A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 39
Um prólogo após o fim




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Quando Sabrina chegou em casa Mia ainda não tinha terminado de ajeitar Sorah dentro do tubo. Na verdade, mal tinha começado.
Dart estava ao lado dela, mirando a lifing com obsessão enquanto arfava sem parar. Os olhos ainda vertiam lágrimas sem cessar um segundo. Ele murmurava palavras como “por favor, Sorah, viva de novo, viva de novo, volte Sorah” como se fosse uma prece.
Belthor, Mirian e Sabrina também pararam para ver os procedimentos de Mia. No momento ela havia posto o corpo da lifing ainda gelado sobre uma mesa. Estava pensando sobre onde ligar os fios que passariam energia a ela. Não podiam ser colocados em qualquer lugar. Seria inútil.
Pegou uma caneta e marcou cerca de vinte cinco pontos possíveis.
Depois disso, Mia pediu a Belthor que se retirasse, e mandou Dart virar-se de costas, pois iria despir Sorah. Colocá-la no tubo com todas aquelas roupas era perigoso. Elas poderiam receber energia no lugar de Sorah. A deixaria apenas com pequenos panos como se fosse biquíni, só para não deixá-la nua.
A lifing usava por debaixo da armadura e da camiseta preta, as faixas que encobriam todo seu tronco, já gastas pelo tempo. Nas costas, onde eram realmente úteis, havia manchas de sangue.
Mia foi desenrolando os panos, percebendo que estavam incrivelmente apertados, como se fosse um tipo de punição.
Sabrina aproximou-se conforme as escrituras iam ficando mais a mostra. Logo elas podiam ser lidas por qualquer lifing. Mas a humana não sabia nada sobre elas até então.
- O que é isso? – assustou-se.
Pareciam desenhos, mas eram letras da língua lifing. Não assemelhavam-se a marcas de cortes. Eram grossas como queimaduras recentes. Ao redor mantinha-se um vermelhidão de pele machucada. Parecia doer muito. Inclusive porque as faixas que cobriam diretamente o local estavam manchadas com muito sangue. Aquele fardo doía não só em sua mente, mas em seu corpo também. Começava um pouco abaixo do braço e acabava apenas perto da cintura, em quatro linhas que cobriam toda a largura das costas.
- Acho que pode explicar a ela melhor que eu, não é Dart? – sugeriu Mia.
Mirian cobriu Sorah com as vestes da própria lifing para que o rapaz pudesse se virar.
Ele olhou sentindo um grande aperto no peito. Sorah estava dobrada pra frente como se estivesse morta, completamente inválida. As escrituras, a prova de que jamais poderia se casar com ela estavam ali, à mostra.
Dart tocou a pele machucada da lifing e recitou em voz alta:
- Kyu Ryaku Ignati, thron nest hantiji, Ygnis Nandeyo tore ware, Trhon ne yo mataguiri… - Ele baixou a cabeça recebendo aquelas palavras como uma estaca em seu peito - A décima quinta geração, a criatura perfeita, um único reino será formado, e esta criatura reinará.
- O que significa exatamente? – perguntou Mirian.
- Os dois primeiros lifing criados por Thorus deram a luz à seis filhos. Três homens e três mulheres. Um homem e uma mulher com poderes de fogo. Outro casal com poderes de gelo. E os dois últimos com poder de controlar a energia bruta, ou seja, sem elemento. Houve uma briga enorme entre os três casais e eles se separaram pelo território lifing. Suas energias eram tão grandes que a parte de terra que controlavam assumiu a característica de seus poderes, formando então o que hoje são os reinos lifings. Acontece que os pais desses seis lifings não queriam que seus filhos brigassem. Como punição pela desunião, marcaram em cada filho homem estas mesmas escrituras. Escreveram num livro a lenda toda, como haveria de acontecer. Como último gesto, morreram colocando suas forças todas nas marcas das costas dos filhos e naquele livro, tornando-os reais, para que realmente acontecem, e as escrituras fossem hereditárias. A lenda diz que após quinze gerações nasceriam três criaturas perfeitas, uma para cada reino. Estas criaturas lutariam até que só sobrasse uma. Esta uma governaria todo território lifing. – Dart respirou após tudo que disse – Sorah e eu somos herdeiros décimo quarto.
- Você também? – assustou-se Mirian.
Dart afirmou com a cabeça. Em seguida tirou a camiseta e desenrolou as faixas de seu tronco. Exibiu suas escrituras com certo pesar. Eram idênticas às de Sorah.
- Uso as faixas não só para escondê-las. Mas também porque sangram às vezes. Doem como ferro em brasa tocando a pele.
- Mas se são ambos herdeiros…
- Não podemos nos casar. – completou Dart cheio de rancor, já se virando para que Mia continuasse os procedimentos.

                              ***

Sabrina deitou a cabeça de volta no travesseiro e respirou fundo, mirando os olhos para o teto, apesar de o pensamento estar longe. O corpo todo estava dolorido, dificultando qualquer movimento. A energia gasta, o medo, a adrenalina, a força. Tudo isso agora fazia falta e doía cada um de sua forma. Sentia como se os ossos quisessem se alargar, um efeito do extremo gasto de energia. O coração ainda batia forte só em lembrar da ira nos olhos de Zigor. Dava um aperto no peito recordar dos olhos frios de Sorah indicando que abandonara este mundo. Enchia-se de esperança a cada suspiro, rezava para que ela ficasse boa, para que um dia pudesse conversar com ela novamente. Também era horrível olhar nos olhos tristes de Dart, agora simplesmente sem brilho, sem vida, sem Sorah. Ela estava flutuando num líquido estranho, dentro de um tubo de vidro, recebendo energia diretamente através de fios. Era o mesmo recipiente que guardou as espadas elementais meses atrás. Os únicos aparelhos que podiam hoje dar qualquer tipo de esperança à lifing. Pensou em Lucas, Haji, ou quem fosse. Algo queimava dentro dela. Sentiu uma vontade torturante de revê-lo.
Mas acima de tudo, estava feliz.
Fizeram o impossível, salvaram toda a terra, foram fortes o suficiente para derrotar um mayle, o tipo de criaturas mais poderosa que existe. Concretizaram seus destinos como guardiãs da Lágrima Escarlate. Mesmo que ainda lhes partisse o coração lembrar de Nicka e Hebel, que não puderam ver tanta felicidade.
Mirian abriu a porta do quarto com um sorriso simples na face. Era um jeito que adquira depois de tudo. A tristeza pelos que partiram, misturada à alegria de vencer. Não estava rindo, mas pelo menos não chorava.
- Mia está nos chamando para o café da manhã. – anunciou.
Sabrina sorriu com os olhos enchendo-se de lágrimas. Levantou-se com pesar e caminhou até a porta, pensando no fato de tudo ter simplesmente acabado. A quase morte de Sorah era só uma extensão de história, um capítulo a mais que viveria.
Era um cenário engraçado. Belthor batia a ponta do dedo contra a mesa, em extrema ansiedade, pois Íris ainda estava na Ilha Eid junto à Benfred desde o dia anterior. Ao seu lado, Mia simplesmente sorria uma felicidade tão simples e frágil que se fosse sólida, seria uma bela e fina escultura de vidro. Uma pequena pedrinha poderia estilhaçá-la.
Essa pedrinha já tinha mira pronta.
- Onde está Dart?
Não era preciso responder. Sentara-se em frente o tubo de Sorah, no meio da escuridão do porão, tendo seu rosto iluminado pelo líquido no qual ela flutuava, pálida e inconsciente. Dali não tinha saído até então.
Sabrina puxou uma cadeira e se sentou entre Mirian e Belthor. A comida já havia sido servida.
Mia ergueu seu copo propondo um brinde.
- À nossa vitória – saudou com alegria.
- À Sorah. – propôs Sabrina erguendo seu copo.
- À Nicka e Hebel. – Lembrou Mirian.
Belthor foi o único a não se pronunciar. Ficou ali parado observando a comida com os olhos vagos e nervosos, batucando na mesa.
- À nossa nova mayle. – incentivou Mia, tentando chamar sua atenção.
Ele finalmente olhou para o grupo, dando conta do que se passava. Ergueu o copo sem muito ânimo, brindou e pousou a bebida de volta na mesa, voltando o corpo para trás.
- Quer tirar essa cara de quem comeu e não gostou? – pediu Mia incomodada – Agente venceu, poderia ser pior!
- É, poderia. – admitiu o único homem na sala – Benfred Loire poderia ser Eriol tentando conquistar Yume novamente! – gritou cheio de ironia na voz.
Sabrina teve de buscar na memória qualquer menção a Eriol. Não encontrou nada. Mas Mia sabia perfeitamente a história que rondava esse nome. E entendia por que Belthor fizera essa ironia. Eriol era um mayle e, há muito tempo, antes da primeira batalha contra Zigor e até mesmo da existência dos guerreiros, este se revelou e acabou se apaixonando por Yume. Tentou conquistá-la, mas por medo de acabar sendo tomada pela maldade dele, acabou destruindo-o.
- Deixe de besteiras! Nem fale uma coisa dessas!
Belthor suspirou resignado. Por que afinal ninguém podia simplesmente entender? Odiava pensar que Íris estava sozinha com outro homem. E enquanto ela não estivesse ali, ao seu lado, comemorando junto dele, não teria terminado nada.
No meio da janta, Belthor, completamente desanimado, empurrava a comida de um lado para o outro, sem prestar a menor atenção no que as outras falavam. Uma palavra formara-se em seu prato. Palavra tal que lhe causava ânsia. “Loire” estava agora com Íris. Com SUA Íris. As letras todas distorcidas feitas farelo de pão dançavam em sua cabeça em ordens variadas. Até que a ordem correta finalmente tirou todo o sangue de sua face, tornando-o branco e estático. Seu queixo caiu e até sua respiração parou naquele instante.
No mesmo minuto, Dart escancarou a porta, batendo-a com força na parede. Estava suado e de respiração alta. Devido à grande quantidade de tempo que ficara sentado em frente à Sorah sua perna estava dormente e ele mancava mal suportando o próprio peso. Os olhos vermelhos e inchados davam a notar que não fora nada pouco o que chorara. Ele era, com certeza, o que mais sofria. Não importava que Zigor fosse destruído. A única coisa que realmente fazia alguma diferença era Sorah. E ela estava quase morta dentro daquele tubo. Não havia vitória para ele. Só fracasso e inutilidade.
Mas no momento algo mais ocorrera. Algo maior, algo que paralisaria o coração de todos.

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Notas finais do capítulo

Agora sim acabou. Continuaria no volume dois, mas nunca escrevi.



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