Fumaça. escrita por AnaBonagamba


Capítulo 1
Capítulo único - passar para passar.


Notas iniciais do capítulo

Para uma amiga, Vitória.



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Era maio. Que fase natural intrigante. Toda a primavera parecia aflorar apenas para minha total irritação.
Parti, mais uma vez, não sabendo onde iria chegar. Era a primeira parada, e não estava totalmente consciente do lugar em que me encontrava.

Sai do mundo bruxo sem pretensões ordinárias: queria apenas repensar. Minha mente trabalhava num estado confortável por hora, mas eu sabia que antes do esperado eu mesmo não teria força para suportar minhas próprias ideias. A mágica que se criava dentro de mim era de proporções tão abusadoras que meu ser se descalcificava, aos poucos, sucumbindo a algo de maior vontade. Era maio. Era a época perfeita para um isolamento temporário.

Levei comigo os velhos livros, e as poucas roupas que tinha. Um emprego singelo como o meu não me forneceria luxos diversos. O Sr. Burkes era muito preciso quanto ao meu salário, e eu era ciente de que ele não poderia fazer além daquilo que fazia por mim.

A primeira parada é, com certeza, a pior. As pessoas ficam extasiadas por ar, saem apressadas, batendo umas às outras. Irracional, seria a expressão correta. Não me movi, e nem tinha motivos. Voltei a atenção à leitura, a qual tinha interrompido ao estrépito do apito do trem, e acariciei a capa de "Hogwarts, uma História" como quem acaricia os ombros de um parente ancião e enfermo.

Não notei presenças no vagão. A propósito, nada notei. Ela entrou sorrateiramente, muito silenciosa, passos tão suaves que poderia ficar onde estava, observando-me, por horas, se eu não sentisse uma leve rajada de vento.

- Olá. - disse a moça. - Não quer sair um pouco? Ficar muito tempo em ambiente fechado não faz bem.

Não respondi.

- Rapaz, não me ignore...
Abruptamente joguei o livro no colo e me ergui, encontrando de praxe os olhos azuis da menina.
Ela era muito bela, de fato, mesmo que para uma trouxa. Tinha os cabelos longos e loiros, cheios de caracóis, e um rosto bem feito. Neste, um sorriso singelo ao reparar em minha reação. Parecia acostumada a seus próprios encantos.

- Desculpe-me, - sentei-me novamente. - eu estava concentrado em minha leitura.
- Oh! - ela pareceu bastante chocada. - Eu é que peço desculpas. - Sorriu. - Observava-o através da minha cabine e reparei que você mal se movia, pensei que estava sentindo-se mal.

Por hora fiquei estagnado. Estava ela observando-me? A quanto?

- Eu não socializo em trens, normalmente. - disse austero. - Na verdade você é a única pessoa que eu já conversei numa viagem, mesmo que na primeira parada.

- Ah! - ela sentou-se ao meu lado. - Eu não vou muito quieta, na verdade. Sempre faço amizades, pra não viajar sozinha.

- Neste caso... - ergui minha mão respeitosamente. - Muito prazer, meu nome é Tom.

Ela sorriu devido meu ato cordial.

- Muitíssimo prazer Sir Tom, eu sou Céline.

- Veio da França?

- Na verdade apenas nasci na França, vivo na Inglaterra.

- Interessante. É de Londres?

A garota pareceu extasiada com minha leva de perguntas.

- Não, sou de uma cidadezinha do interior.

Parei novamente, notando os traços femininos dela. Era demasiada delicada, e trajava uma roupa muito farfalhosa para quem viajava a uma cidade pequena. Seus gestos, apesar de espontâneos, tinham seus toques de finura e destreza, típicos de alguém da alta sociedade.

- Viaja sozinha sempre? - perguntei curioso e transparente.

- Quase sempre, apesar das preocupações de minha mãe. Meu pai trabalha muito, e ela fica presa aos caprichos dele, por fim culpa-se por essas liberdades. Eu estudo balé em Londres.

- Interessante, pois! Muito! - sorri para ela.

- Você estuda? Parece um advogado, como se veste... - ela riu delicadamente.

- Não, de fato não. Sou vendedor numa loja de antiguidades.

- Vendedor? - estranhou. - Não parece um vendedor, com esse porte.

Meu porte ainda não revelava minhas pretensões futuras, mas com certeza dava-me outras revelações que aquela moça bonita não desvendaria reparando apenas em minhas roupas. Desviei meu olhar do dela, e observei a paisagem por alguns minutos, tentando deixa-la desconfortável.

- Perdoe-me, não quis ofende-lo em maneira alguma...

Não respondi. Continuei a observar o monte, ainda seco das vertigens do inverno, tentando recuperar toda a devastação do frio, e a dor do jubileu.

- Não me ofendeu, Céline, na verdade...só me fez pensar. - disse eu, ainda virado para a janela. - Me fez pensar em algo que eu gostaria muito de ser.

- Pois veja! E o que gostaria de ser?

Não respondi, novamente, deixei que o silencio dominasse os segundos que me afastavam dela, e de repente o trem estrepitou na estação, o mesmo barulho e inexorável bagunça novamente presentes.

- Devo ir agora, Tom. Prazer em conhece-lo. - Céline estendeu a mão e eu a apertei suavemente.

- O prazer foi meu, querida Céline.

Antes que eu pudesse voltar a meu êxito e leitura Céline apareceu novamente na porta da cabine, aquele mesmo sorriso em seu delicado rosto, dizendo:

- Sou de Little Hangleton! Se passar por lá algum dia, procure por Cecília Wright, é minha mãe. - e saiu.

Mesmo sem usar magia, ela se revelava. Eu podia apostar por minha cabeça que a moça era de Little Hangleton apenas pela forma como ela falava. Se algum dia encontrasse Céline não a daria reconhecimento, somente absorveria de seus olhos azuis o brilho de um passado que já estava além de minha própria razão.

O trem partiu, e com seus movimentos o monte seco se foi, deixando em seu rastro um punhado de fumaça.


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