31 de dezembro, 2155

Blond Natasha – como era reconhecida na política internacional – pincelou a caneta com a ponta da língua, a fim de umedecer a tinta azul. A voz de Rodrik Hagtzäl, representante da Rússia, ecoava pela Câmara do Conselho de Segurança da ONU, e todos os outros membros tinham os olhos voltados para ele. Era uma reunião privada, no coração de Nova Iorque, totalmente fechada às câmeras da imprensa e ao público.

“A Rússia não está sujeita ao Tratado da Antártida, mas veemente concorda com a liberdade do continente para exploração científica, portanto o ‘ouro de Marte’ não é propriedade de nenhum país.”

A intérprete traduziu o anunciado pelo pequeno microfone de sua cabine, percebendo que a expressão dos fluentes em inglês mudou drasticamente.

“O ‘ouro de Marte’ foi descoberto e extraído pelos norte-americanos, mas não pode ser armazenado em ambiente artificial por propriedades que desconhecemos. Enquanto os cientistas não souberem o motivo disto, a Antártica irá servir para nós como uma geladeira.”

Todos na Câmara ficaram estupefatos com as considerações do representante dos EUA, tanto que o representante da China levantou de sua cadeira batendo as mãos em punho na mesa para demonstrar a sua indignação.

“A Antártica não é uma geladeira! Se não puderem conservar o ‘ouro de Marte’ em seu próprio território, deixem-no em Marte!”

A discussão ficou acalorada em poucos minutos. Blond Natasha ouvia a tudo com um discreto e cínico sorriso borrado no rosto, enquanto fazia dobraduras em um papel lentamente. O assunto: Ouro de Marte.

Chamado assim por ser dourado e maleável feito ouro, o elemento desconhecido que foi encontrado em solo marciano pela NASA repercutiu em todo o mundo por ser uma fonte de energia térmica imensurável. Um grama de uma daquelas pedrinhas cintilantes e todo o continente africano teria energia por um milênio consecutivo. Um quilo e toda a Eurásia poderia ser sustentada, incluindo as suas usinas e postos de pesquisa.  O único problema era que devia ser conservada em ambiente seco e inóspito, ou ficava tão quente a ponto de explodir, e os efeitos não eram nada legais. Indianópolis foi a cobaia do teste perigoso. Somente algumas partículas enterradas sob a terra e o Ouro de Marte esquentou até varrer a cidade inteira do mapa.

 “É justamente por ser desconhecido que o uso desse elemento deve ser vetado! Deviam trazê-lo para a Terra só quando tivessem certeza de que ele não ofereceria problemas.”, o representante da China retomou a discussão, que estava começando a favorecer os EUA.

Blond Natasha estreitou os olhos quando ouviu aquelas palavras. Conseguiu reconhecer um pequeno brasão talhado no lencinho que o chinês trazia no bolso e então franziu as sobrancelhas. Para onde é que olhasse, podia ver os brasões das facções esquerdistas talhados das formas mais subliminares possíveis. Estava cercada pelo inimigo.

“Ele não oferecerá problemas se estiver na Antártica!”, contrapôs os EUA.

Oferece sim, foi o que pensou a intérprete. Uma Terceira Guerra estava prestes a eclodir por causa desta fonte inigualável de energia, embora nem a ONU nem os seus afiliados gostassem da idéia de desesperar a população mundial com essa informação. Por isso faziam tudo por debaixo dos panos. Todas as reuniões abertas eram máscaras de falsa paz e diplomacia, e ainda as privadas eram totalmente cobertas de uma falsidade palpável. A guerra já havia começado há muito tempo, apenas ninguém havia dado motivos para declará-la abertamente ainda.

Três facções. O Leão, o Dragão e o Urso.

Blond Natasha já foi Ursa, mas agora serve aos Dragões. No entanto, há pouco tempo eles quase lhe comeram a cabeça por causa da invenção do século.

Produto: Ouro de Marte.

Adição: Radiação e veneno biológico.

Resultado: Calígula. Uma bomba que facilmente podia ser confundido com um batom na bolsa de uma mulher, ou com qualquer outra coisa que parecesse inofensivo, mas que tinha um poder de destruição em massa dez vezes superior ao da bomba atômica que arrasou Hiroshima.

Ela deu a volta por cima, afinal, podia ser uma Dragona juramentada, mas ainda era uma Ursa de alma. Na calada da noite, Blond surrupiou a Calígula de dentro do seu cofre bem trancafiado e deu início ao seu plano.

“O ‘ouro de Marte’ deve ser partilhado por todos os países ou por nenhum deles”, Rodrik disse por fim.

Os americanos esperaram a tradução da sentença, que não veio.

Blond Natasha pegou o seu barquinho de papel e depositou sobre o próprio cabelo, olhando a todos que a encaravam com um olhar de triunfo e desprezo. Os Dragões perceberam primeiro; empunharam as suas armas e atiraram contra os Ursos, temendo que se tratasse de uma traição. Os Leões se resguardaram sob as suas mesas enquanto o sangue do inimigo chovia sobre eles. Mas não havia saída.

Todos os intérpretes se ergueram em suas cúpulas com fuzis silenciosos e quebraram os vidros com os seus tiros. A Câmara do Conselho de Segurança da ONU se tornou um cemitério sangrento.

Blond Natasha pegou a pequena Calígula de sua bolsa de couro e girou-a entre os dedos.

Se eles procuravam um motivo para começar a Terceira Guerra Mundial, ela daria um.