A Lágrima Escarlate escrita por SorahKetsu


Capítulo 3
A estranha criatura


Notas iniciais do capítulo

A estranha criatura



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Acordou, mas permaneceu de olhos fechados. Imaginou que Lia estivesse atrasada em levá-la à escola, pois nunca acordava sem alguém para despertá-la. Aproveitou e assim ficou. No entanto estava desconfortável, a cama estava dura. Não, não estava na cama. Estava no chão. Achou estranho e abriu os olhos. Sua primeira visão foi a copa de uma árvore muito verde. Assustou-se e ergueu o tronco para olhar ao redor.

Ao apoiar-se em seu braço, sentiu uma forte dor em seu pulso esquerdo. Lembrou-se de ter caído em cima dele no museu. Então aquilo era verdade? E se era, onde estava agora?

Levantou-se apoiada numa árvore e procurou sinal de civilização.

Não havia sinal de vida humana em lugar nenhum. Apenas árvores e o mato. Tudo era de um verde vivo, úmido e selvagem. Ouvia alguns pássaros cantarem de forma estranha, e um filete de formigas carregando folhas para dentro do caule de uma das árvores. Nem Mirian estava por perto. Apenas sua mochila carregada de mantimentos. Agradeceu por isso.

Começou a caminhar, com a mochila nas costas, desesperada. Seus passos eram difíceis, pois o medo a invadira. Ia e voltava sem noção nenhuma de onde estava. Caiu diretamente ao chão, ao tropeçar numa pedra. Levantou-se com lágrimas já misturadas ao suor e a sujeira da terra onde caíra. Parou cansada e jogou-se no chão sentada, encostando-se numa árvore, desistente. Aonde viera parar?

- Mirian! – gritou, procurando pela menina. – Mirian! – chamou novamente, tendo o desespero tomar conta de seu corpo. – MIRIAN!

Provavelmente só ela viera parar naquele lugar estranho. Não havia, em sua cidade, qualquer tipo de floresta ou bosque como aquele. A idéia de ter se teletransportado para o meio do nada lhe parecia tão absurda quanto realmente era.

E de repente, para deixá-la ainda mais nervosa, ouviu o som de pisadas fortes. Parecia um dinossauro caminhando em sua direção. Olhando ao redor irrequieta, não viu nada. Levantou-se e começou a virar em torno de si mesma, protegendo-se. Se bem que os passos da tal criatura eram tão barulhentos que sozinha não tinha a menor chance de se defender. Mesmo porque, nada com menos de uma tonelada pisava tão sonoramente.

Seu coração foi acelerando, no mesmo ritmo que sua respiração. Estava quase cega de medo. Suas pernas travando e ela com dificuldade para raciocinar e se acalmar, dizendo a si mesma que aquilo simplesmente não podia estar acontecendo. O que faria um barulho desses? Um elefante? Elefantes vivem em savanas na África! Claro que naquele momento nada disso teve tempo de vir à sua cabeça.

Assim que o som ficou mais alto, dando a impressão de que a coisa que o estivesse produzindo estava realmente próxima a ela, o barulho parou. Sua respiração foi acalmando-se, apesar de ainda estar inquieta. Sua cabeça doía com aquilo. Devia ter sido só sua imaginação.

 

Seus pensamentos se congelaram quando, irrompendo o canto dos pássaros, um urro ensurdecedor soou atrás de si.

 

Não olhou para trás, nem ao mesmo pensou no que podia ter feito aquilo. Simplesmente correu. E com o medo, com a adrenalina entupindo suas veias, o sangue foi levado aos seus membros para aumentar sua capacidade de fugir. O cansaço sumiu, os pensamentos sumiram, seu corpo estava agindo por conta própria, em seu instinto de sobrevivência. Jamais correra tão rápido. Quase caía, pois a coisa que a perseguia, ao correr, fazia o chão tremer com seu peso. Urrando, como um estímulo a mais que fizesse Sabrina não parar, não olhar para trás.

Conforme avançava na floresta, a densidade de árvores foi diminuindo aos poucos, dando a impressão de que estavam acabando. Seguiu nesta direção.

Correu por mais dois minutos, sempre com a criatura a menos de um metro de alcançá-la, antes de chegar num lugar onde as árvores cessavam e o chão era ocupado por uma grama alta, na altura de seus joelhos.

Virou a cabeça para trás, para ver o que a perseguia. A imagem daquela coisa passou rápido por seus olhos, pois se viu indo ao chão e tendo seu corpo e vestes invadidas por uma sensação gelada. Ao ver o que acontecera, percebeu que havia caído num riacho raso em que, sentada, a água atingia seu pescoço.

Só então pôde ver exatamente do que estava fugindo: uma enorme criatura gorda, diferente de tudo que já vira antes. A pele era verde musgo, rachada em alguns pontos. A cabeça parecia ter sido pregada no meio da banha à pauladas. Os olhos tinham apenas duas pequenas pupilas negras. A boca era uma imensa abertura cheia de dentes afiados, com os caninos iguais a de javalis, saindo e chegando à altura dos olhos. Devia medir pelo menos dois metros.

O monstro parou de correr ao ver que sua presa estava encurralada. Sua vítima tinha um cheiro de sangue que estimulava seus instintos. Seus olhos de horror lhe agradavam. Toda corrida valera a pena. Estava cansado, suas pernas mal agüentavam o corpo pesado, mas sua recompensa estava ali, como um coelho pronto para ser devorado por um lobo. A humana seria devorada em poucos segundos, mas o alimentaria por um bom tempo.

 

Num instante, Sabrina estava a ponto de ser agarrada pela enorme mão daquela criatura. Apesar de pressionar o próprio corpo contra a margem do rio, não havia a mínima chance de se salvar. As pernas não pareciam, mas estavam extremamente cansadas. Apenas para andar seria difícil. Levantar-se e correr rápido o suficiente não só era impossível como não adiantaria de nada. Além dela, as pernas tinham que suportar o peso extra de sua mochila pesada. Não havia salvação.

 

No outro instante o monstro estava fatiado, dividido em duas partes iguais, cortadas na vertical.

 

Naquele exato momento, um cheiro de carne podre invadiu suas narinas e Sabrina teve de agüentar para não vomitar. Um sangue escuro foi escorrendo até misturar-se à água do riacho. No caminho por onde o sangue passou, as plantas iam caindo lentamente, sendo dissolvidas. Os órgãos espalhados pelo chão soltavam uma fumaça quente e mal cheirosa, que também corroia tudo o que tocava. Somente a visão disso foi suficiente para tudo que estava em seu estômago parecer querer sair, rodando dentro dela.

Procurou por quem havia feito aquilo, mal acreditando em tudo o que estava acontecendo. Não precisou olhar muito para ver uma garota logo atrás dos restos do monstro, com uma espada em punho, inteiramente ensangüentada.

A tal garota era alta. Talvez medisse mais que um metro e setenta. Tinha feição agressiva, nariz fino e um olhar frio. Uma beleza estonteante, desde o cabelo negro e liso, indo até o meio das costas, até o corpo bem delineado como sonhavam muitas modelos. Vestia uma camiseta preta e larga, bem comprida. Um cinto fora preso cerca de trinta centímetros antes do término da camiseta, na cintura, dando a impressão que a parte que sobrava abaixo do cindo era uma saia separada, pois ia até a metade da coxa. Porém ainda usava uma calça larga presa com cintos justos à perna, pouco antes do joelho. Os pés estavam descalços. Era jovem, provavelmente com quinze, dezesseis anos no máximo. Mas era bela de sua própria forma agressiva, como poucas garotas, ou mesmo modelos que já tinha visto. A Sabrina pareceu ser uma pessoa nada simpática. Mas estava agradecida por tê-la salvo.

A garota olhou diretamente nos olhos de Sabrina e começou a caminhar em sua direção. Não imaginou o que ela poderia querer. Pisou sobre os restos do monstro que tinha acabado de matar, tendo o pé entrado em contato com aquela coisa que corroia as plantas sem ter o mínimo efeito nela.

- Obrigado… por me salvar… - arriscou Sabrina – Onde estou?

Levou um susto ao ver mais de perto, os olhos da tal garota. Eram amarelos. De um âmbar vivo, simplesmente impossível de existir. E se assustou ainda mais quando ela tomou uma expressão de aversão com relação à Sabrina.

- Não acha que te salvei, não é humana?

Sua voz era fria e penetrante. De uma agressividade sobrenatural. Sabrina saiu da água, dando passos para trás, com medo da garota.

- Você… matou essa… coisa… que me perseguia… - justificou Sabrina, sem tirar os olhos da espada ensangüentada da menina.

A garota debochou sem mudar sua face inexpressiva.

- Então você realmente acha que eu te salvei? – perguntou a garota, sem mudar a tonalidade da voz, nem a expressão do rosto - Eu achei que você apenas estivesse aí parada porque sabia que até você se levantar e começar a correr sua cabeça já estaria decepada… - pareceu realmente decepcionada ao dizer isso.

Um calafrio sacudiu seu corpo dos pés à cabeça. Onde estava afinal? E porque até quem parecia supostamente normal queria matá-la?

-Você… deve estar se confundindo… - supôs Sabrina, já pensando na melhor forma de se virar e correr para o mais longe dali.

- E por que eu estaria? Você é humana, eu devoro humanos, não há engano nenhum nisso.

E de repente, Sabrina se sentiu como uma bola de futebol, sendo passada de um lado para o outro, Primeiro o monstro a perseguindo, e agora aquela garota canibal, que matara o monstro só para não dividir o almoço.

Virou-se para fugir, sem encará-la diretamente. Deu dois passos e ela apareceu diante de seus olhos. O olhar dela era frio como gelo. Sem expressão de nada, nem de raiva, nem de fome, nem preocupação ou qualquer outra coisa. Parecia estar em outro lugar, com apenas seu corpo ali, para devorá-la.

- Em qualquer outra ocasião, correr atrás de um humano nojento faria meu sangue ferver. Mas hoje preciso me apressar. – lamentou, com a maior serenidade possível – Sua morte é necessária, humana.

Logo em seguida, colocou a espada diretamente no pescoço de Sabrina, que sentiu o metal gelado sujar de sangue sua garganta. Segundos depois, o local ardeu, e ela se lembrou da corrosão causada pelo sangue do monstro. Não havia sido risco de morte o bastante para até aquele momento?

A garota fixou o olhar de repente, no pescoço de Sabrina. Parou de pressionar a espada e adquiriu uma expressão séria, preocupada, incrédula. Num movimento brusco, jogou a espada no chão e levantou Sabrina pela gola da camisa, com uma face de raiva, ódio, ou qualquer outra coisa que dava medo em qualquer criatura.

Sabrina já tinha visto muitas vezes na televisão quando alguém levanta outra pessoa pela camiseta. Mas sempre lhe pareceu tão macio e indolor que naquela hora não acreditou na dor que sentira, na raiva sendo transbordada pelo rosto e pela força daquela garota. Sentiu medo, sentiu que sua vida poderia ser tirada a qualquer minuto.

- Onde conseguiu isso!? – gritara a garota sacudindo-a no ar. – Onde conseguiu esse colar!?

- Eu não sei… minha mãe me deu! – respondeu Sabrina, esforçando-se para falar.

- Quem é você, humana maldita! Verme, quem é você? Você é a protegidinha Nicka? Ou quem sabe a tão esperada Mirian? Ou pior! A toda amada Sabrina! Qual das três humanas malditas você é!?

Sabrina sentiu um frio percorrer sua espinha e um temor enorme tomar conta de si com relação a dizer seu nome. Por que aquela garota a conhecia? Como sabia seu nome? E pelos céus, o nome de Mirian!

- Sa… Sabrina… - murmurou ainda erguida a um palmo do chão com a força de apenas um braço da menina.

- Sabrina, não é? A bestinha, uma das protegidas de Belthor! Como é lá do outro lado, humana inútil? Como é viver sem se preocupar em morrer? – berrava a garota, sacudindo-a enquanto isso.

- Eu… não sei do que está falando… de onde… de onde você me conhece?

- Você ainda deve ter a marca do nosso último encontro. Não é de se espantar que não se lembre de mim. Foi há quase treze anos! Quando aqueles malditos guerreiros te levaram daqui para sobreviver, para que EU não às matasse!

A garota pôs Sabrina no chão e usou a espada para cortar a manga da camiseta de sua escola. “Lia vai ficar furiosa”, pensou, antes de apagar isso da mente, achando besteira perto do que estava acontecendo com ela.

Deixou à vista a ferida que tinha desde sempre, vermelha, cicatrizando da última noite que sangrou.

- Fiz isso em você como forma de se lembrar de mim, humana! Claro, minha intenção era te matar. Mas aquele maldito do Belthor te salvou. Vejo que finalmente nos lisonjeou com sua volta, não é humana? Finalmente nos considerou dignos de seu poder! Mas o que é estranho, é que pra mim você não passa de uma humanazinha inútil e fraca!

- Eu não sei o que está acontecendo, não sei por que você me conhece, não sei que lugar é esse! – desesperou-se Sabrina, começando a chorar de nervoso.

- Então Belthor não te disse nada antes de te mandar de volta pra cá, não é?

- Quem é esse Belthor de quem fala!? E como assim, “de volta”? Eu nunca estive aqui!

- Belthor nem ao menos se apresentou a você. Mas que falta de caráter… E nem se preocupou em eu te procurar e te matar… se bem que nem foi necessário, você veio correndo até mim. E sim, você já esteve aqui. Nasceu nesse lugar. Mas foi mandada para o outro mundo para terem a certeza de que resistiria viva até ter idade para lutar. A toda poderosa guardiã da Lágrima Escarlate aqui, chorando aos meus pés… que vergonha… É isso que representam os humanos, essa raça inútil e fraca!

- Você diz isso como se não fosse humana!

- É porque eu não sou! Sua inútil, verme, humana maldita! Eu sou uma lifing, com muita honra! Estou no topo da cadeia alimentar, e logo abaixo vem sua rele! Mas é claro, você nem ao menos sabe o que é um lifing. O lugar pra onde você foi levada provavelmente é infestado da sua raçazinha maldita! Mas isso não interessa. Agora vai ser assim. Você vai me levar à Lágrima Escarlate. Vai ver eu me tornar a criatura mais poderosa dessa terrinha maldita! E o primeiro humano que destruirei será Belthor!

Sabrina tinha o corpo tomado de medo. Dava passos para trás, numa tentativa retraída de fugir. Mal prestava atenção nas palavras da menina monstro. Chegou a ouvir algo relacionado a uma lágrima, não entendeu bem. Só queria acordar daquele pesadelo.

A garota a segurou com agressividade pela manga da camisa e foi puxando-a enquanto caminhava. Não conseguia andar direito, tamanho receio e apreensão que tomavam conta de seu corpo.

Subiram uma grande colina até chegar num casebre de madeira. Atrás dela podia se ver fumaça e um delicioso cheiro de peixe frito invadiu as narinas de Sabrina assim que se aproximou.

         Deram a volta na casa e encontraram um homem corpulento e extremamente musculoso sentado em frente uma fogueira, onde estavam sendo feitos uma cesta de peixes. De frente para esse homem e de costas para Sabrina e Sorah estava sentado um rapaz.

         - Mas que surpresa, Sorah… trouxe uma humana ainda viva… – O rapaz se virou, revelando seus olhos lindamente azuis e um rosto perfeito.

         O rapaz tinha o cabelo azul escuro, quase preto, o que a chocou um pouco de início. Curto, liso, com mechas caindo rebeldemente pela face. Não fazia questão de afastá-los. Os ossos do rosto eram bem desenhados, fazendo-se ênfase. A pele perfeita, sem nenhum erro de natureza, dava a impressão de ter sido um dia, clara. Porém agora é bronzeada pelo sol suavemente, como se o mesmo tivesse lhe feito carinho. Os olhos eram de um azul marinho, simplesmente perfeitos. Grandes, com um pouco de influência oriental. O nariz, uma escultura que a natureza fez questão de fazer. Ao abrir a boca pra falar, ainda foi possível notar que seus dentes eram brancos, retos e alinhados. Tinha os braços muito fortes, tal como o peito. Porém sem exageros, como se os músculos ainda estivessem se formando num corpo jovem. Cintura fina e com o famoso tanquinho. Sabrina apostou que suas pernas também deviam ser muito bem torneadas... Vestia uma espécie de colete preto com adornos dourados que deixava aparecer os braços fortes. Suas calças eram pretas, de um pano grosso. Sabrina poderia simplesmente esquecer de Lucas e ter a certeza de que era o garoto mais bonito que já vira.

- É uma guardiã. – disse Sorah. – A encontrei enquanto praticava. Ela me contou que a Lágrima se partiu.

Sabrina não entendia o tom de voz que Sorah usava. Era calmo e ao mesmo tempo cheio de ódio. Como se dissesse que todas as criaturas deveriam se curvar diante dela. O rapaz a sua frente fazia a mesma coisa, mas com um tom mais suave.

         - Mesmo assim, uma humana é sempre uma humana.

         O homem que estava sentado a frente do garoto ignorou desde o começo a presença de Sabrina. Continuava concentrado apenas em assar os peixes.

         - Dart, essa humana pode nos dar o poder de um mayle. Não é isso que você quer?

         - Não. Sabe muito bem o que eu quero.

         - Pois a mim só interessa o poder.

         - E quando o tiver, o que fará? – o homem entremetera-se na conversa de forma que assustou Sabrina. Tinha um tom de voz grosso e ameaçador.

         - Vou destruir todos os humanos, é claro. – respondeu Sorah.

         - Isso lhe parece certo?

         - Obviamente. Mas é muito fácil pra você discordar. Afinal é humano, não é? – Sorah continuava com a mesma voz serena e calma, carregada de raiva.

         - Acha que lifings são muito melhores que humanos, não é?

         - Eu acho? Olhe só para você. Olhe só pra essa cria de humanos. – e apontou Sabrina – Olhe bem pra ela e diga: há alguma mínima comparação entre nós?

         - CALE A BOCA, GAROTA! – o homem se levantou em fúria e acertou um soco no rosto de Sorah. - Saia já daqui!

Ela olhou cheia de ódio e fúria para o gigantesco humano. Um filete de sangue escorria do canto de sua boca, mas ela logo o limpou, virando-se para partir dali.

Dart a seguiu com os olhos. Logo se levantou e foi atrás dela.

- Me desculpe por isso. Acho que te assustei. – Agora a voz dele parecia bem mais calma e suave. No rosto uma expressão de bondade passava tranqüilidade a Sabrina. Coisa que há muito não tinha. - Meu nome é Zieg, e o seu?

         - Sa-Sabrina…

         - Muito prazer, Sabrina. Você é humana não é? Claro que sim... Pergunta tola. Se não fosse, Dart perceberia de longe. Mas você parece tão assustada! De onde veio?

         - Eu não sou deste lugar. De onde vim não existem monstros, nem esses mayles ou lifings. Eu só quero ir pra casa.

         - Você é deste lugar sim, garota. Você nasceu nele. Foi para o mundo prometido junto com outros humanos e agora voltou.

         - Não entendo...

         - Não se preocupe, eu lhe explicarei tudo. É realmente uma honra poder explicar isso pra guardiã da lágrima. Aqui, na Ilha Eid, a harmonia da terra era mantida. Toda a ilha sempre foi dividida em duas partes, o território dos lifings e dos humanos. Mas como criaturas poderosas e sanguinárias que são, a única lei era que o mais forte sobrevive. Assim, a população era muito pequena e o território deles sempre foi bem menor. Mas a mayle Yume, durante a mais sangrenta de suas batalhas contra o mayle Zigor, morreu gerando uma explosão fortíssima, que foi suficiente para quebrar a barreira que separava os dois lados. Dessa forma, até o mais fraco lifing pode sobreviver devorando humanos. A população aumentou e o território deles ficou pequeno. Desde então, os lifings têm guerreado contra os humanos por território. Os lifings partem do conceito de que, sendo naturalmente mais fortes, merecem maior território, e os humanos partem de que devem continuar com o espaço que tinham antes.

         - E por que Dart e Sorah odeiam tanto os humanos?

         - Não só eles como também todos os lifings. São muito orgulhosos e nos odeiam sem motivo algum.

         - E se essa mayle morreu, como a harmonia se assegurou?

         - Se a harmonia não estivesse sendo mantida, com certeza já estaríamos todos mortos. Afinal, quando a harmonia se quebra, Thorus vem a terra e gera o apocalipse. Eu não sei como ela tem se mantido. Há quem diga que foi graças a Lágrima Escarlate, uma pedra em forma de gota, supostamente uma lágrima derramada por Yume, antes de morrer. Eu não acredito. Uma mayle jamais chora.

         - E o que aconteceu com Zigor?

         - Morreu na explosão.

         - Então ela não perdeu, foi empate.

         - Não. Zigor só morreu por azar. Não conseguiu fugir a tempo de evitar a explosão.

         - E minha última pergunta: COMO EU VOLTO PRA CASA?

         - Muito simples: Não volta. Nem se fosse possível. Você é uma guardiã, tem que fazer o que lhe foi pré-escrito. Sem você, o mundo entra num caos tremendo. Eu sei que é muito nova, mas seu dever agora é reconstruir a Lágrima quebrada.

         - Mas eu nunca pedi pra fazer isso! Eu estou com fome, com sede, com dor de cabeça, na minha perna tem o maior corte que eu já fiz, e estou morrendo de preocupação com relação a minha amiga que não sei se veio ou não pra cá. 

         - Coma alguns peixes e beba essa água – disse ele oferecendo alguns peixes já fritos e um copo de barro de água.- A dor passa sozinha. – Ele rasgou a manga da camiseta e enfaixou a perna de Sabrina – isso vai evitar que saia muito sangue. Logo poderá procurar sua amiga. Resolvido?

         - Ãh… acho que sim – disse ela sem jeito.

         - Dart e Sorah tem um olfato muito apurado. Poderão sentir o cheiro da sua amiga de muito longe, creio. Não precisa se preocupar tanto. Se ela estiver a menos de cinco quilômetros, será muito fácil de achá-la.

         - Você treina os dois? E por que eles não têm raiva de você que é humano?

         - Sim, eles são meus pupilos. Eles me odeiam sim. Mas sou mais forte e podem aprender muito comigo. A Sorah em especial, me odeia com todas as suas forças.

         - E você não tem medo?

Ele deu um sorriso que quase virou riso.

         - Não. Eles não podem comigo.

         - Sorah disse que você poderia fazer meu poder aparecer.

         Zieg levantou as sobrancelhas de forma demonstrar um quase espanto mas sem preocupação alguma. Ele olhou para o colar de Sabrina e balançou a cabeça afirmativamente.

         - Tem razão, seu poder não foi revelado ainda. Mas isso é muito simples. Só que perigoso. Você só vai conseguir se estiver em perigo. Nas situações extremas é que se faz o irrealizável.

         - Mas eu fugi de dois lifings desde que cheguei e nada me aconteceu. Nenhum poder se manifestou. Nada.

         - É por que você não sabia que podia. Quando sabemos que podemos fazer algo, realizá-lo se torna bem mais fácil. Depois do primeiro golpe sobre-humano, você saberá fazer qualquer coisa que seja de seu elemento. Eles podem ser água, gelo e fogo e terra.

         - E como é esse treino?

         - Vou derrubar arvores sobre você. Só precisa usar seu elemento para afastá-la se for água, queimá-la se for fogo, pará-la se for terra ou congelá-la se for gelo. Vamos começar.

         Ele sorriu como um garotinho. Sabrina fez cara de assustada “agora?”.

         Zieg se levantou e foi até a árvore mais próxima. Ele era incrivelmente alto e musculoso. Talvez tivesse uns trinta anos ou mais e media pelo menos dois metros.

         Ele checou a árvore e depois de calcular bem o lugar onde ia bater, deu-lhe um soco fortíssimo. No exato instante, o tronco grosso e pesado, de pelo menos uns setecentos quilos caiu na direção de Sabrina.

         - USE SEUS PODERES!- gritou ele – VOCÊ CONCEGUE!

         Sabrina não sabia o que fazer. Era só uma menina de treze anos, como poderia fazer um tronco congelar, se mover ou queimar só com os poderes que Zieg dizia que ela tinha? Como sobreviver a isso? Não teve opções, se jogou para o lado e quase que seu pé fica preso debaixo do tronco.

         - Tudo bem? – Se preocupou Zieg – Eu não esperava que conseguisse na primeira tentativa mesmo. Deve estar cansada. Deite-se lá dentro.

         Sabrina se levantou e foi pra dentro do casebre de madeira, onde o único lugar pra se dormir era um monte de palha num canto. Aliás, aquilo era a única coisa que ali havia.         No entanto, o cansaço era tamanho que ela se deitou e rapidamente dormiu. Só acordou no dia seguinte. E pela primeira vez, não teve sonho algum. Apenas relaxou a mente e dormiu como uma criança.

 

                                               ***

 

         Assim que acordou, Zieg pediu a Sabrina que fosse tomar um banho no mesmo riacho em que caiu enquanto fugia do lifing. Dart e Sorah já haviam voltado e recebido ordens para procurar por Mirian.

         Desceu a colina receosa enquanto olhava para os lados, verificando se nenhum lifing assassino aparecia para matá-la. Nunca pensou que um dia isso aconteceria com ela. Ter que tomar banho num riacho com medo de ser morta por uma criatura bizarra.

          Assim que chegou no riacho, bebeu um pouco da água e molhou o rosto. Estava pensativa e distraída quando algo emergiu da água e a fez cair pra trás. Algo com forma humana, mas totalmente transparente e feita de água. Aquilo foi tomando cor enquanto saia pra margem, andando na direção de Sabrina. Cada vez mais, aquilo se parecia com gente. Cada vez mais se parecia com alguém familiar a Sabrina. Cada vez mais se parecia com…

         - Mirian?

         - Sabrina! Não acredito que te encontrei!

         - Fique longe! – Sabrina não conseguiu acreditar que aquilo que antes era água agora era Mirian.

         - Sou eu, acredite em mim… Eu entrei na água e meu corpo sumiu. Quando voltei, no meu colar que não tinha nada passou a ter uma gota d’agua girando. – e levantou um colar idêntico ao de Sabrina, mas com uma gota flutuando no centro.

         - O seu colar… é igual ao que minha mãe me deu…

         - Hm… meus pais disseram que fui adotada já usando-o. – após um silêncio constrangedor, Mirian tentou amenizar a situação – E aí, sabe onde estamos?

         - Sei sim. – respondeu ela. E contou toda a história que ouvira através de Zieg.

 

 

                                      ***

 

 

         - Não quero saber se elas estão ou não a fim de me entregar a Lagrima, eu a obterei as humanas querendo ou não!

         - Sorah, abaixe a voz comigo! – repreendeu Zieg. - Elas vieram a este mundo sem conhecê-lo. Sem ter conhecimento nenhum de nada que vive aqui. Nem de lifings, de guerreiros ou mayles. E se Yume quis assim, significa que a missão delas é muito importante. Não podemos interferir.

         - Só porque não podemos, não significa que não faremos! E quem é Yume pra querer algo de tal forma? Ela morreu, não morreu?

         Zieg deu um longo suspiro, entregando-se a rebeldia de Sorah. Mirian e Sabrina dormiam dentro do casebre naquela hora. Dart e a lua totalmente cheia no céu eram as únicas testemunhas daquela discussão.

         - Dart – chamou Zieg – quer, por favor, dizer a sua amiguinha que se ela interferir nos planos de Yume, não só os humanos morrerão como também os lifings e até ela mesma?

         - Sinto dizer, mas ele está certo, Sorah. – disse Dart.

         - Até você está contra mim? Vai dizer que não deseja tanto quanto eu o poder que a Lágrima pode oferecer. Há poucos meses, era só isso que tinha em mente.

         - Há poucos meses atrás, Yume não tinha enviado as guardiãs da Lágrima. A situação mudou muito! Não acha que se elas vieram ainda tão indefesas pra um mundo como esse é porque Yume planeja alguma coisa? Ou pior, um outro mayle pode estar planejando alguma coisa. Eu só não quero arriscar.

         - CHEGA! Eu não vou desistir do poder! NUNCA!

         - Cale-se, vai acordá-las – disse Zieg.

         - E desde quando me importo?

         Sorah se levantou num pulo e partiu velozmente na direção da floresta. Antes daquela discussão, ainda quando Mirian e Sabrina estavam acordadas, ficou decidido que partiriam no dia seguinte em busca da Lágrima quebrada. Mas o assunto que mais se comentou foi sobre a terceira e a quarta guardiãs que não haviam aparecido ainda. Sabrina garantiu que ninguém mais poderia ter vindo para a ilha Eid a não ser ela e Mirian. Fosse quem fosse, a terceira e a quarta guardiã já estavam naquele mundo aterrorizante e até quem sabe, nasceram e foram criadas nele.

 

 

                                               ***

 

 

         Na manhã seguinte, Sabrina despertou com a esperança e a quase certeza de que tudo aquilo não passara de um sonho. Mas assim que viu o teto de madeira sobre sua cabeça, sentiu algo esmoler dentro dela. Olhou para o lado e viu Mirian ainda dormindo. Virou-se para o outro e fitou o belo rapaz de cabelos azuis num estado calmo e tranqüilo, docemente sossegado. Sentiu uma certa atração por ele e permaneceu mirando-o como fazia com Lucas. Riu baixinho. Como podia aquele, ser uma criatura tão terrível?

         Levantou parte do corpo e ficou apoiada nos cotovelos observando o resto do lugar. Zieg dormia no canto, afastado dos jovens.

         Passou o olhar pelo centro do casebre quando levou um leve susto ao ver Sorah sentada de pernas cruzadas e olhos fechados, meditando.

         Todos estavam desacordados, concluiu. Levantou-se e foi até a porta com cuidado para não ser ouvida. Soltou um gritinho involuntário quando Sorah chamou seu nome, ainda de olhos fechados e na mesma posição.

         - Onde vai, humana? Não está pensado em fugir não é?

         - Eu tenho um nome sabia? – Disse ela num acesso de coragem.

         Sorah se levantou sem a ajuda das mãos e foi até Sabrina com a certeza de que ela não fugiria.

         - Perdeu alguma coisa na cara do Dart?

         - O que?

         - Não seja tão idiota, humana . Vi muito bem como você olhava pra ele.

         - E você se importa? Tem algo com ele?

         - Claro que não! Só humanos se entregam a sentimentos patéticos e inúteis.

         - E como é que sabe de qual sentimento exatamente estou falando?

         - Todos os humanos prezam o amor mais que tudo, creio. Mas não se iluda, pois os lifings não são assim. Dart jamais lhe daria atenção.

         Ficaram em silêncio por alguns instantes, uma esperando a outra falar. Sem mais nada na mente, Sabrina começou:

         - Você é budista?

         - Não. – respondeu irritada, sem nem saber do que se tratava.

         - Então por que estava meditando?

         Sorah a encarava com ódio. A palavra budista a confundiu um pouco.

         - Porque tive esse treinamento na infância.

- Quantos anos você tem?

         - 153. Não estranhe, humana. O metabolismo dos lifings é mais lento que dos humanos. Cada dez anos na vida de um lifing corresponde a um humano. Sendo assim, tenho a mesma idade que uma pessoa de 15 anos aproximadamente.

         - Onde estão seu pai e sua mãe?

         - Mortos.

         - Sinto muito.

         - Não sinta. Eu não sinto a falta deles.

Sabrina ia perguntar o porquê, mas Dart interrompeu ao acordar.

         - Sorah, você voltou. Pensei que não iria procurar a Lágrima conosco.

         - Cale-se, Dart. Detesto ironias.

         - E o que é que você não detesta? – perguntou ele apesar de já saber que a resposta seria nada.

         - Acorde de uma vez a outra inútil e vamos embora. Devemos aproveitar a luz do sol.

         - E quanto a Zieg?

         - Deixe-o aí. Ele não servirá de nada.

         - Sabrina não teve seu poder desperto. Só Zieg saberá fazer isso.

         - É só fazê-la passar por uma situação difícil. E isso não faltará durante o percurso. Além do mais, não creio que ela precise de seus poderes uma vez que nós podemos lutar.

         O grupo então partiu por aquele mundo repleto de tudo que Sabrina nunca tinha visto.

 

 

 


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