A Bênção De Estige escrita por O Raposa


Capítulo 3
Raposa astuta.


Notas iniciais do capítulo

Informações nas notas finais. Boa leitura.



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Estava na cozinha, girava um anel preso em um cordão na mão. Um pequeno objeto como aquele poderia ser mais forte do que uma maldição milenar? Tsc.

– Palhaçada. – Disse para mim mesmo ainda fitando o anel. Senti algo batendo em minha cabeça e depois o gato preto pousou de um pulo na minha frente. Gato idiota!

– Acha que algo feito pelo próprio Deus não é suficiente para quebrar uma simples maldição? – Ele dizia como se estivesse lido meus pensamentos e se magoado com eles. O olhes com desdém e virei minha cabeça para o lado, como se ali tivesse algo muito mais interessante que ele. – És mesmo uma raposa tola.

– Isso não é da sua conta... – fiz uma pausa – Bo-bby. – Sibilei fitando-o desafiadoramente. Sabia que ele se irritava toda vez que o chamava por esse nome.

Foi como previ, seus pelos se eriçaram, ele franziu o cenho e sua cara ganhou um tipo de carranca felina de desgosto e raiva, se tivesse pele humana com certeza estaria vermelho.

– Já disse que esse não é um nome de gato! – Alterou um pouco a voz. – Se quiser me chamar de algo... – ele pareceu pensar por um momento e continuou – pode me chamar de Irina.

Fiquei surpreso. Irina? Então ele – Ou seria melhor dizer ela? – era uma gata?

– Você... É mulher? – Não iria realmente perguntar, mas a pergunta acabou escapando dos meus lábios sem que eu percebesse – Ou fêmea... Seja lá o que você for. – Completei, estava confuso. Como deveria definir um animal que não era – realmente – um animal?

Ela deu uma risadinha debochada.

– Por acaso algum dia havia dito que eu era um gato? Você que tirou conclusões precipitadas, raposa tola. – Ele (Ou agora seria ela?) disse prepotente, virando-se e pulando em cima dos móveis da casa desaparecendo em um dos corredores.

– Ah! Como é bom ter um corpo novamente. – Mira disse espreguiçando-se, saiu do banho com um roupão rosa. Um dos muitos que tinha na casa.

Me senti desconfortável quando ouvi sua voz, era impossível não me sentir sem graça com sua presença, lembrar que eu havia mentido para ela no passado era constrangedor.

– Onde posso arrumar algumas roupas? – Ela disse animadamente, com um sorriso maroto estampado no rosto.

– Terceira porta a direita no corredor, pode pegar qualquer roupa do closet. – Disse inexpressivo. Era o quarto de Katarina que estava na faculdade a essa hora.

– Você sabe que não precisa ficar mais com essa cara de tenho-um-coração-de-pedra, né? – Ela disse se debruçando na bancada da cozinha e me fitando.

– Sim, eu sei. – Continuei inexpressivo e desviei o olhar. Ela dobrou a boca em um tipo de sorriso torto e foi para o quarto vestir uma roupa. Por que era tão difícil voltar a agir normalmente? Debrucei minha cabeça na bancada, estava cansado, minha mente estava cansada. Muita coisa estava acontecendo para um dia só.

Naquele dia Mira havia voltado, submergindo das águas que um dia lhe sugou ela voltara como eu lembrava que havia partido, nem mesmo um fio de cabelo tinha mudado.


– É a primeira vez que eu lhe vejo assim, nessa forma. – Ela disse e deu um sorriso simples se referindo a minha forma de raposa. Há quanto tempo eu não a via sorrir? Aquele sorriso que foi o motivo da minha curta felicidade e de toda minha ruína de muito tempo.



Não respondi ou demonstrei qualquer sentimento, meu rosto estava inexpressivo, temia que se eu ousasse demonstrar o mínimo aquilo voltasse a acontecer. Não podia arriscar.


– Tome – O gato preto apareceu de algum lugar rompendo aquele momento e trazendo na boca uma capa que colocou na grama. – Se vista. Ele disse. Mira pegou a capa do chão e cobriu seu corpo desnudo.

– Obrigada. – Ela agradeceu. – Nós precisamos conversar, Churi. – Ela disse voltando a me olhar.

– Ela tem muitas roupas bonitas! As roupas ficaram muito melhores com o tempo. – Ela entrou na sala me tirando dos meus devaneios. Estava com um vestido preto tomara-que-caia que contrastava com sua pele alva, também pegou algumas pulseiras e anéis de Katarina. – Mas ainda sinto falta de uma armadura. – Ela sorriu colocando alguns dos fios de seus longos cabelos atrás da orelha.

– Ah, isso me fez lembrar... – Disse levantando-me e indo em direção ao meu quarto, peguei uma grande caixa de madeira que ficava debaixo da minha cama, abri-a e lá estava a espada de Mira. Peguei a espada que estava em uma bainha de couro marrom.


– Kyaa! Isso é bom! – Ela dizia animadamente enquanto levava mais uma colher de sorvete a boca. Ri com a reação que ela teve, achei ainda mais graça quando imaginei se tive uma reação parecida quando comi pela primeira vez.


– Aqui! – Estendi a espada para ela. Mira parou de comer com a colher na boca e passou a mão na espada, acariciando-a, como se ela fosse uma grande amiga que não via a muito tempo.

Ela pegou a espada e tirou-a da bainha, mesmo não sendo usada durante todos os anos que Mira esteve “morta” ela continuava brilhando, como se estivesse sido recentemente polida e cuidada naquela manhã.

– Continua linda. – Ela disse, não para mim, mas para a espada. Continuava acariciando-a e parecia relembrar de todos os momentos que ela tinha passado com ela. Outro sentimento cômico me ocorreu, afinal, seus “lindos” momentos com ela significou a decapitação de muitos seres de várias espécies.

Ela abriu a boca como se fosse falar algo e parou, ficando com a boca entreaberta. Fiquei observando sua boca, traços finos e parecia ter sido desenhada, era vermelha como sangue, pergunto-me se seus lábios ainda tinham o viciante gosto de cereja.
Segurei o anel – que agora estava pendurado no meu pescoço – pensativo, mesmo se ele não funcionasse, agora que ela esta armada não seria grande problema se a maldição ainda estivesse sobre mim, certo?
Caminhei para mais perto dela – que não estava muito longe – segurei seu queixo como se ela fosse quebrar. Ouvi um barulho metálico contra o chão, ela havia soltado a espada. Fitava-me com seus olhos negros e penetrantes. Engoli seco, nunca houve um momento, mesmo quando eu ainda não sentia nada por ela, que aqueles olhos não me deixassem desconcertados.
Aproximei meu rosto lentamente do seu, eu era levemente maior que ela, – poucos cinco ou seis centímetros, sentia sua respiração no meu rosto e podia ouvir seus batimentos, misturados com os meus, acelerarem e a vi fechar os olhos, quando senti meus lábios começarem a roçar nos seus também fechei os meus olhos. Selei nossos lábios, minhas mãos estavam uma de cada lado do seu rosto. Senti suas mãos subindo em minhas costas e parar em meu pescoço, arranhava e puxava levemente meu cabelo que ia até o fim do meu pescoço. Era um beijo calmo e lento, na verdade, praticamente imóvel. Continuava tendo o mesmo gosto que uma vez me fez pensar em desistir de tanta coisa, sua pele continuava macia como seda. O ósculo que parecia se estender a um momento interminável pedia um término para a respiração. Nossas bocas se separaram mas continuei ali, de olhos fechados e sentindo sua respiração levemente descompassada sobre minha pele.
Abri meus olhos lentamente enxergando os olhos de Mira que me fitavam, senti seus negros olhos atravessando meus olhos verdes e furando-os, deixando em cacos.

– Estava esperando por isso – Ela disse, sorriu meio torto e continuava me fitando. Desviei o olhar, me pergunto se ela não se sente constrangida em ficar fitando as pessoas nos olhos. Seus braços foram lentamente se abaixando.

– Me desculpe. – Retirei minhas mãos de seu rosto e saí pela porta, precisava pensar.

Estávamos na grama em frente ao rio que estava carregado de tantas lembranças. Mira tinha um olhar sereno, abraçara os joelhos e os cobria com a capa.

– Estamos em guerra, Churi. – Ela dizia calma. Fiquei sem entender, talvez ela ainda não estivesse se situado a época atual. – E não é uma guerra qualquer.

– Mira, não estamos em...

– Não, estamos. – Ela disse me cortando. – Toda essa beleza onde você vive não existe, Churi. O mundo de verdade está em guerra, não, não é apenas uma guerra... – Ela pausou, apertando ainda mais os joelhos – O Armagedon, Churi.

Parei de raciocinar por um momento. Ela havia voltado com algum problema? Memória confusa? Eu sabia que os deuses na verdade eram apenas espíritos, fontes de poder que ficaram responsáveis por algumas situações no mundo. Porém havia um Deus, o tão famoso e poderoso criador de todo o universo.

– Tome – Ela disse me entregando um anel com um cordão entrelaçado – Coloque no pescoço. Isso vai ajudar com seu problema com sentimentos.

Problemas com sentimentos? Peguei o anel e fiquei olhando para ele, era um grosso anel negro com algumas runas em algum idioma que eu não consegui decifrar.

– Sim, irá funcionar, se é isso que esta pensando, raposa tola. – O gato reapareceu na grama. – É um anel forjado por um dos anjos de guarda do céu, nem mesmo o ser mais antigo sabe o material deste anel. Sim ou não, ele é muito mais forte do que sua maldição - Estava perplexo. Porque o ser mais importante de todo um universo estaria preocupado com alguém como eu? Os deuses, criaturas e até mesmo alguns humanos, muitas vezes me caçavam pelo meu sangue, mas Deus é imortal. Porque ele iria querer algo comigo?

– Eu ainda não sou uma humana completa, Churi... – Mira disse fitando o rio, mas ela parecia estar com a mente em um lugar tão longe, sua expressão era indecifrável – Ninguém pode ressuscitar sem um sopro de vida... Eu não o ganhei de graça. Para eu continuar a viver eu tenho que parar o Armagedon – pausou – em sete dias.

Sete dias? Ela estava brincando?! O Armagedon; a guerra lendária; a última guerra; a guerra que acabaria com toda humanidade. Ela queria parar isso em sete dias? E o que ela teria que fazer para parar com tudo isso?
Tentei formular alguma frase, mas a verdade é que tudo isso tinha me pegado de surpresa, já estava com a mente ocupada tentando controlar todos os sentimentos que insistiam em martelar minha mente toda vez que eu via o rosto alvo de Mira, mal conseguia soltar um suspiro sem que sentisse o peito apertar e a vista nublar.

– Hey! Raposa idiota! Onde você está indo? – O gato, não, a gata, apareceu em minha frente quando eu estava deixando a casa, chamando minha atenção e afastando meus pensamentos daquela manhã.

– Só andar, não se preocupe. – Disse fazendo pouco caso de responder.

– Preocupar? Quem disse que eu me preocupo? Tampouco me sinto curiosa, sou obrigada a saber já que todos acham você algo importante. Importante? Que importância uma raposa tola teria? – Ela parou de falar comigo e começou a conversar com ela mesma, ignorei-a e continuei a andar em direção a saída.

Caminhar não trazia calma ou afastava nenhum pensamento, não entendo o motivo dos humanos fazerem isso quando estão estressados. Mesmo que eu corresse e me desintegrasse com a velocidade, meus pensamentos ainda estavam no gosto dos lábios de Mira. Caçar. Por mais que eu tente me enganar, eu não sou um humano, sou um animal. Para animais como eu nada era mais tranquilizante que caçar.

Corri rapidamente para um pedaço de floresta mais próximo – na verdade sobraram apenas quatro pedaços de mata da grande casa a céu aberto que aquele lugar já fora – tirei os tênis que calçava, havia muito tempo em que não pisava com os pés nus na terra, tinha até me esquecido como era o sentimento de liberdade. A caçada não demorou muito tempo, nenhum das poucas espécies de animais que ainda habitavam ali podia ser mais ágil que eu. Brinquei com a comida por um tempo, deixava ela fugir para depois acertá-la novamente. Repeti isso até que ela não aguentasse mais andar. Depois como bom animal que sou, nada mais digno do que devorar minha presa. Era apenas um coelho (que era bastante gordo) não demorou muito tempo até ele ficar debilitado, sem poder se levantar e tentar fugir. Devorei-o rapidamente. Na verdade eu nunca deixei de comer carne crua, já não caçava a muito tempo mas nunca fritei, assei ou fiz qualquer coisa com a carne que pedia por telefone.
Saí da floresta limpando minha boca e mãos ensanguentadas na camisa branca que vestia. Voltei a caminha em direção a mansão, nada que eu fizesse iria tirar minha atenção de Mira.

– Você não precisa ir comigo – Ela disse se levantando da grama – não acho que sua presença faria muita diferença de qualquer jeito... – Ela começou a andar pela margem do rio, de quando em quando chutava a água com os pés descalços.

– Mesmo que você diga isso, sabe que eu lhe ajudaria não importa o que fosse. – Disse inexpressivo me levantando da grama e caminhando ao lado dela.

– Sim, seu sei. Estava apenas vendo se você havia mudado – Ela deu uma pequena risada – não, continua o mesmo. – Ela disse mais para ela mesma, quase num inaudível sussurro.
Caminhamos o resto da noite, sem dizer nenhuma palavra, vez ou outra nos olhando. Com os primeiros raios do sol que espreguiçavam-se no céu, minha forma também ia voltando a de um humano, em alguns minutos já estava normal. Meus cabelos, assim como meus olhos, voltaram a cor normal e minha calda desapareceu. Posso transformar-me quando quiser, mas toda lua cheia eu não tinha controle sobre a transformação. Sim ou não, ela aconteceria.

Digitei a senha do portão e ele se abriu, caminhei a passos curtos para dentro da casa na esperança de que todos – na verdade só Mira – houvessem sumido magicamente.
Entrei pela porta da cozinha e ela continuava lá. Agora comia um resto de comida chinesa que estava na geladeira.

– Isto é sangue? – Ela perguntou apontando com o garfo para minha camisa.

– Não se preocupe, eu não matei ninguém. – Disse indo em direção a sala.

– Eu não quis dizer isso. – Ela pareceu ofendida e continuou a falar – não mataria nem que quisesse, não tem ninguém aqui para matar.
Ela voltou a empenhar-se em comer e eu voltei a ir para sala. Havia uma enorme estante negra que ocupava toda uma parede, me abaixei e puxei uma espécie de gaveta que ficava em baixo dela. Peguei de lá outra espada, era uma Katana simples, havia comprado-a em uma viagem que fiz ao continente asiático. De alguma forma aquele tipo de espada me chamou a atenção.

– Hey! Raposa tola! Pegue logo esta espada, para onde vamos você vai precisar. – Ouvi a voz de Irina sobre minha cabeça, ela estava pendurada em uma das comportas da estante.

– Iria pegar de qualquer modo mesmo, talvez lhe fatie com ela. – Disse tentando irritá-la.

– Humpft! Fatiar-me? – Ela começou a gargalhar debochada – Pobrezinho. Acha que pode encostar essas patas sujas de animal em mim?

– Diz como se também não fosse um animal. – Retruquei.

– Claro que não sou! Mas se não teve capacidade o suficiente para descobrir quem sou, não será eu a revelar. – Ela disse e voltou a sair pulando sobre os móveis.

Peguei a Katana e fui para cozinha, Mira estava comendo mais alguma coisa que encontrou na geladeira. Seria isso um efeito colateral por ela ter voltado a vida? Ela terminou de beber – Sim, beber – um tipo de sopa que ainda parecia estar fria e limpou a boca com as costas das mãos.

– Já vamos, Irina? – Perguntou para a gata.

– Se possível, seria o melhor a se fazer. – Duas caras. Como podia agir tão educadamente com Mira e me tratar com tanto desdém? Eu não havia feito nada a ela, não tinha nenhum motivo evidente para me tratar dessa forma. “Raposa estúpida” isso, “Raposa tola” aquilo, sentia que a qualquer momento arrancar-lhe-ia o rabo por diversão.
Saímos da mansão e caminhamos pela cidade, na verdade eu conhecia o caminho que o gato estava nos guiando, tinha ido por ele no dia anterior. Chegamos ao nosso destino, o Oráculo.
Entramos na estranha loja e fomos ignorados pela estranha mulher em frente que parecia não ter nem mudado de posição de um dia para o outro, entramos no jardim pela mesma porta que no dia anterior. Escureceu, algum tipo de feitiço alterava o horário daquele jardim em relação ao resto da cidade. Lá agora estava noite, uma bonita lua minguante rodeada de estrelas enfeitavam o escuro e denso céu da notei.
O Oráculo estava sentado em uma pequena cadeira de balanço que parecia ir e vir com o vento, olhava para cima como se pudesse admirar o céu.

– Ora, ora, se não é a grande deusa das visões – A Oráculo disse ainda sem se virar para nos fitar, sua voz ainda era calma e suave.
Irina pulou para o colo dela e ela começou a afagar o topo de sua cabeça.

– Olá, Arestídia. – Mira disse, curvando um pouco a cabeça em um sinal de respeito. Arestídia, então ela tinha um nome.

– Você e suas palhaçadas. Sabe muito bem que não gosto de formalidades. – Ela se levantou e Irina pulou de seu colo, se esfregando em suas pernas. Ela tinha no rosto o mesmo sorriso acalentador do outro dia – Lembro-me de você a um milênio atrás, quando ainda eras uma menina que cabulava a aprendizagem para brincar com mortais.
Ela se aproximou de Mira tocando-lhe o rosto e acariciando-a. Mira sorriu.

– Sempre foi feita para ser uma humana. – Ela completou tirando as mãos do rosto de Mira e segurando suas mãos.

– É bom te reencontrar, senti sua falta – Mira disse com um amplo sorriso estampado no rosto. – E me desculpe, fui informada que essa será sua última vez. – Mira disse com uma expressão triste no rosto.

– Não seja tola, menina. – Arestídia parecia repreendê-la – não posso reclamar da vida que tive, é verdade que pude presenciar muitos momentos de felicidade, mas tudo que eu mais quis, tudo que toda Óraculo quer, é por um fim nisso tudo, minha filha. – Ela disse acariciando as mãos de Mira. – Poderei em fim estar em paz. Mira sorriu fraco.

Confesso que me sentia invisível ali e chegava a ser desconfortável, tinha certeza que ela havia sentido minha presença ali, afinal, como ela mesmo havia dito, ela enxerga melhor do que muitos que tem olhos. Percebi rapidamente do que as duas estavam falando. A visão que ela iria ter naquele dia seria a última, sua missão como Oráculo se findava levando junto sua vida. A muito tempo, quando ainda era uma criança cuidada por humanos, ouvi dizer que o maior desejo de uma Oráculo é a morte. Elas vivem como criaturas infelizes, não podem prever seu futuro ou vivenciar seu presente, fadadas a ter não só visões belas, mas como também as mais tenebrosas possíveis, vivenciar guerras que ainda não aconteceram e depois vivê-las novamente, no presente. Mortes, intrigas, discórdia. As Oráculos viviam todas as desgraças duas vezes, antes de acontecerem e quando aconteciam, sem poder dividir a dor com ninguém elas também foram desgraçadas a viverem sozinhas, trazendo morte e destruição a todo ser humano que por amor ou piedade resolver viver com elas.
A lembrança de ainda pequeno sentar-me a uma roda com pessoas que nutriam afeto por mim me apertou o coração, senti meu peito sangrar, eram essas memórias que ficavam enterradas na mais profunda escuridão do meu coração, escondendo-as de mim mesmo na esperança de nunca mais encontrá-las.

– Não deveria afastar boas memórias, meu jovem – Ela disse virando o rosto para mim, parecendo notar minha presença – se continuar enterrando-as assim, não terá um bom futuro. Nem mesmo o mais puro e bondoso dos corações sobrevive a uma vida sem boas memórias.

Fiquei calado, as vezes esquecia-me que Oráculos conseguem sentir os mais profundos sentimentos das pessoas.

– Mas não é para isso que vieram aqui, vamos minha garota, me dê sua mão. – Mira parecia estar em uma guerra entre entregá-las ou não, ia de encontro as mãos da outra mas as puxava antes que ela conseguisse pegar. Era visível a aflição de ser a causadora da morte de uma mulher que tanto gosta. – Vamos, pare de bobeira. – Aristídia disse pegando as mãos da menina no ar. – É isto que quero, minha menina, está me ajudando a ter finalmente o que sempre quis. Liberdade. – Ela disse parecendo tentar consolar Mira.

O mesmo processo de antes aconteceu com Mira, ela ficou imóvel e eu sabia que a única coisa que ela podia fazer enquanto a Oráculo lia seu futuro era escutar.

Nasceste para ser grandiosa
Nasceste para ser majestosa
Ganhará o amor que sempre desejou
Mas o receberá de uma forma que nunca imaginou
É impossível prever as conseqüências de um amor tão grande
Uma força obscura a vida lhe tirará
E apenas esse amor soprar sua vida de volta poderá.
Mas cuidado, a vocês a morte assola
No fim o que sempre almejou irá escorrer por entre seus dedos.

Aos poucos Mira pareceu voltar ao normal. Olhava para Aristídia. Seu rosto havia mudado, espantei-me, ela era realmente bela. Seus olhos dourados estavam novamente em seu rosto sendo contornados pelas mechas ferrugem do seu cabelo. Ela sorria largamente como eu nunca vi sorrir antes, olhava de um lado para o outro parecendo tentar gravar na memória tudo que via. Virou-se novamente para Mira, mas começava a ficar transparente, a cada segundo podia-se ver melhor através dela.

– Obrigada. – Ela disse, na verdade sua voz era quase inaudível, se minha audição não fosse mais aguçada eu não teria escutado áquela distancia. Ficou ainda mais transparente até ficar invisível, desapareceu. As estrelas brilhavam como nunca.

– Obrigada, grande amiga – Irina disse distante, para ela mesma.

– Bom, acho que com isso a magia que cobria a ilusão se desfez, certo, Irina? – Mira perguntou parecendo totalmente recuperada.

– Assim que sairmos desse lugar ele também vai se desfazer. Aristídia era o pilar de magia daqui, agora que ela se foi... A magia de ilusão também foi com ela.

Elas conversavam entre elas, era a segunda vez que estava sendo ignorado naquele dia, estavam fazendo de propósito?

–Então, vamos sair daqui! – Mira disse animadamente, pegou a espada negra que tinha colocado na beirada da porta e colocou no ombro. – Andem logo, lesmas paraplégicas. – Ela disse de costas atravessando a porta.

Irina deu um pulo sobre meu ombro e saiu, olhei para o céu estrelado. “Nem mesmo o mais puro e bondoso dos corações sobrevive a uma vida sem boas memórias”. As palavras de Aristídia ecoaram pela minha cabeça. Sentia todo dia trevas e luz travarem uma batalha monstruosa em meu coração, ainda havia esperanças para alguém como eu? Juntei-me aos dois que já haviam saído, a mulher que estava ali na estranha loja até poucos minutos havia desaparecido.
Abri a porta da loja, espantei-me por um momento, na verdade eu já havia imaginado em como aquilo estaria destruído, e estava. Toda a cidade destruída, era o mesmo local, apenas estava em ruínas e deserto, uma cidade fantasma.
Algumas casas estavam totalmente destruídas, outras tinham alguns cômodos em pé, mas nada habitável. Pareciam ter algumas coisas amassadas por escombros. O pouco verde que sobrara agora era inexistente, as árvores e gramas estavam mortas tornando tudo cinza e morto.

Segurei o anel que estava em meu pescoço, a partir daquele momento eu não poderia prever o que aconteceria, aquele pequeno objeto poderia ser capaz de me proteger de mim mesmo?

– Bem vindo de volta – Mira disse. – Esse é o mundo real, este é... – ela pausou por um breve momento – o início do Armagedon.


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Notas finais do capítulo

Olá gente, então, esse deu um pequeno atraso mas foi quase no tempo certo, né?
É o seguinte, ABE (Sim, tenho preguiça de ficar escrevendo o nome da história toda hora.) era pra ser atualizada a cada 1 semana, mas como o ano não é feito só do inverno... As coisas mudaram.
Eu comecei um novo projeto, (estão convidados a ler) e eu também dei 1 semana para atualizar ele, eu não vou conseguir atualizar DOIS projetos em UMA semana, é impossível pra mim, portanto as histórias serão atualizadas agora a cada DUAS semanas.
Bom, é só isso mesmo. Espero que tenham gostado desse capítulo, não me abandonem e comentem. ^_^