...que você, Rafael, deveria se acalmar e apenas obedecer seus superiores.

O estopim fora dado. Rafael subiu na tribuna que ocupava, pegou impulso conforme flexionava as pernas, alçou voo na direção de Lúcifer e com a espada em punhos, golpeou a Estrela da Manhã, que permaneceu imóvel. Uma lâmina surgiu entre os dois, promovendo uma chuva de fagulhas magníficas. Era Gabriel, que defendera o irmão, com rapidez e em pleno ar.

─ Rafael, a Tribuna não é local para lutas, você sabe disso. ─ Gabriel moveu a própria espada com um gesto brusco, afastando a lâmina de Rafael. O Anjo da Revelação olhou para Lúcifer. ─ São as leis Antigas que definem isso. E sua língua descontrolada não ajuda em nada, irmão. Mantenha-na atrás de seus dentes, quando desnecessário o uso de suas palavras.

Gabriel, talvez, era um dos poucos que entendiam Lúcifer e olhava nos olhos do irmão. Eram olhares, que significavam muito além do que os outros poderiam entender. Gabriel balançou as asas e voou na direção de Rafael, auxiliando-o a se endireitar na tribuna oeste. Com seus olhos opalescentes, Gabriel fitou Rafael, que ainda estava exasperado, bufando.

─ Miguel.

─ Ademais, eu quero saber: o traidor caminha entre nós? Se sim, quero que se revele agora, ou irá sofrer nas mãos da casta dos Arcanjos. ─ intimou dramaticamente. Miguel poria fim naquilo, mas queria manter sadia as castas celestes.

Rafael levantou-se e todos esperavam que ele iniciasse outra peleja na Tribuna. Talvez por isso, Gabriel antecipou a própria espada na mão. Rafael abriu as asas, antes de olhar uma última vez para Miguel e saltou. Os pés tocaram o piso de mármore, rachando-o em enormes trincos. Embainhou o gládio e saiu pela porta que antes Miguel entrara. Aquela fora a última vez que Gabriel vira seu irmão, São Arcanjo Rafael, o senhor das curas.

─ Rafael! ─ berrou Gabriel do alto da tribuna.


Havia um precipício. De sua ponta, lá em baixo, era notável o belo e vasto jardim do Éden, reservado a mais bela e importante criação de Deus: o homem.

Deus criou o homem a partir de uma singular matéria: o barro. Moldou o homem, assim como os anjos, com as mãos nuas e copiou suas feições, tornando a sua criação semelhante a ele. Quando sua criação estava pronta, Deus lhe soprou o Sopro Divino, concedendo a vida, a alma e o livre arbítrio. E maravilhado de sua criação, Deus criou outro ser, a partir da costela do primeiro homem Adão, dando origem a primeira mulher Eva.

Estacionado no alto do precipício estava Lúcifer, absorto em pensamentos, lembranças e devaneios pretéritos. Os ventos vindo do oeste faziam suas madeixas negras flutuarem atrás das costas do Arcanjo, parecendo que dançavam ao som de uma música silenciosa. As asas estavam estendidas, o ar correndo por entre as penas alvas e majestosas. Ele olhava friamente para o jardim do Éden, sem emitir nenhum som. A mente borbulhava os pensamentos, as emoções, as vontades, as palavras, as ações, as imagens, processando rapidamente as coisas. Ele pensava, raciocinava, organizava os pensamentos e ainda assim, conseguia conversar consigo mesmo, corrigir erros, criar estratégias e acima de tudo, ser perfeito. Perfeição era o que ele mais gostava em si mesmo. A própria robusteza, a maciez da pele e dos cabelos, os olhos azuis, o exímio domínio das lutas, das armas e dos próprios poderes, faziam com que ele se exaltasse tanto, ao ponto de se achar insuperável. Ele ousava pensar: Quem é melhor que eu?, e ai notava-se sua malícia.

Deu mais um passo a frente, estando na ponta do precipício. Focou os olhos na árvore mais imponente vista, a macieira no centro do Éden. Olhou mais algum tempo, enquanto organizava os cabelos num rabo de cavalo no alto da cabeça, que prendeu com auxílio dos próprios fios negros. Agora, com o rosto mais aparente, sua beleza tornava-se assustadora, pura e intocável. Respirou mais profundamente, ponderando-se a apenas ostentar um rosto sem expressão.

O Céu é uma dimensão, que se intersecciona com a dimensão da Terra, que por sua vez se intersecciona com o Inferno. São três dimensões conhecidas, que podem ser imaginadas como esferas postas de forma linear, que em alguns pontos se ligam. O céu está adjacente a Terra, numa dimensão que ocupa o céu visual. Por isso, Lúcifer era capaz de enxergar o jardim do Éden. Porém, se algo caísse do Céu dimensional, cairia para sempre, através daquela dimensão, sem lugar nenhum para chegar, no vazio inóspito e isolado.

O barulho de asas acordou Lúcifer de seus devaneios. À sua direita, ele espreitou por cima dos ombros e viu um anjo pousar a poucos metros de distância. O elemento que a pouco chegara, caminhou rapidamente na direção da Estrela da Manhã e encenou uma reverência exagerada. Dobrou as asas de forma respeitosa e voltou a encarar o Arcanjo. Emendou o cumprimento com um beijo demorado na face, aproveitando para conseguir sentir o cheiro do Arcanjo que era inebriante.

─ Meu senhor. ─ chamou o anjo.

─ Samael, querido, espero ouvir boas novas. ─ pediu Lúcifer, acariciando a face do recém chegado.

Samael era um anjo incomum. Diferente da maioria, não era tão atraente e nem tão poderoso. Sempre dependia de Lúcifer para protegê-lo. Não era bonito, nem o favorito de sua casta. Porém, era um excelente espião, conseguia informações preciosas sem ser notado, era ágil e ardiloso. Famoso por combater desonestamente. Sua presença quase sempre não era bem vinda. Talvez, era apreciado verdadeiramente por Jezebel.

─ Sim... ─ falou, sorrindo. Os dentes eram pontudos e contrastavam com os olhos cor âmbar. ─ Eu estive no Castelo e vi, com meus olhos... Rafael pretende abandonar o Céu.

Lúcifer cerrou os olhos, mas logo esbanjou um sorriso medonho na face, que lhe garantia um semblante que manchava sua beleza perfeita.

─ Se eu soubesse que seria tão fácil tirá-lo da jogada, eu o teria feito antes. ─ confidenciou Lúcifer, voltando a olhar para o abismo. ─ Vendo aqueles pequeninos... vermes ali em baixo, eu fico pensando: a onde eu errei?

Samael ficou confuso. Seria aquela uma pergunta retórica ou não? O silêncio longo de Lúcifer talvez pedisse uma resposta.

─ Não entendo, meu senhor. ─ começou. ─ O senhor é personificação da perfeição. Sua inteligência inspira, o senhor é tão bonito, que minha felicidade se contenta em ver sua imagem. Creio eu, meu senhor, que o senhor não errou em nada.

Silêncio. Lúcifer apreciou as palavras.

─ Então, me diz o motivo por Ele preferir os Homens de Barro do que a mim? ─ Lúcifer quase explodiu em fúria. ─ Quero... saber.

─ Tolice, meu senhor, pura tolice. Mal Ele sabe o que está perdendo.

Lúcifer soltou um muxoxo que parecia o ronronar de um felino, que apreciava uma carícia bem dada. Virou-se para o subalterno, que abaixou a cabeça, como de praxe. Caminhou até a retaguarda do vassalo e apertou-lhe os ombros, massageando-os. Lúcifer tocava suavemente, empregando firmeza nos dedos. Era ligeiramente mais alto que Samael, o que facilitou o cochicho:

─ Meus companheiros... Eles se encontram aptos? ─ perguntou.

Samael provou do seu primeiro arrepio naquele momento.

─ Quase todos, meu senhor, ainda faltam alguns, que logo, logo aderirão à ideia.

Lúcifer regojizou-se, largando Samael e voltando-se para as enormes construções.

─ Hei de me recolher. Não posso levantar suspeitas. Continue e traga insurgentes para o nosso lado. A vitória nos aguarda. Envenene os pensamentos, corrompa os bons, aumente meus números.

Lúcifer caminhou vagarosamente, subiu um lance de escadas e sumiu por uma rua principal. Samael acenou, juntando as mãos na frente da barriga, ficando imóvel. Aproveitou o pouco da malacia que pôde e alçoou voo, parecendo um urubu. Atingiu altura, para poder entrar por uma torre próxima. O silêncio e a harmonia tomou conta do Céu, até agora.

O barulho das lâminas ecoava por toda a praça de mármore e ouro. O som estridente do choque das armas podia ferir os ouvidos. A luz estava fraca e o frio açoitava. Dessa vez, os ventos viam descontrolados por todos os lados. Havia sangue manchando o chão, alguns anjos caídos. Membros dilacerados compunham aquele cenário caótico e assustador. Vários celestiais voavam de lado a outro, parecendo enxames de abelhas. Havia diversas formações, onde os anjos digladiavam-se. Alguns ousavam usar os poderes, outros permaneciam em lutas com as poderosas espadas. Os barulhos soavam titânicos e poderosos, o movimento dos anjos fazia o ar se locomover mais forte. Pareciam que abalavam toda a dimensão. Diferente de outrora, o barulho agora era ensurdecedor. Os gritos de desespero, chamas e água tomavam conta. Aquele era o Paraíso Celeste.

Numa parte da praça, três anjos geobellators, munidos de sua geocinese, moveram uma rocha do tamanho de uma caminhonete, e combinando os movimentos, firmes, lançaram-na contra alguns anjos. Os atacados, devolveram em uma ofensiva violenta e a batalha procedeu. Os choques no solo criavam vibrações e desequilibravam alguns lutadores. Da torre mais alta no céu, surgiu uma nuvem negra, com a formação de milhares de anjos, que voaram num conjunto, lançando uma saraivada de flechas contra os insurgentes. As flechas chocavam-se contra o solo e penetravam contra o mármore, quando não acertavam os alvos. A saraivada levantou uma cortina de poeira, que se desprendeu do solo e pairou sobre o campo de batalha por alguns instantes. Miguel, que liderava esse ataque majestoso, pousou no alto de um colossal obelisco, como ave de rapina. Da lateral da cabeça, o sangue dourado escorria, devido ao rápido embate que tivera contra Lúcifer, minutos antes do Arcanjo da Luz desaparecer.

Um anjo de um casta inferior mirou uma flecha contra Miguel, com a finalidade de ceifá-lo. A flecha zumbiu pelo ar, venceu a distância entre o arqueiro e o Arcanjo e quando estava prestes a acertar o Guerreiro de Deus, ela parou em pleno ar. Estupefato, o arqueiro cambaleou, e notou que todos olhavam ao impasse que ali ocorria.

─ O que esperava, traidor? Acertar meu peito? ─ Miguel riu e sua risada estava carregada de desprezo. ─ Pegue-a de volta.

Miguel lançou a flecha, que ganhou velocidade descomunal e trespassou o peito do arqueiro num baque surdo, abrindo um enorme buraco em decorrência do impacto, por mais que o anjo trajasse uma placa de ouro, que deveria protegê-lo no peito. Miguel ergueu-se no pináculo e com um salto mortal frontal, saltou para o chão. Brandiu a espada e correu para o centro da batalha, dilacerando os inimigos traidores, que voltaram para lutar. Abatia dez ou vinte inimigos a cada movimento, erguendo no ar diversos corpos. Dificilmente viam o Arcanjo, tamanha sua velocidade descomunal, que deixava rastros pelo ar. Ao desviar dos ataques inimigos, Miguel fazia movimentos breves, graciosos e eficazes. Quando estava rodeado por vinte anjos, todos iniciando um ataque, ele ergueu voo e com um vontade desigual, desceu num rasante, cortando ao meio todos os inimigos que teimavam em persistir em uma luta.

─ Desista Gabriel, você não é páreo para mim. ─ esnobou Lúcifer, enquanto analisava o próprio reflexo na lâmina polida da espada.

─ Não sou, Lúcifer? ─ questionou Gabriel, impassível.

─ Não. Você é inteligente, tanto quanto eu, isso não posso negar. O que mais me dói, tolo irmão, é saber que você não está do meu lado. Seria um excelente duque. Governaria comigo.

─ Governar o que? Seu exílio? Governar o nada? O vazio? ─ agora quem zombava era Gabriel. ─ Não, eu prefiro estar ao lado daqueles, que como eu, pensam, estão sãos de mente. Você é uma criatura vil, inescrupulosa, sem limites. Seu maior problema, Lúcifer, é o egoísmo. Você quer ser tudo, quer ter tudo, precisa de tudo, quando o pouco já satisfaz. Seu algoz será seu egoísmo, irmão. E no leito de morte, você verá que o tolo é você.

Lúcifer, que encarava o próprio reflexo na lâmina do gládio, azedou a própria expressão. Queria cortar a língua de Gabriel, mas absteve-se. Abaixou a própria espada e apertou-lhe o cabo, engolindo a raiva. Preferiu fingir não ter ouvido as palavras ousadas do irmão. De onde estavam, era possível ver a maioria dos combates e Lúcifer pôde ver seus guerreiros e insurgentes caírem em batalha, um a um. Cerrou os olhos e refletiu.

─ Eu não serei mandado para o nada. Existe compaixão no coração de vocês, eu sei. Eu assisto o coração de cada um. ─ falou Lúcifer.

─ Compaixão para o Arcanjo Sombrio? ─ era a primeira vez que mencionavam Lúcifer com esse título. ─ Somos anjos, isso é certo, mas os anjos não são benevolentes com aqueles que ousam sujar a imagem de Deus. Deus é superior, Deus é alfa e ômega. E ele nos fez para sempre servimos a Ele e ao que Ele decidisse. E você não respeitou. Você não merece misericórdia, benevolência e nem pena. Você merece exílio. Você manchou a Obra Divina, incitou cobiça nos homens. Imperdoável. Exílio é o remédio para sua rebeldia egoísta...

Lúcifer apontou a ponta da espada para o chão. Respirou profundamente, ouvindo os dizeres do irmão. Correu na direção de Gabriel, lançando os braços para trás. Atingiu uma velocidade desigual e Gabriel o aguardou. O Arcanjo Sombrio fingiu um ataque e parou no instante preciso. Gabriel não. Com um soco de direita potente, Gabriel atingiu Lúcifer em cheio na face, fazendo-o voar contra o olho da batalha. Lúcifer se espatifou no chão de mármore, a boca suja de sangue dourado. A dor tomou conta do corpo do Arcanjo Sombrio, que gemeu e lançou um muxoxo na multidão de vozes, lutas e berros. Os olhos de Lúcifer marejaram, quando com a cabeça colada no chão, foi capaz de ver Miguel o fitando.

Dois anjos musculosos apareceram na multidão e montaram defesa ao redor de Lúcifer, que permanecia com o rosto grudado ao chão e os cabelos desgrenhados grudados a face.

─ Astaroth... ─ chamou Lúcifer, cuspindo um refluxo de sangue dourado. Astaroth era um um anjo de cabelos longos e negros, presos num rabo de cavalo perfeito. ─ Asmodeus... ─ já o segundo era um anjo de cabelos ruivos, pele alva e olhos azuis.

Gabriel pousou perto dali, fitando os dois anjos protegendo Lúcifer. Falou:

─ Um Serafim e um Querubim arrastados por um ideal de mero capricho. ─ riu moderadamente. ─ Interessante.

Miguel desceu um lance de escadas. Olhou para Lúcifer, adquirindo um olhar de arrogância, que ninguém havia presenciado até então. Lúcifer amedrontou-se é claro. Se os dois, Gabriel e Miguel quisessem, matariam Astaroth e Asmodeus em dois segundos e depois dilacerariam ele em mais um minuto. Miguel notou que algumas batalhas ainda persistiam. O número de rebeldes era grande demais ainda.

─ VEJAM. ─ invocou Miguel, num tom grave que ecoou, talvez, pela dimensão inteira. ─ O líder da Insurreição, Lúcifer, a Estrela do Alvorecer, caí diante de nós. Ele ousou profanar as palavras de nosso Pai. Inadmissível. ─ Miguel desceu um degrau.

As batalhas pararam. Nenhum anjo ousou mover-se diante da soberania de Miguel, que adotara uma expressão tão sombria, que todos acharam estar no ápice de um ataque.

─ Aqueles que são movidos pela vontade do Altíssimo, encurralem os insurgentes, e levem-nos para diante de seu senhor.

O grupo de elite, os Erelins, liderados pelo poderoso Brock, se juntaram e começaram a jogar, empurrar, mandar diversos anjos para o centro da praça. Lúcifer estava no meio do enorme grupo, que rapidamente chegou na casa dos milhares. Os anjos também carregaram as carcaças e corpos de anjos-traidores e os jogaram ao grupo. Quando o último anjo vivo entrou entre a horda nefasta, Miguel ergueu a mão e profeticamente disse:

─ Eu não vos julgarei e estou longe de fazer isso. Sou um objeto de Deus e somente Ele poderá fazer o papel de Julgador. ─ Miguel embainhou a lâmina e olhou para Lúcifer por uma última vez. ─ Irmão, espero que tenham refletido bastante, pois não há perdão pelo que fez. Adeus.

Lúcifer estranhou a atitude do irmão, pensou em questionar, mas nada fez. Ele viu Miguel fechar os olhos e ergueu-se de sobressalto. As dores estavam sumindo. Ele afastou alguns anjos aliados e ficou na frente do grupo. Estavam rodeados dos anjos que obedeciam a Miguel. Miguel fechou os olhos e algo magnífico aconteceu.

O céu clareou fortemente, uma luz desceu com imponência descomunal. Dela, emanava um calor prazeroso. Alguns anjos fechavam os olhos e respiravam fundo, sentindo aquele poder indescritível. Lúcifer bem sabia o que aconteceria naquele instante, por isso, aquilo seria mais doloroso para ele. Miguel voltou a abrir os olhos, mas eles não eram os mesmos. Dos globos oculares emergia uma luz poderosa, assim como da boca. Miguel flutuava alguns centímetros do chão, sem auxílio das asas, quando a voz saiu:

─ Lúcifer... ─ evocou o enunciador.

Lúcifer deu um passo para trás.

─ Pa-Pai? ─ gaguejou.

O corpo de Miguel, tomado por Deus, flutuou para a frente. A falta de expressão era mais assustadora do que o semblante de desprezo que Miguel adotara.

─ É demasiado triste assistir uma das minhas melhores criações debandar para as trevas e ignorar ensinamentos do próprio Pai. ─ a voz estava triste, mas soava poderosa. Alguns anjos que defendiam a Deus, ficaram cabisbaixos. Os guerreiros de Lúcifer, mostravam-se intolerantes às palavras do Divino. Lúcifer entristeceu-se, deixando Gabriel confuso. ─ Sua insurreição, seus atos, suas atitudes e seus pensamentos perversos, filho, só lhe reservam um lugar. Aqui, agora diante de todos os meus filhos e filhas, eu o condeno ao inóspito e trevoso Inferno. Você, Lúcifer, era a luz que existia em meu coração, o fulgor que alimentava esperança em milhões e hoje, não é mais nada.

Lúcifer engoliu em seco.

─ Mas Pai, tudo o que fiz... Foi pelo Senhor. E eu vi que o Senhor se orgulhou tanto da criação dos... ─ pausou, refletiu e escolheu a palavra certa. - ...homens, que facilmente se esqueceu de nós, e eu queria seu amor, queria que se orgulhasse de mim.

─ Como ousa? Falar de traição, maldade e dizer que foi por mim? Ora, Lúcifer, você não é uma criança tola. Um ego inflado não nos leva a lugar algum e eu sei, que em seu íntimo, ser bom não é suficiente. Você queria ser o melhor e clamar a si mesmo como deus. Mentir é uma das piores coisas, mas mentir para si mesmo é pura tolice.

Lúcifer fechou os olhos.

─ Onipresente, onipotente e onisciente. ─ falou Lúcifer em tom baixo.

─ Sim, exato, filho. Você, que outrora, brilhava como a manhã do mais belo dia, e caminhava entre os seus como um perfeito anjo, estará condenado a viver longe do Meu monte, do monte de Deus. Estará condenado a andar no Inferno junto de sua horda nefasta. E eu amaldiçoarei cada um de vocês. Que assim seja.

Miguel, dominado pelo poder de Deus, soprou fortemente. As firmações do local começaram a tremer, enquanto alguns anjos urravam. Lúcifer tampou a face com auxílio da mão e olhou para seu Pai, incrédulo. O chão começou a ceder, alguns dos anjos traidores perderam o equilíbrio e caíram. O mármore que compunha o chão cedeu-se por inteiro e onde houvera chão, agora era vazio. Milhares de anjos caíram, alguns bateram asas, para tentar escapar, porém, uma força invisível os succionava para baixo. Lúcifer foi um dos últimos a cair. Quando o último traidor não aguentou mais a força do Altíssimo e foi-se em queda livre, Deus parou o sopro. Fechou os olhos e abandonou o corpo de Miguel, deixando-o livre.

Sucção, dor, fogo, escuridão, humilhação, luzes cegantes, trevas. Lúcifer caía violentamente, não conseguia recompôr-se, muito menos parar a queda. Ele via diversos anjos berrando ao seu redor, todos aliados à sua causa e via o fogo consumindo a carne, queimando as penas que outrora foram alvas e lindas. Sentiu na pele o fogo açoitar-lhe, queimando-o. As asas perderam todas as penas e a luz passou a cegar-lhe os olhos. Sentiu várias forças agindo sobre seu corpo, e na mente, as palavras de seu próprio Pai, martelavam sua cabeça. As lágrimas começaram a sair pelos olhos e ele se viu sozinho, na queda, um único elemento despencando em alta velocidade. Lúcifer sentiu uma sensação estranha, visualizou as estrelas no alto do cosmo. Caiu através de um túnel de nuvens, que se fecharam aos seus olhos e a luz dos céus se apagou pela última vez. Queimou novamente e sentiu seu orgulho ferido, sentiu-se incapaz, fraco e odiado. Berrou na sua voz angélica e talvez, todos puderam ouvir seu sofrimento. A voz transmutou-se e o timbre sobreposto, assustador e grosso ecoou. Berrava como um demônio. A dor, o sofrimento, a ira, a raiva, o ódio. Os sentimentos se misturaram e Lúcifer virou uma bola de fogo. Caiu violentamente na Terra, transpassando o solo, finalmente chegando ao Inferno, desacordado.

E assim, o brilhantismo de um dos melhores Arcanjos fora apagado para sempre. Lúcifer, naquele instante, passou a ser um inimigo de Deus, independente do lugar de onde viera. E sob as pedras, Lúcifer edificou sua morada.


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Notas finais do capítulo

Lúcifer ♥



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