Olhos De Aquarela escrita por Star


Capítulo 16
Nina




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– Basicamente, foi isso o que aconteceu – Nina concluiu baixinho, puxando outra flor do ramalhete ao lado dos seus pés.

Quanto mais repetia a história, mais irreal tudo parecia. A cada vez aumentava a sensação de que as últimas semanas foram algum conto do Stephen King que ela leu antes de dormir e lhe causou uns pesadelos bem criativos. Todavia, as cicatrizes nas suas mãos continuavam, um mapa vermelho e profundo de recordação.

– Desculpe por não ter vindo antes – seus dedos passavam pelas pétalas cor-de-rosa macias enquanto falava, arrancando uma por uma. - Eu realmente queria, mas Eva e todo mundo têm me deixado bem ocupada. Foi quase impossível conseguir fugir até aqui. Até mesmo Ícaro aparece quase todo dia agora. Ele disse que está escrevendo uma tese sobre mim e que vai apresentar para os chefões da faculdade de medicina. Se tudo der certo, ele vai receber um monte de honras e vão catalogar com o nome dele mais um distúrbio na história das doenças que deixam as pessoas lelés. Eu não entendi muito, mas ele disse que é uma coisa boa. Ele disse que vai se chamar Olhos de Aquarela – puxou outra flor do buquê. - Acho que isso quer dizer que eu virei objeto de estudo ou coisa parecida.

O vento morno de fim de agosto passou por entre os portões do cemitério e soprou algumas pétalas caídas do colo da menina para a grama. Nina podia ouvir o zumbido carismático da brisa se arrastando por toda a campina e balançando as folhas de um carvalho muito alto alí perto. Não era estranha essa coisa de árvores plantadas em cemitérios? Um monte de raízes enfiadas debaixo da terra, invadindo os caixões, profanando cadáveres. Não é como se ninguém soubesse do que elas se alimentavam. Será que se plantassem coqueiros ao invés de água docinha sairiam sangue de dentro dos cocos? Precisava lembrar de discutir isso com o coveiro antes de ir embora.

– Daniela já foi a julgamento, também – continuou, e nem mesmo se importou com a facilidade que tinha em conversar sozinha. – Todos do júri votaram por inocente e declararam que ela agiu em legítima defesa. Graças a ela a polícia conseguiu mais informações sobre as pessoas envolvidas com drogas que perseguiam Paulo. Eles mandaram um policial para ficar no prédio e tomar conta caso qualquer pessoa quisesse voltar e fazer mal à Dani. Nós chamamos ele de Guerra, é o sobrenome legal dele. Ele é enorme e tem cara de búfalo com infecção urinaria. Dani adora ficar chamando ele o tempo inteiro para matar aranhas que nem existem. Ele morre de medo de aranhas.

Sorriu lembrando-se de Dani e Guerra pulando em cima da cama e gritando um com o outro enquanto uma aranha do tamanho de uma tampa de coca-cola subia na parede do outro lado da casa. Puxou outra flor.

– Eva está ainda mais neurótica. Acho que ela instalou um rastreador em mim enquanto eu dormia – Nina puxou o tornozelo para frente, mostrando para ninguém a pulseira de metal preta que apareceu na sua perna dois dias depois que recebeu alta do hospital. – Só não tenho certeza se está funcionando. Ela é realmente ruim com essas coisas tecnológicas.

Cutucou o metal, que, na manhã que ela encontrou, tinha uma luzinha vermelha e fazia pi de meia em meia hora, mas depois do primeiro banho nunca mais se mostrou tão simpático. Volta e meia Nina ainda encontrava a mãe escondida no banheiro com os óculos de leitura virando furiosamente as páginas de um manual e resmungando sobre onde diabos iria comprar um google maps.

– Incrivelmente, as coisas lá em casa estão quase normais. Eva disse que eu vou poder começar ir a escola esse ano. Sabe, com todas as outras pessoas normais também. Ela chorava o tempo todo enquanto dizia isso e ficava repetindo “mas se você quiser ficar, ou estiver com muito sono, ou for segunda, ou terça, você pode ficar em casa comigo, é claro que pode! Até mesmo nas quartas!” – pegou outra flor. – Eu estou realmente ansiosa. Imagino se todas as outras pessoas do mundo são assim tão problemáticas quanto as que eu já conheço.

O vento morno passou por entre seus cabelos novamente, arrastando pétalas pelo ar até bater contra a lápide de pedra em frente e Nina ajeitou uma mecha atrás da orelha.

– Eva disse que vai me levar para ver os meus pais. – disse. A mãe de assinatura prometera antes que ela saísse do hospital. Ela nunca tinha contado em qual cemitério eles estavam e, Nina sabia, ainda achava muito cedo para que elas fossem visitar. Nina olhou em volta, pensativa. - Espero que onde eles estejam não tenham coqueiros.

A campina muito verde graças às chuvas fortes de verão se estendia por até onde seus olhos pudessem acompanhar. Nina olhou por todas as outras lápides, urnas e mausoléus, marcando os lugares onde pessoas foram engolidas pela terra para sempre. Eram muitas e muitas. Imaginou se por acaso os seus pais não estariam por alí, se perguntando o que diabos a sua menininha fazia sentada aos pés de uma cova, depenando um buquê de flores de dois reais.

– Ei, baixinha.

Passos vinham pelas suas costas, pesados e molengas ao subir a pequena colina que o cemitério fazia, mais pela preguiça que o dia quente causava do que por cansaço. Nina esperou até que Dani a alcançasse e viesse sentar do seu lado.

– Eu sabia que você ia estar aqui – a vizinha disse, acomodando-se com seu vestido na grama meio úmida.

Dani usava um vestido coral que destacava o bronzeado cor de avelã da sua pele. O seu guarda-roupa antigo consistia principalmente de jeans e camisetas escuras, mas desde que Nina lhe contara sobre a história que Ícaro chamava de Olhos de Aquarela a vizinha pareceu ganhar uma variedade enorme de vestidos, meias-calças e casacos em tons variados de rosa. Nina suspeitava que dalí também veio a mania de chamá-la de baixinha, mas não se incomodava de ouvir e nunca fez questão de perguntar.

– Eva já chamou os cães de caça pra cheirar minhas meias e me rastrear? – Perguntou, divertida.

– Não, mas acho que a ouvi discutindo com Guerra alguma coisa sobre chamar a aeronáutica. E qual é a daquele manual que ela fica sacudindo na cabeça de todo mundo, afinal? Ela sabe que aquilo tá em coreano?

– Ela acha que aquela é a linguagem dos jovens de hoje.

– Oh – Dani fez, assentindo. – Isso explica porque ela fica gritando hajimemaste pros garotos de skate na calçada.

As duas riram baixinho, o som mais vivo que poderia existir naquele ambiente funesto. Dani indicou o monte de pétalas caídas na grama com a cabeça.

– Sabe, não adianta ficar torturando as plantinhas, aceite logo que o bem-me-quer não te quer.

Dito isso, puxou uma das flores para ela mesma. As duas ficaram em um silêncio respeitoso, rodando pequenos caules verde-musgo nas mãos. Apesar de não gostar de se lembrar daquela noite em específico, Nina sempre se pegava comparando a vizinha de agora com a garota cheia de sangue que tinha abraçado no chão do seu apartamento, com um cadáver de cabeça deformada do tamanho de um guarda-roupa tombado aos seus pés. Sequer pareciam a mesma pessoa. A vizinha se recuperara completamente de todas as cicatrizes no seu corpo e cuidava aos poucos das emocionais. Às vezes ainda acordava no meio da madrugada gritando por culpa de algum pesadelo horrível em que o bastão se quebrava nas suas mãos antes que ela pudesse se defender. Nessas noites, Nina sabia, ela gritava por Guerra, ainda com os olhos cheios de lágrimas, gritava que uma aranha imensa estava no teto e que ele precisava vir matar. O policial arrombava a porta do apartamento – trocaram de fechadura já quatro vezes – e entrava apontando o revolver para todos os lados, com os olhos fechados, gritando “Cadê essa bastarda filha da mãe? Cadê? Cadê?”, e Dani ria, aliviada por saber que não estava mais sozinha.

Sentada alí no cemitério aos pés de uma cova, Dani nunca poderia ser comparada ao fantasma do seu passado. A pele do seu corpo brilhava com o bronzeado dos treinos matinais pra nova liga feminina de baseball dentro do vestido novo, o cabelo negro brincava com o vento morno e seus olhos meio puxados de índia ficavam baixados respeitosamente para a flor nas suas mãos. Naquela tarde de domingo ela era mais rosa do que nunca.

Nina pensava, distraída, se a sua própria aparência também teria mudado e se as outras pessoas podiam sentir o seu branco também.

– Vocês eram realmente próximos, não eram? – Dani finalmente perguntou e Nina viu seu olhar voltado para a lápide enterrada pela metade em frente às duas.

“Cícero Francisco Rosa Coutinho (1941 – 2013)”, estava entalhado na pedra, com uma cruz de mármore colocada acima. Logo abaixo do nome estava a frase simples e cheia de significado que todos os velhos amigos de Cícero concordaram que merecia ser a sua última identidade. “Um bom homem”.

– Nós éramos, sim.- Nina concordou e se deixou ser levada pelo pouco de azedo de mágoa que ainda lhe restava.- Ele significou muito pra mim. Parece injusto a forma como as coisas acabaram.

– Todos nós pensamos isso – Dani ergueu os olhos para o céu, pensativa – Somos egoístas. Sempre queremos mais tempo com as pessoas que amamos. Mas ele sabe que você o amava, Nina, e te amou muito também, eu tenho certeza disso.

– É... – Apertou os lábios, com um sorriso pequeno. - Talvez.

– Você quer um tempo sozinha?

– Não, não. Eu só vim para me despedir. Fazer a coisa direito, pelo menos. Precisamos voltar antes que Eva faça a polícia alemã vir me buscar.

Dani e Nina se levantaram, batendo nas roupas para se livrar do pólen e da grama que pudesse ter se grudado a elas. Nina já quase estava se virando para o portão de saída quando percebeu que levava o buquê – ou metade dele, pelo menos – em uma das mãos. Colocou o arranjo murcho sobre o túmulo igual a centenas de outros que rodeavam o cemitério, murmurando com um sorriso:

– Adeus, amigo.

A vizinha passou o braço por sobre os seus ombros e começou a falar enquanto as duas voltavam para os portões de ferro enferrujado do pequeno cemitério.

– Então, meu aniversário está chegando e você tem me enchido tanto o saco que realmente estou pensando em fazer uma festa. Mas você vai ter que ajudar, eu não sei nada sobre isso! A gente ainda faz aquilo de dar comida pras pessoas? Vai ter que ter alguém vestido de Papai Noel? Será que a gente consegue fazer Guerra se vestir de Mamãe Noel? Ele ficaria uma graça! Só que vamos precisar de uns três quilos de veet, aquelas pernas cabeludas são horrorosas, e Mamãe Noel que se prese precisa de uma meia-calça! Ou cera quente? Ah, já vi que vou adorar!

Em algum momento enquanto a vizinha falava Nina se arriscou a olhar para trás por cima do ombro, mesmo tendo prometido a si mesma que não faria isso. Sentado em frente à lápide, com uma flor pela metade em uma mão e uma chuva de pétalas brancas aos pés, Alex abriu o seu sorriso mais doce para ela e acenou um adeus.

–--

– Oh meu deus, você viu? Você viu? – Daniela gritava entre as gargalhadas. – Eu gritei “aranha!” e ele ATIROU NO BOLO! ATIROU. NO. BOLO. ELE É O JAMES BOND DOS LATICÍNIOS!!

Os três desciam a rua sob o sol quente de domingo, cobertos de massa de baunilha e glacê de limão dos pés à cabeça. Daniela, quase se engasgando de rir com uma mão na barriga e metade da cabeça coberta de glacê; Guerra, fervendo de raiva com metade de um bem casado enfiado na orelha; e Nina, ocupada demais chupando o dedão sabor bolo de aniversário explodido.

– Foi tipo, “Guerra, aranha” e ele sacou a arma e atirou, boladão! – Dani continuava, quase sem fôlego. – Cara... sério... deveriam te dar uma medalha por isso! Não, não... um troféu!!! A benção da rainha!!!!!

Guerra sacudiu a cabeça pra tirar dos ouvidos a massa de pão-de-ló da sobremesa que a dona da confeitaria, furiosa, tinha lhe acertado enquanto gritava histérica para eles darem o fora. Nina tentava não rir para não piorar a situação e para que ninguém lembrasse que a ideia de irem em uma confeitaria encomendar um bolo pro aniversário de Dani tinha sido dela, e abafava suas risadinhas mordendo a palma da mão grudada com recheio de coco.

– Não tem graça – Guerra resmungou, depois de quatro minutos inteiros de risada perturbadora.

– É claro que não! – Dani fez, quando conseguiu se controlar o suficiente pra falar. – FOI UM LATICINOCIDIO!!!!! – E tornou a gargalhar, mais pela cara de ódio que Guerra fazia do que pela própria piada.

– Relaxa, daqui a pouco ela engasga. – Nina aconselhou, e Dani ria alto demais para a ouvir, repetindo trocadilhos horrorosos sozinha e se divertindo como nunca. Ofereceu a mão não babada para o policial. – Quer bolo?

Dani repetiu “laticinocidio” mais uma vez e explodiu numa gargalhada que daria para ouvir até em Alagoas. Guerra balançou a cabeça bufando, claramente furioso.

– Como você consegue aguentar?

Nina levou um instante chupando o mindinho e olhou ao redor, com cara de quem iria contar um grande segredo.

– Sabe aqueles spray de água pra acalmar cachorro?

O policial levou um segundo ou dois para entender então abriu um sorriso maldoso, que mudava por completo o ar de búfalo com infecção urinária da sua cara de mau que costumava usava em serviço – ou quando Dani dava muito nos nervos – e o deixava mais parecido com gente. Um tipo de gente atraente, por assim dizer. Assentiu devagar e os dois sorriram, cúmplices, enquanto Dani começava a engasgar repetindo “laticinocidio” sozinha.

Os três já estavam alcançando o portão com grades de ferro do prédio e puderam ouvir um garoto discutindo com o novo porteiro, um senhor de cabelos extremamente brancos e um pouco corcunda que tinha um pôster da Shakira pregado atrás do seu balcão da recepção e cantarolava My Hips Don’t Lie o dia inteiro. Nina pensava às vezes se por acaso haveria no mundo alguma fábrica especializada em produzir idosos para serviços de portaria, ou se colocavam nos classificados “Precisa-se de porteiro que use corega, goste de dominó e tenha artrite, rinite, osteoporose e boas memórias da Vera Fischer jovem”.

– Eu já disse! Uma dona Lola pediu essa encomenda, eu só faço as entregas! – O garoto insistiu, falando por cima do gigantesco pacote de ração pra cachorro com cheiro de nugget de frango que carregava e parecia pesar toneladas.

– Lola não tem nesse prédio! – O porteiro ralhava de volta, balançando vigorosamente sua cabecinha branca. – Prédio errado! Prédio errado!

– O endereço é esse, veja aqui! – O garoto fez o maior esforço do mundo para esticar o pedaço de papel que trazia em uma das mãos para o porteiro, que o pegou, apertou os olhos muito míopes a dois centímetros do papel e voltou a falar:

– Lola não! Prédio errado!

– Não é não, é aqui!

– Prédio errado!

– Com licença... Senhor Alzenda? – Nina chamou o novo porteiro, dando um passo para frente para ter certeza que estava no campo de visão funcionável dele antes que começasse a gritar “prédio errado” pra ela outra vez. – Nós temos uma Lola no prédio sim, lembra? É o senhor Januário, do quinto andar. Toda vez que bebe muito ele coloca os vestidos da mulher, diz que é dona Lola e fica ligando pra todo mundo, lembra? Semana passada ele encomendou sete caixas de trampolins.

– Oooh, verdade. – O porteiro concordou, pensativo. Virou-se pro garoto de novo. – Prédio errado!

– É uma situação realmente delicada. – Dani falou de repente, assustando todos ao redor já que ninguém reparou quando ela tinha se recuperado do ataque de riso e ficado tão séria. – Januário cada vez bebe com mais frequência e fica fazendo esses escândalos, arrumando dívidas enormes e causando problemas com todas essas encomendas. Seria bom alguém conversar com ele antes que as coisas piorem. Você poderia ir lá, não, Guerra? Vai que alguém... Dá um bolo nele. – E explodiu em gargalhadas mais um vez, com o rosto pro alto e a mão na barriga. – Ai meu Deus, eu sou tão engraçada!

Guerra ficou cor-de-rosa, então vermelho escarlate, com três veias grossas latejando no pescoço e, se você olhasse bem, poderia ver fumaça saindo das suas orelhas. Até Nina não conseguiu se segurar e riu um pouco até perceber os olhos do garoto com o pacote de ração de mil toneladas lhe encarando de um jeito estranho e ela mesma o encarou, com uma vaga sensação familiar. O momento de estranhamento durou alguns segundos até que os dois gritaram ao mesmo tempo:

– A maluca da delegacia!!

– O cheirador de gatinhos!!!

O garoto ficou vermelho atrás do pacote de ração.

– Eu não cheiro gatinhos.

– Verdade, você cheirava à gambá morto – Nina disse e riu. – Ei, maluca é a sua avó.

– Então, vocês se conhecem? – Dani perguntou, secando uma lágrima do olho e encostada de lado no policial que ainda parecia extremamente zangado, com a sua cara de búfalo com infecção urinaria matinal.

Nina não achou que fosse boa ideia trazer de volta a memória do dia em que o incidente tenebroso envolvendo assassinato e alucinações aconteceram, ainda mais depois que tanto tempo tinha se passado e a vizinha parecia tão feliz. Por isso apressou-se a responder, dando de ombros.

– Claro, nos conhecemos, sim. Ele é da minha escola.

– Nina, você não começou a estudar ainda – censurou Dani.

– Ah, é, verdade, nossa, claro que não, que ideia. Eu disse escola? Eu quis dizer hospital. Nos conhecemos no hospital. Ele tem câncer. Vai morrer. Quer dizer, olhe pra cara dele. Quantos dias de vida ainda dá pra esse pobre moribundo? – Nina apontou para ele com as duas mãos, incentivando todos a examinarem o nível de putrefação do garoto.

Um silêncio constrangedor se instalou. Todos encaravam o pobre garoto por trás do pacote gigante de ração aromatizado com nuggets, que sem dúvidas precisava da força de um cavalo para ser levantando, esperando qualquer sinal que fosse de morte. Nina lhe dirigiu umas piscadelas nervosas, arregalando os olhos e inclinando a cabeça para os vizinhos.

– Ah... Claro. Sempre peço células-tronco novas para o Papai Noel. – O garoto disse, cúmplice, em um fiapo de voz. – Acho que ele não me acha bom menino o suficiente.

E abaixou a cabeça, com cara de pobre condenado, totalmente crível senão fosse pelo fato de estar carregando um saco de meia tonelada de ração que precisaria da força de mil cavalos puro sangue para ser levantado.

– É, claro que é – Dani fez, dando risadinhas travessas ao final da atuação digna de oscar do pobre menino moribundo. – Vamos deixar vocês dois conversarem em paz. Vem, seu Alzenda, vou te contar umas piadas muito boas sobre bolo.

Guerra olhou feio para o garoto.

– Quer que eu fique de guarda caso alguma coisa aconteça? – Perguntou, desconfiado.

– Por Deus, Guerra, deixa a menina conversar, o garoto é um gato. – Dani bronqueou, nem um pouco discreta, puxando Guerra pelo braço para dentro do prédio. O policial ainda estreitou os olhos ameaçadoramente para o garoto e fez um gesto mostrando o revólver escondido na calça. – O que você acha que ele pode fazer? Obrigar Nina a ter filhos lindos? Para de palhaçada!

– Eles não são assim o tempo inteiro, juro – Nina falou baixinho, com as bochechas queimando e vendo Guerra sumir arrastado por Dani para dentro do prédio.

– Você é uma péssima mentirosa – o garoto disse.

– Tudo bem, eles são assim o tempo inteiro.

– Dizer que eu tô morrendo? Sério? - Se fazia de ofendido, mas Nina percebeu que ele tentava não sorrir. - Não podia inventar nada menos pior?

Ela fingiu pensar, rolando os olhos para o alto.

– Era isso ou dizer que você é minha alucinação.

Os dois sorriram com a mesma recordação silenciosa da estranha madrugada em que tinham se visto pela primeira vez, na delegacia, quando Nina acordou completamente grogue com o pescoço cheio de machucados e decidiu perturbar o garoto fedorento do lado. Fora a noite seguinte ao terrível incidente de homicídio e anterior à grande crise de insanidade, Nina lembrava, em uma linha cronológica adaptada baseada nos seus níveis de loucura que Ícaro lhe estimulara a criar enquanto escrevia sobre os Olhos de Aquarela.

– Bom ver que você ainda mantém a imaginação funcionando – o garoto disse.

– Bom ver que você tomou banho.

– Você deveria experimentar também um dia desses. – Ele disse, e Nina já quase tinha se esquecido que estava coberta de massa de bolo explodido e glacê de limão, com três confeitos coloridos presos no nariz. – Tem essa super tecnologia nova no mercado chamada chuveiro. É uma benção. A garotada tá adorando.

Nina levou a mão à boca e lambeu o glacê dos nós dos dedos, balançando a cabeça.

– Você diz isso só porque está morrendo de inveja porque eu estou deliciosa.

O garoto sorriu outra vez e Nina percebeu que ele tinha caninos afiados que deixavam o seu sorriso bem engraçado. Ele colocou o pacote imenso de ração no chão e estendeu a mão vermelha e dolorida para ela, depois de limpá-la nos jeans.

– É um prazer, srta Delícia, eu me chamo Victor.

Nina aceitou a sua mão e sentiu um arrepio ligeiro percorrer a sua espinha com o toque.

– É uma honra finalmente conhecer o senhor defensor de filhotes de felinos e afins.

Victor apertou os lábios, sem graça.

– Droga, precisa ficar lembrando disso o tempo todo?

– Orgulhe-se, homem, você deve ser tipo o super-herói do canil de gatos. Deveriam colocar fotos suas nas latinhas de whiskas sachê. Precisou de muita coragem!

– Sério...

– Foi um gesto máximo de pura bravura! Você é o mártir do reino felino! O grande guerreiro dos amiguinhos peludos desprotegidos!

– Tudo bem, já entendi – ele riu, levantando as mãos como se se rendesse. – Vamos zoar o cara que gosta de gatos. Há-há-há.

– Não, é de verdade – Nina afirmou, porque era. – Foi bem legal o que você fez.

– Obrigado – ele desviou o olhar, modesto. – É uma pena que os policiais não tenham achado isso. Não acreditaram em mim, não sei por quê. Tive que pagar uma multa por perturbar a paz.

Olhando-o agora na calçada de casa, com a blusa xadrez azul abarrotada, o cabelo escuro que de manhã deve ter sido bem penteado e agora se assentava para frente e os olhos verdes meio constrangidos, ele mal parecia ser o garoto que de madrugada confessou para Nina ter enfrentado uma gangue de moleques maldosos e armados de canivetes e passado a noite enterrado dentro de um lixão pra se esconder, tudo para defender uma ninhada de gatinhos filhotes que os garotos encapetados maltratavam.

– Realmente, não faço ideia de porque não acreditaram. Você parecia tão confiável, com aquele cheiro de coisa podre e os pedaços de papel higiênico presos no cabelo.

Os dois fizeram uma careta de nojo e riram.

– As coisas não terminaram muito mal, na verdade. Meu pai me colocou para trabalhar na loja de animais dos meus tios para compensar a multa que ele teve que bancar. Você pode passar lá qualquer hora, fica aqui nessa rua. Não é muito ruim. Estou treinando as cacatuas para cantarem Sweet Child Of Mine.

Nina olhou para onde ele apontava. A lojinha ficava quase no final da rua, uma pet shop toda pintada de laranja com vários peixes coloridos de olhos esbugalhados voando para cima e para baixo da vitrine, que ela lembrava de ficar cutucando por mais tempo do que se orgulhava de fazer.

– Talvez eu possa passar depois lá e ensinar as cacatuas a cantarem um pouco de sertanejo universitário.

Victor a encarou por longos segundos, com a testa franzida.

– Convite retirado.

– Eu estava brincando!

– Convite retirado.

– Victor!

– Se chegar perto das minhas cacatuas te expulso a vassouradas. Aviso logo.

Nina riu e Victor desfez a carranca, sorrindo contente. Os dois foram interrompidos por um homem gordo e baixinho quase no final da rua, agitando o braço da grossura de um tronco de árvore.

– Victor, seu merdinha preguiçoso!!! Pare de vadiar e volte já pra loja! Tenho mais cinco entregas pra você fazer!!– Gritou, a voz extremamente grossa e rouca.

Victor pareceu estremecer e obedientemente apanhou o pacote de mil toneladas de ração com cheiro de nugget de frango com um impulso, dobrando os joelhos pelo peso.

– Seu tio parece com bastante raiva – Nina disse, ainda olhando para a pessoa redonda lá embaixo com o rosto escondido por óculos de lentes grossas que refletiam a luz do sol.

– Na verdade, é a minha tia – disse, ajeitando o pacote no colo.

– Mas... ela tem bigode.

– Maior do que o meu, eu sei – Victor concordou, com desgosto. – Tem mais pêlo no peito também. Ela fica me perturbando com isso o dia inteiro.

Nina continuou olhando o anão barbudo no fim da rua até perceber que Victor estava ao seu lado, os olhos verdes lhe encarando com alguma expectativa.

– Bem – ele ajeitou o pacote pesado no colo outra vez, desviando os olhos quando foi pego. – Nos vemos de novo, certo?

– É claro – Nina sorriu. – Vou passar lá para ensinar as cacatuas a cantarem Meiga e abusada.

Victor fechou a cara.

– Não chegue perto das minhas cacatuas.

– Traga seu traseiro magrelo pra cá agora mesmo!! – Gritou a tia anã barbada furiosa lá embaixo. – Não me faça ir te buscar!!!!

Nina apertou a boca para não rir e o olhou de forma solidária. O garoto tentou sorrir, como quem diz “é sempre assim” e seguiu pela rua , os músculos dos braços quase saltando para fora do corpo com todo o esforço para carregar a meia tonelada de ração que seu Januário transformista bêbado pediu.

A garota sorriu sozinha, aproveitando o calor gostoso de satisfação que a aquecia e o embrulho agradável de borboletas no estômago. Havia algo de estranhamente prazeroso em vê-lo ir embora e saber que outras pessoas podiam brigar com ele, que ele existia de verdade. Ainda estava vigiando, correndo o risco de que ele olhasse para trás e a flagrasse, quando ouviu os gritos vindos lá de baixo.

– PRA QUE TANTA DEMORA, PELAMORDEDEUS! ACHEI QUE TU TINHA MORRIDO!!

– DÁ PRA SER MAIS DISCRETA, POR FAVOR? EU TAVA FALANDO COM UMA GAROTA LÁ EM CIMA!!

– GAROTA NADA, EU NÃO VI!!

– VOCÊ É CEGA!!!

– ME RESPEITA MOLEQUE, NEM PÊLO NO SUVACO TU TEM!!

– É, VOCÊ TEM!! E VOCÊ É MULHER!! E ISSO É MUITO ESQUISITO!!!!!

Nina riu e entrou no pátio do prédio antes que os dois no fim da rua a ouvissem gargalhar. O seu coração estava batendo deliciosamente forte e não conseguia parar de sorrir. Não era melhor esperar um pouco antes de subir? Olhou para o alto, tentando achar a janela da sua casa e imaginando o barraco que Eva deveria estar armando por terem deixado sua filha sozinha, com Dani contando contos eróticos que serviam como fins alternativos para o clima que ela se orgulhava muito de ter criado, Guerra armado e com binóculos escondido na varanda para caso as teorias lascivas da vizinha se provassem certas e talvez dona Lola sapateando na sala reclamando que a ração não chegava nunca enquanto seu Alzenda ia furtivamente no novo quarto cor-de-rosa de Nina e roubava os cds da Shakira pela terceira vez. Só de imaginar tanto alvoroço já se sentia cansada, mas mesmo assim se apressou para subir os degraus da recepção.

Já estava chamando o elevador quando ouviu um “ei!” às suas costas. Nina virou-se e viu Victor, o defensor de felinos oprimidos, segurando as barras do portão fechado. Ele sorriu para ela.

– Você não me disse seu nome! – Ele acusou, quando ela chegou mais perto para lhe ouvir.

Nina sorriu, porque o sorriso dele era adorável, a forma como ele segurava as barras do portão, com os braços mortos de cansaço e esperando por ela, era completamente cativante e a bagunça animada que a esperava nos andares de cima fazia toda a sua vida parecer cheia, bagunçada e excitante.

– É Marina. Você pode me chamar de Nina. Todo mundo me chama assim.

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Notas finais do capítulo

*chora muito e pra sempre*É impossível pra mim descrever como eu tô orgulhosa de mim mesma nesse momento, de verdade. Eu comecei a escrever toda essa história quando tinha meus 14 anos e termino agora, aos 18. Tanta coisa se passou pela minha vida, tudo mudou ao meu redor, e só agora consigo realmente perceber a diferença entre o meu eu que pensava em uma garota cega que enxergava cores e no eu de agora.Preciso agradecer, como sempre, a todos vocês que me acompanharam até aqui. Obrigada ao Breno Henrique, Litinha, Meiko, Kanna e Mari Grint, que estavam comigo quando a história ainda era a Blind Love, e obrigada, também como sempre, à Bunny, Nina e PécoraLine, todos vocês realmente fizeram a diferença com os comentários ao longo da história que me animavam para escrever mais e mais. Não, eu não tenho esperanças de transformar essa história em um livro. Talvez seja pessimismo, mas tenho conciência sobre os buracos que eu possa ter deixado aberto, e que meu estilo não é exatamente o que é publicado. (Mesmo assim, se você é do ramo ou tem contatos OU SE FOR A SARAIVA MEU DEUS ACEITO TUDO ME LIGUEM)É isso. Obrigada por ficarem comigo e com a Nina esse tempo todo. O fim de uma jornada sempre é emocionante, então não vou mais prolongá-lo. Considerem-se livres.Preciso parar de escrever antes que eu comece a chorar aushuajskas