Cold Sun-Faberry escrita por jeanfeelings


Capítulo 2
She don't wanna go outside tonight


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoal. Espero que tenham passado a semana bem. Obrigada a todos que continuam acompanhando minhas histórias. Um em especial para a ROBERTAA RIVERAA pela recomendação em Hands all over. Essa semana ta incrível, primeiro porque depois de rezar até ter calos nos joelhos, atualizaram A CHAVE DA RAZÃO, sim, é isso mesmo, você não leu errado. Eu já havia o lido o final e é lindo, recomendo. E saiu o tão esperado trailer de Malavita( The family) e fiquei surpresa com a qualidade do filme e a atuação da Di parece estar evoluindo. Está prometendo.



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Quinn maneou a cabeça para o lado durante o café da manhã no intuito de ouvir as noticias do dia. Um campo de concentração recolheu uma quantidade considerável de judeus.

Russel Fabray estufou o peito debaixo do uniforme do partido nazista. Suas medalhas de honra subiam e percorriam o caminho de volta em plena satisfação. Aquele povo foi o motivo principal da ruína do seu próprio na primeira grande guerra e como por ironia foram responsáveis por sua queda particular.

            Nunca os perdoaria.

            “É uma bela manhã, meninas.”

            Uma manhã de prisioneiros judeus.

            “Sim, pai.” Quinn afirmou confiante. Brittany manteve os olhos focados no prato e não se pronunciou. “Uma ótima manhã.”

            Ela só queria vê-lo contente. Honestamente, não via vantagem alguma nesses lugares abarrotados de judeus. Muitas vezes na escola, mostravam aos alunos os bons tratos que eles recebiam nessas “prisões”, onde eram isolados para não contaminarem a raça ariana.

            Alguns alemãs eram cegos o suficiente para acreditar.

            Mas a verdade estava distante. Muito longe.

            “Estamos atrasadas para a escola.” Quinn levantou com o material em mãos e pediu licença ao pai. “Vamos, Brittany.”

            Ela a seguiu.

-oooooooooo-

            Quinn sentou perto de um gramado branco, encostou a cabeça contra uma árvore e puxou a correntinha amarelo brilhante que dormia em seu bolso. Entrelaçou as pontas nos dedos e fitou-a atentamente.

Uma estrela dourada descansava no meio.

            “Você salvou minha vida.” Sussurrou com objeto colado nos lábios. Queria poder agradecer ao seu salvador devidamente porque por algum motivo desconhecido ela não teve chance.

            “Preciso lhe devolver.” Apertou-o fechando os olhos numa prece. “E eu vou.”

            A tarde rastejou calma. Quinn observou o zelador Will, um homem branco de cabelos embaraçados, empunhando uma chave inglesa sendo forçada contra uma válvula longamente enferrujada.

            “Para comprar fotos do Füeher ela tem dinheiro, mas para renovar o estoque de óleo não.” Reclamou entre dentes.    

            Um chamado veio da outra extremidade da quadra de arame enfeitada por riscos de gelo. “Venha aqui agora, Fabray.” Bradou Beiste, responsável pelo treinamento feminino da juventude hitlerista. “Se eu tiver que buscá-la será pelos cabelos.”

            Quinn guardou sua preciosidade no bolso e arqueou uma sobrancelha, desafiando a mulher maior com rosto distorcido em rugas.

            “Primeiro terá que me alcançar.” Ficou de pé, dobrando os joelhos. “Com uma barriga desse tamanho, acho bem improvável.”

            Houve um tiro imaginário e a mulher galgou até ela. Uma corrida em círculos iniciou-se ao redor do campo. Algumas alunas tentaram abafar o riso para não serem vítimas de uma punição desnecessária.

            Uma queda foi confeccionada.

            A menina petulante tombou quando a treinadora agarrou seu calcanhar. Um soco foi desferido em sua perna direita, outro acima do queixo e um último abaixo dos olhos. A fera segurou-a pela gola da blusa e ameaçou-a no íntimo.

            “Só vou parar quando vir sangue. Espero que aproveite a surra.” Levantou o punho, mas não teve tempo de descer, pois foi parada no ato. “O que está fazendo?”

            “Treinadora.” Emma Pillsbury chegou a tempo de impedir uma tragédia. “A diretora está solicitando a presença da senhorita Fabray na sala dela imediatamente.” Olhou para Quinn com um misto de pena e desaprovação.

            “Diga-a que já estou terminando com ela.”

            “Agora.” A enfermeira insistiu impassível. “Vamos, Quinn.”

           

            Ela levantou e expulsou a neve das mangas calmamente, desamarrotou a gola do casaco e olhou com superioridade rasante para a mulher gorducha a sua frente. Manteve a troca de olhares mortíferos até sair do pátio.

-oooooooooo-

Emma era uma espécie de anjo perdida no inferno. Tinha um coração abençoado e com espaço suficiente para cada um de seus pacientes, mas crescera sob alicerces terríveis. Um verdadeiro castelo de areia a mercê do vento. Com toda experiência desastrosa que presenciou não lhe restou outra opção senão dedicar a vida ao bem estar de outras pessoas.

Sem exceção.

“Já que irá ficar aqui por um tempo.” Falou com olhos brilhantes para a garota. “Poderia me ajudar com a arrumação dos medicamentos? Preciso colocá-los na prateleira em ordem alfabética.”

Quinn deu de ombros e encolheu as mangas.

Puxou algumas caixas e começou a empilhá-las a partir da letra “a”. Estava em total silêncio, com a costela gritando e um rubor irritante abaixo do queixo. Olhou pelo canto dos olhos para a enfermeira.

“Não precisava ter feito aquilo.” Falou simples arrumando os anestésicos.

“De nada.” A ruiva piscou alegre, escrevendo algo sobre uma papelada indescritivelmente grande. 

Quinn escondeu o sorriso e sibilou baixinho.

“Obrigada.”

Emma ouviu, mas não esboçou expressão alguma. Sabia o tamanho do orgulho da garota o suficiente para não deixá-la constrangida com uma cara surpresa ou feliz ao extremo. Cada um tem seu tempo para aprender.

Um dia, ela iria.

“Está faltando três caixas de gases e um vidro de álcool.”

Então uma cena estranha se propagou. Emma levantou com olhos dilatados e uma comichão nas mãos. Olhou-a nos olhos e tentou sorrir o melhor que pode.

“Acho que está na hora da sua aula.”

Não estava.

Quinn sabia que tinha alguma coisa errada, mas não iria questionar a mulher que salvara a integridade do seu rosto. Deu de ombros e jogou a mochila sobre as costas abandonando o cômodo.

-oooooooooo-

Brittany arremessou um avião de papel que girou diversas vezes no quarto até planar em segurança no chão congelado ao lado de Quinn. A mais velha observava uma linha de ouro entrelaçada nos dedos antes de ser interrompida.

“Onde você arrumou essa pulseira?”

Quinn lhe dirigiu um olhar morto e deu de ombros. Não iria contar que caíra na armadilha ardilosa da inimiga e perdera a foto da mãe para logo em seguida ser salva pelo proprietário da jóia.

“O pingente é uma estrela.” Brittany analisou diante do revirar de olhos da irmã por ser uma coisa tão óbvia. “Deve pertencer a alguém importante.”

“Como você pode saber? É só uma pulseira idiota.”

Ela pulou da cama com um sorriso amplo e abriu o armário forrado de aço para recolher uma caixa lilás, carregada de papéis, fotos e alguns objetos estranhos.

Pescou uma imagem gasta.

“Pretendo morar num castelo quando sair daqui.” Mostrou a Quinn que torceu as sobrancelhas. “É grande o suficiente para criar todos os animais que eu quiser e correr a cavalo de um quarto para o outro.”

O castelo de Marienberg sorriu em sua gloriosa vastidão do canto da foto. Uma antiga e esplendida construção que ficava centrada no alto da cidade. Perto dos céus. Quinn riu em silêncio enquanto a irmã continuou.

Mostrou um papel rosa.

“Essas são as qualidades da pessoa com a qual vou me casar e ter nove filhos.” A cor foi devidamente esticada e preenchida por um laranja florescente. Nela apareciam os seguintes adjetivos: “Olhos negros, origem latina, gosto para música boa, uma perna ligeiramente maior que a outra e uma cicatriz que começa no queixo e termina abaixo do olho direito.”

“Você quer se apaixonar por uma manca com o rosto deformado?”

“Não seja cruel.”

Ela deu de ombros. Jogou a cartinha de volta no recipiente e virou para a irmã mais nova com uma pergunta em mente.

“Porque está mostrando essas coisas?”

“Para responder a sua pergunta.” Falou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Quinn não conseguiu estabelecer uma ligação imediata. “Perguntou como sei que a dona dessa pulseira é importante. Simples...” Entrego-lhe um sorriso confiante. “Eu acredito nisso.”

Assim como tinha plena certeza de que moraria em um castelo na companhia de uma latina e nove filhos.

Às vezes isso é tudo.

-oooooooooo-

Marley tremeu, não pela visita do frio, mas ao ver sua inimiga. Viva. Caminhando na direção da parede de meninas. Quinn rasgou-a com o olhar e migrou para a formação.

“Escutem aqui, preguiçosas.” Começou a treinadora, andando de uma linha a outra. “Hoje irão percorrer o campo até perderem essas bundas gordas.”

“Olha quem fala.” Sussurrou Quinn.

Para seu eterno azar a mulher ouviu o resmungo. Caminhou até ela com o peito de aço erguido, olhos de lama e uma superioridade maciça. Colocou uma mão por sobre o ombro da garota e apertou sem soltar.

“Disse alguma coisa, senhorita Fabray?”

A pressão sobre o membro pálido foi aumentando perigosamente. Quinn evitou uma careta de dor humilhante e pensou em perguntar “Se ela tinha algum problema de audição?” Mas já arrumara hematomas suficientes e não queria colocar a enfermeira Pillsbury em outra roubada para ajudá-la.

“Nada, treinadora.”

Houve um estalar de osso e a mão foi embora.

“Estou de olho em você.”

As meninas deram a partida perto da cerca de arame. Correram o equivalente a dez voltas enquanto Beiste estava sentada numa cadeira de madeira, distribuindo ordens e enxotando elogios.

“Acompanhe a vanguarda.” Gritou para uma menina de óculos tartaruga. “Sua porca gorda.”

Quinn viu a garota perdendo o posto e ficando para trás, saiu da linha de frente e foi até o lado da menina com cabelos de flocos de sol. Esperou que ela recuperasse uma lufada de fôlego antes de aconselhá-la.

“Coloque o peso sobre o calcanhar e tente inspirar duas vezes e soltar uma em sincronia.” Fez uma demonstração. “Mantenha o ritmo e você não ficará tão cansada.”

 “Assim?” Corou através do rubor invernal.

“Vamos acelerar?” Sugeriu. Deu o primeiro passo para que ela imitasse. Conseguiram ficar lado a lado. Rumaram com força, ultrapassando a primeira fila e chegando na frente quando a treinadora as mandou parar. “Você foi muito bem.”

“Obrigada.”

“Está apreciando a companhia de perdedores desinteressantes, Fabray?” Marley surgiu no meio da multidão de exaustão. Quinn travou os punhos e segurou a respiração pulsante. “Ou a morta de fome da Kitty te inspirou pena?”

Não dava para ouvir isso sem esboçar uma reação adequada, que se propagou atrás de punhos furiosos. Marley foi enforcada contra uma parede de concreto instável. Um soco deslocou sua mandíbula para o lado.

“Dê-me uma boa razão para não te arrebentar!”

“Solte-a.”

Beiste puxou Quinn pela gola da camisa e prendeu seus braços na cabeça. Houve uma luta na tentativa vã de se soltar, mas fora inútil. No fim, se viu sendo levada para a diretora Silvéster.

-oooooooooo-

Sue fixou um olhar morto sentada em seu trono na companhia habitual de uma vara de bambu ansiosa. Ouvia uma história de briga desinteressante enquanto matava a aluna mais indisciplinada de todo o colégio com o olhar.

“Pode sair, Beiste.” Afirmou sem pudor. “Cuidarei muito bem dela.”

A ausência da treinadora culminou na mudança de expressão da diretora. Levantou-se com a “arma” dançando nos dedos e girou-a em várias direções até parar na frente de Quinn.

A garota a olhou do chão, mantendo os olhos calmos.

Esperou ansiosa por uma surra.

Que nunca veio.

“Eu não vou te bater, senhorita Fabray.” A mulher caminhou até uma mesinha onde descansavam vários copos e garrafas de diferentes bebidas, a cima da madeira estava fincada uma moldura de um homem de bigode curto, cabelo melado jogado para o lado e uma expressão inabalável de triunfo.

O Führer

“Uma boa coça não parece surtir efeito algum na senhorita.” Bebeu um conteúdo transparente na metade do copo. Quinn jurou que era vodka. “Estou pensando, o que te causa medo?” Andou novamente até ela e parou ao seu lado dobrando as sobrancelhas. “Como se chama sua irmã mais nova?”

Quinn engoliu em seco, gotas de suor brotaram em sua testa e uma comichão cresceu abaixo do seu peito. “O que ela tem haver com isso?”

Sue sorriu vitoriosa.

“Tudo.” Cravou as unhas no rosto dela e puxou-a para que ficassem cara a cara. “Todas as vezes que agir de modo inadequado, irei buscar sua irmã, amarrarei você na cadeira e baterei nela, na sua frente, quantas vezes meu braço aguentar. “Quinn tinha uma combustão de lágrimas empapando os olhos. “E acredite, estou acostumada a praticar esse exercício.”

Presa por correntes de chumbo em plena liberdade.

Era como ela se sentia.

-oooooooooo-

Quinn tinha a cabeça em chamas. Arrumou os livros deixando-os cair uma série de vezes e quase explodindo entre as quedas. Achou que o dia não podia ficar pior, porque seria terrivelmente injusto.

Como estava enganada.

 “Com mal de Parkinson, Fabray?” Marley parou ao lado do armário dela com os olhos faiscando em maldade. “Meu pai é médico, se quiser pode ajudar com o seu problema.”

Ela desdenhou e bateu o armário.

“Porque eu pediria qualquer coisa a um perdedor como seu pai?” Questionou superior.

“Porque, pelo menos, ele não deixou uma catástrofe acontecer diante dos olhos dele e ficou parado como um covarde.”

A pressão anteriormente estável de Quinn fez uma viagem, sem volta. Puxou a garota pela gola da camisa e quebrou-a contra o gelo de aço da parede. Sufocou-a com as mãos trêmulas e os dentes serrados.

“Como você ousa?”

“A verdade dói, não?” Continuou tentando alfinetá-la entre a tentativa de obter algum ar. “Espero que aproveite o show que Madre Sue irá fazer com sua irmã.”

Quinn soltou-a nesse exato momento. A asfixia começou a invadi-la com um peso culminante. Apoiou-se contra uma parede e viu as primeiras gotas de suor abandonando-a pela testa fincada.

“Como você escapou do rio?” Marley prosseguiu na tortura emocional. “Devia ter morrido afogada ou congelada. O que viesse primeiro.” Cuspiu contra ela. “Você saiu sozinha?”

“Fique longe de mim.” Quinn ordenou de olhos lacrados.

“Não tinha como você ficar de pé no gelo.” A garota de olhos oceano fez as contas e chegou a uma conclusão óbvia. “Alguém te ajudou, não foi? Quem?”

“Eu, senhorita Rose.” Emma Pillsbury tomou a frente de uma Quinn semi-inconsciente e encarou Marley com uma determinação intransponível. “Mais alguma pergunta?”

Ela podia ser nova, mas não dispunha da dádiva da ignorância. Marley sabia que a enfermeira estava mentindo descaradamente para proteger sua inimiga, mas não podia enfrentar um membro da escola.

“Nenhuma.” Respondeu seca e girou nos calcanhares saindo do corredor.

“Quinn?” A enfermeira abaixou e puxou-a pelo braço, servindo de muleta. “Vamos para a enfermaria.”

Não estava em estado mental ou físico perfeito para discutir, então deixou-se ser levada para um lugar melhor. Atrás de uma parede, olhos azuis continuavam a faiscar para elas, cheia de perguntas e com uma única certeza.

“Está escondendo alguma coisa.” Marley sussurrou. “E eu vou descobrir. Pode ter certeza.”

-oooooooooo-

Quinn reclamou quando sofreu uma perfuração e recebeu líquido transparente para energizar as taxas baixas do seu corpo febril. Emma colocou-a deitada em uma cama e voltou a arrumar um punhado de papéis.

“Senhorita Pillsbury...”

Ela sorriu e interrompeu a menina.

“Pode me chamar de Emma, Quinn.”

“Hum...certo. Obrigada por ter me tirado dessa fria.” As bochechas pálidas começaram a tomar um rubor curto. “Não suporto a Rose e não posso rebatê-la sem prejudicar outra pessoa.”

“Estou sabendo da conversa que teve com a Madre Sylvester.” Quinn enrugou as sobrancelhas. “Não fique surpresa, nessa escola as paredes também tem ouvidos. Fico feliz que se preocupe com o bem estar da sua irmã.” Emma sorriu de orelha a orelha. “Prova de que você é uma ótima pessoa.”

Quinn sentiu vontade de rir, mas não quis ofendê-la.

“Não sou.” Contrariou-a seriamente. “Talvez eu já tenha sido, mas agora, não mais.”

“Porque diz isso?”

A menina bufou e fechou os olhos, sentiu o corpo voltar a temperatura normal e agradeceu mentalmente pelo soro.

“É complicado.”

Emma não conseguiu reprimir um olhar profundo. Quinn devia ter passado por algo extremamente doloroso para chegar a uma conclusão como aquela de si mesma. Puxou a agulha do braço branco e aferiu a pressão antes de dar alta.

“Sabe ao que a Marley estava se referindo quando foi me ajudar?”

“Não.” Respondeu simples. “Ouvi parte da conversa, suficiente, para saber que dei a resposta certa.”

A enfermeira pegou uma pilha de papéis e mudou-os de lugar, na corrida até a outra estante, um bilhetinho amarelo caiu no chão. Quinn abaixou e recolheu a nota para devolvê-la.

“Você deixou cair.”

Emma corou furiosamente e puxou-o da mão dela impedindo que lesse o conteúdo. Quinn deu de ombros e pescou a mochila. Não conseguiu traduzir o recado mesmo que sua curiosidade estivesse gritando para descobrir.

Tudo que viu, não serviu para muita coisa.

Um papel amarelo com letras rosadas.

-oooooooooo-

Sue Sylvester estava nos seus dias de glória. A maior idólatra de Hitler rumava de um canto a outro na sala de aula, persuadindo os ouvintes a seguirem as leis alemãs a risca. Eram um povo superior.

Deviam agir como tal.

“Ouçam bem.” Parou com as costas coladas no quadro. “Aqueles que virem algum judeu perambulando por Würzburg, tem o direito e a obrigação de vir nos informar. Nós os levaremos para os campos de concentração, onde poderão ter uma vida digna, sem contaminar nossa espécie.” Começou a rondá-los novamente estudando cada rosto. “Os que não o fizerem serão taxados como traidores e severamente punidos.”

Quinn ficou estática quando a mulher parou na sua frente e lhe dirigiu um olhar rígido.

“Joguem ao meu lado.” Deu uma piscadela. “E só terão a ganhar.”

Ela entendeu o recado. Não precisava daquele sermão. Se visse qualquer membro daquela escória, sem sombra de dúvidas o denunciaria. Pelo povo alemão, por sua família e principalmente por ela mesma.

-oooooooooo-

Quinn carregava uma mochila gorda no ombro direito e outra mais desnutrida no esquerdo, enquanto acompanhava a irmã que buscava suas canetas coloridas para pintar a moldura de uma macieira.

“Você vai estragar meu desenho.”

Brittany franziu o cenho e virou a cabeça para os lados.

“Não é verdade.” Puxou uma bolsinha de lápis. “Ele precisa de cor, está muito triste.”

 “Se você diz...” Deu de ombros. “Onde estão suas canetas coloridas?”

A irmã menor arrumou a trança e devolveu o estojo. Suas bochechas ficaram vermelho brilhante antes de responder.

“Eu as perdi.”

“Como assim?” Parou, olhando-a com autoridade. “Você não pode ser irresponsável a esse ponto. Deixa as portas abertas, perde seus pertences. Quando você vai crescer?”

Os olhos da pequena ficaram interditados por lágrimas, Quinn se arrependeu de ser tão dura. Estava prestes a dizer algo quando ouviu uma gritaria alarmante vindo de uma rua próxima.

“O que é isso?”

Segurou na mãozinha de Brittany e puxou-a com cuidado em direção ao murmurinho. Dobrou uma esquina de prédios e culminou na rua principal, abarrotada de pessoas em fileira. Xingando, cuspindo e vaiando uma passeata.

Ou melhor, um desfile.

De judeus.

“Isso é horrível.” Brittany sussurrou paralisada. “Podemos chegar mais perto?”

“Não.” Ditou. “Quero que pegue suas coisas e vá direto para casa.”

“Mas...”

“Obedeça.” Interrompeu-a com as sobrancelhas em x. “Não mude seu caminho, eu já estou indo.”

Ela inflou as bochechas contrariadas e obedeceu a irmã sob a máscara da raiva. Quinn caminhou lentamente até a multidão. O caos estava espalhado entre olhos azuis de pedra dos alemães e suas palhas na cabeça. Muitos erguiam os punhos orgulhosamente e gritavam: Heil, Hitler. Outros apenas açoitavam os judeus com o que estivesse ao seu alcance.

“Seu porco imundo.” Um alemão jogou uma pedra no nariz de um prisioneiro idoso. “Não é digno nem de pisar no nosso chão.”

Quinn olhou para os pés do velho. Estavam enfeitados com correntes pesadas e hematomas, sem proteção contra o frio, totalmente nus. Perguntou-se intimamente como conseguia suportar o gelo furando a sola dos pés?

“Ajude-me.”

Foi um momento estranho onde o mundo parou. Ela só conseguia olhá-lo e sentir repulsa. Vontade de eliminá-lo da face da terra. Então um tiro gritou na passeata, seguido de vários outros.

“Peguem-no.” Gritou um dos nazistas confiscando o desfile. “Não deixem que escape.”

A multidão bateu em retirada. Por todo lado havia correria e alienação. Quinn tapou os ouvidos e caiu na neve fofa. Quase foi pisoteada. Olhou pelo vão dos dedos e constatou que já não existia mais uma fileira de condenados.

As correntes foram quebradas.

“Cuidado.”

Uma granada foi lançada e derrubou alguns partidários do judaísmo. A maioria conseguiu se dispersar e correr para longe dos guardas que continuavam a disparar para todos os lados.

Quinn correu para trás de um contêiner de caixas de madeira. Olhou com as pupilas dilatadas para os homens agora livres e vislumbrou algo que passara despercebido. Cabelos negros e uma capa cinza contra o frio sumindo entre as árvores.

-oooooooooo-

Chegou em casa no meio de um ataque de pânico. Armas, tiros e judeus não eram uma combinação agradável para ela. Rumou para a porta da cozinha e parou no vão ao ouvir vozes alucinadas.

“Como vocês puderam deixá-los escapar?” Russel socou a mesa, atônito. “Eles estavam amarrados por correntes de ferro.”

Três oficiais mantinham os olhos no chão ao responder.

“Óleo.” Um dos guardas alegou. “Não sabemos como conseguiram, mas passaram o produto nas mãos e escorregaram para fora das correntes.”

Quinn olhou para seu pai entrando em erupção. Como um bando de prisioneiros conseguiu óleo? Era uma lástima sem precedentes.

“Reportem isso para os seus superiores.” Ditou o coronel. “Quero que o responsável seja preso imediatamente e façam uma busca meticulosa pela cidade a procura dos foragidos.”

Os homens bateram continência.

Saldaram o Füeher.

E não viram a menina atrás da porta.

-oooooooooo-

 Uma arma caiu no frio sólido, arrastou-se até seus pés. Havia sangue na superfície traiçoeira, olhos azuis suplicantes, gritos alarmantes seguidos por um clarão e depois silêncio.

Quinn acordou exasperada.

O coração martelou na garganta e as roupas foram banhadas em suor. Apertou a camisa contra o peito e jogou o lençol para longe. Ainda era noite. O pesadelo a alcançara.

“Irmã?”

Brittany apareceu na fresta da porta com um pijama de ursos e os pés descalços. Segurou a maçaneta e entrou devagar.

“Oi, Britt.” Sibilou tratando de arrumar um sorriso.

“Você estava gritando.”

A mais velha leu o medo estampado nos olhos azuis dela. Muitas vezes o pesadelo era intenso a ponto de cair da cama ou berrar a plenos pulmões durante a noite.

Brittany ficava pasma com esses ataques.

            “Estou bem.” Esticou a mão para que ela viesse ao seu encontro.

            Ela correu e jogou os braços contra o ombro de Quinn. Abraçou-a por um longo tempo. Quinn sentiu lágrimas faiscando para fora. Sua irmã sempre fora seu porto seguro. Não importava quantas vezes brigassem, sempre arrumavam um jeito de voltar uma para outra.

            “Eu te amo.” Beijou a testa dela e deitou na beirada da cama.

            Eu também. Pensou.

            “Melhor dormimos.”

            Quinn esperou que ela o fizesse, não iria conseguir pregar os olhos, voltar para aquele mártir de sonho não era opção. Saltou da cama lentamente e rumou para o lado de fora.

            Passou pela cozinha e não se surpreendeu ao ver as bandejas vazias.

            Ou as portas abertas.

            “Porque você não faz nada direito?”

            Saiu para a noite clara e desceu até o rio Main. Não pretendia patinar tão cedo. Depois do encontro nada caloroso com a água congelada andar sobre o gelo deixou de ser um prazer.

            Sentou na margem direita e fitou o nada. Algo gritou dentro do bolso, chamando

sua atenção. Uma estrela dourada. Puxou-a e amarrou-a nas mãos congeladas. Ficou observando alguns traços que até agora passaram despercebidos.

            Havia um “R” lascado na parte de trás.

            Como por acaso do destino a macieira do outro lado se mexeu. Quinn continuou parada e respirou fundo, fingindo indiferença. Não queria espantá-lo. Olhou pela visão longitudinal, uma mão pequena apontou do outro lado da madeira.

            “Peguei você.” Sussurrou.

            Partiu em disparada focando apenas no destino. Correu para trás da árvore e colidiu com pegadas. As seguiu mais do que depressa. Estava subindo uma colina, passou por um caminho de árvores e depois de muitos metros desembocou num vale de gelo.

            Fumaça saia de uma chaminé presa no topo de um casebre.

            A construção tombava ligeiramente para o lado. Parecia ter sido visitada por traças. Os alicerces eram bambos e uma parte do telhado estava visivelmente destruída. Aproximou-se do lugar com extrema cautela.

            “Pare onde está e volte.” Ouviu a ordem.

            A garota estacou, mas não foi embora.

            “Você me tirou do rio de gelo.” Sentenciou casualmente. “Porque se esconde?”

            “Para o seu próprio bem.”

            Quinn não compreendeu. Deu mais um passo em direção a casa.

            “Volte.” A voz pediu mais uma vez. “Por favor.”

            “Tem uma coisa que quero devolver a você.” Puxou uma pulseira de dentro do casaco. Houve uma movimentação mínima por trás da casa. Todos os indícios de um desejo flamejante em recuperar o objeto estavam lá. A loira quebrou as barreiras e voltou a se aproximar até que um detalhe na varanda fez seu coração parar.

            Havia uma pilha de latas confeccionando uma torre na frente da casa.

            O problema era o conteúdo dos potes de metal.

            Óleo.

            E para completar o arrepio descontrolado, ao lado da bateria de latas descansava uma capa cinza exausta. Tudo fez sentido numa hora pouco oportuna.

            “Você libertou os vermes?” Parou e fincou a testa. “Responda!” Gritou.

            “Sim.”

            Não compreendia mais nada.

            “Porque faria uma coisa dessas?” Rebateu furiosa de onde estava. “Foi um ato de traição. Vergonhoso.” Arrebentou o pé no chão e torceu os punhos. “Quero ver o seu rosto. Mostre-se.”

            A menina deu um passo para trás e ficou cada vez mais inclusa pelas sombras do casebre. Quinn resolveu jogar sujo. Caminhou em direção a um córrego que contornava a casa e esticou a pulseira sobre a água corriqueira.

            “Se não obedecer, eu solto.”

            A estrela lampejou contra o fraco sol que se punha. Quinn vislumbrou o encontrar de pés cansados surgindo da escuridão, cabelos de noite caindo sobre costas torneadas, braços e pernas famintas e olhos derretidos em chocolate.

            O mundo parou.

            Literalmente.

            Ela ficou estagnada. Agora desvendara a razão da fuga e a omissão do rosto de sua salvadora.

            “Não é possível.” Sussurrou alienada. “Você é uma deles.”

            A judia trocou de pés e olhou com suplica para o objeto pendurado nos dedos dela. Voltou a espiá-la tomando o cuidado para não fazer nenhum movimento brusco. Quinn estava tremendo, o ar começou a ficar escasso e ela atou os olhos.

            “Devia ter me deixado morrer.” Rosnou entre os dentes.

            “Isso é importante.” A garota apontou para a jóia. “Por favor.”

            Ela deu uma risada sarcástica. Acumulou todo ódio que retinha no braço e arremessou o objeto o mais longe que pôde. Viu a linha de ouro voar nas nuvens carregadas e cair sobre o leito do pequeno córrego que provavelmente morreria em um rio. Levando a pulseira embora.

            Para sempre.

            Os olhos de líquido marrom dissolveram. Quinn esperou por alguma reação, mas não houve. Ela só ficou parada encarando o rio com os uma expressão arrasada.

            “Não vai ficar assim.” A menina de aço alertou a judia. “Você vai pagar.”

            Quinn saiu correndo no meio do campo branco. Estava muito cedo para digerir o fato de que a menina que salvara sua vida pertencia a um povo tão destrutivo, mas não importava mais. Migrou por entre as árvores e chegou a ponte do rio Main com uma intenção guardada no íntimo.

            Cumprir com o dever de alemã.

            Encontrar Madre Silvester o mais rápido possível.

           

           


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Notas finais do capítulo

Vejo vocês no próximo. Tenham uma boa semana.



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