3 Meses Com Annie escrita por Tamires Nogueira


Capítulo 4
Capítulo 4: P.S.


Notas iniciais do capítulo

P.S.,
É, ela devia ser linda. E ser preso não deve ser tão ruim quanto parece. Vitor é gente boa mas...



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17 de Julho

Uns dias depois, paguei e pedi pra instalar tv a cabo. Minha avó não poderia dizer nada, porque de jeito nenhum ela estava perdendo algo.

Vinte e seis nesse fim de mundo. Ainda estou trabalhando. E a cada dia odeio mais aquilo. E as pessoas que vão lá. Teve dois caras, que me fizeram esperar 18 minutos para escolher um peixe. Como se isso não bastasse, as perguntas de um deles me deixavam com vontade de antecipar minha morte...

— Como está a perca?

— Oi? Como é que eu vou saber?

— Como é que é?

— É perca! Tenho certeza de que é fresco. Tenho certeza que o sabor é o mesmo de sempre. Eu não posso pagar pra comer aqui então... Como é que eu vou saber?

Okay, ele despertou minha curiosidade... Eu fui até a cozinha, perguntar pro Vitor que sabor tinha a perca...

— O que?

— A perca? Qual o sabor?

— Hm... é bom... Mas o bagre é melhor.

— E como é o sabor do bagre?

— Pera ai... Quer dizer que nunca provou nenhum peixe?

— Pffff! Claro que já! Qualquer um ja provou um peixe...

— Não estou me referindo a sardinha enlatada ou em conserva.

— Okay... talvez eu não.

— Então, vem aqui... Olha, esse aqui é a perca tá bom?

Vitor pegou um garfo, e que na ponta tinha um creme branco. Isso não tinha que se parecer com um peixe? E na verdade... o gosto não é lá essas coisas. E depois, ele veio com outro garfo, mas dessa vez com bagre.

— Esse é meu preferido, então seja legal com ele. — ele riu.

— Esse aqui é muito bom!! ­— E era mesmo!!!!

— Foi você que fez?

— Foi...

Voltei para a mesa daqueles caras com dois pratos com bagre. E eles adoraram.

— O que é isso? — perguntou o mais velho dos dois.

— É bagre. — eu respondi com um sorriso de orelha a orelha.

— Mas eu não pedi isso, eu pedi a perca.

— Vai por mim, você quer o bagre. A perca é boa, mas o bagre é muito melhor.

Eles se deram por vencidos e aceitaram o prato e quando voltei tinham limpado tudo.

Fim do expediente! 400 reais hoje. Isso está começando a me agradar! E voltando pra casa... Eu tinha aprendido a lição, agora, eu voltava pra casa pelo caminho certo, sem passar por becos, ou ruas escuras... Ou o Parque da Represa. Mas de vez em quando, ainda tinha uns caras de bicicleta que mexiam comigo. E tinha um atrás de mim...

— Olha vai ser muito difícil andar de bicicleta depois que eu quebrar as suas pernas!!!!!

— Nossa Annie, que violência!

Eu conhecia aquela voz...

— Ah Vitor, é você. Achei que fossem uns caras que sempre mexem comigo...

— Hm.. Annie, você já saiu dele?

— Do quê?

— Desse escudo. Você sempre anda por ai, na defensiva, nunca liga pra nada e sem tempo pra ninguém. Que tal eu me aproximar e te dar o que você precisa?

— Eu não preciso de nada. — eu estava me virando pra continuar seguindo meu caminho, mas ele pedalou até ficar ao meu lado e continuou a falar...

— Todos precisam de alguma coisa, Annie. Como agora, você precisa de uma carona.

— Nisso ai?

— Sim. — disse ele sorrindo com orgulho.

— Acho que dois corpos não cabem nisso. Pelo menos pediu permissão pro seu irmãozinho pra pegar a bicicleta dele?

— Okay, vou te contar uma coisinha sobre isso aqui. Isso é uma obra prima da engenharia, e também resultado do meu amor, e do meu suor. Você não pode ficar falando dela assim não, tá? Quer saber, eu mudei de ideia, não vou te dar essa carona, vai pra casa andando agora. — ele sorria. Eu sabia que estava brincando...— Ou melhor... Só se você prometer que vai ser legal, e boazinha comigo?

— Eu prometo. Você é sempre assim tão sensível? É o mimadinho da mamãe?

— Ta legal, isso é proibido, é como se fosse algo azedo na minha cozinha. Eu vou fingir que nunca aconteceu. Ok? Vamos.

Eu sentei no guidão, e apoiei os pés em uns canos que tinham do lado da roda. Era uma daquelas bicicletas que usam para esportes. Mas eu não quis perguntar se ele era um desses esportistas, ou se tinha ela porque foi a mais barata que conseguiu. Vitor me ajudou a subir, e me puxou, colocando a mão na minha cintura. Era a primeira vez que eu deixava um menino encostar em mim. Quer dizer... Daquele jeito. Apesar de ter ficado com alguns caras pela vida, nunca senti nada assim, quando eles encostavam a mão em mim. Era como se a mão dele fosse quente demais para mim, e me fizesse ter arrepios. Mas eu gostava. Não conversamos pelo caminho, mas ele insistia em fazer manobras, e me ver gritando de medo. Até que era engraçado. Uns caras mexeram comigo na rua, mas não do jeito mau e malicioso, eles riram dos meus gritos e um deles parecia ser amigo do Vitor, o mesmo que disse "A ruivinha só não quer a gente porque nóis é pobre". Sim, eu ri muito com isso.

Vitor me levou em um estacionamento abandonado. Ele era fechado com telhado de vidros quebrados, por onde entrava a luz da lua, e tinha umas janelas, quebradas e algumas pintadas com tinta preta. Ele parou de repente, e eu pulei da bike, quase caindo de cara no chão

— Não teve graça! — eu disse enquanto arrumava minha blusa.

. Aquele silencio entre nós dois estava começando a me deixar constrangida, e eu queria qualquer assunto naquele momento. Eu toparia falar até de séries de tv nojentas e histórias biarras dos famosos mas... Uma coisa chamou minha atenção antes de eu dizer qualquer coisa. Vitor tinha uma tattoo no pulso, com as iniciais "PS"

— Ela devia ser bonita.

— Quem?

— P.S.

— Na verdade, era "ele".

PERA. O QUE???? É sério isso? Por quê? Eu tentei agir normalmente, mas ele percebeu que eu tava olhando ele tipo "Hmmmm danado". Droga!

— Não, não pensa besteira. Ele era meu amigo. Meu melhor amigo.

— E... ele também tem suas iniciais tatuadas no pulso?

— Não.

— Porque não?

— Porque eu não estou morto.

— Entendi... — ai droga! Morte... Desde pequena, eu aprendi que o assunto "morte" pra algumas pessoas incomodava. Não incomodava a mim, mas a ele eu já não tinha certeza, já que ele ficava pelando em círculos em volta de mim e eu não conseguia ver seu rosto. E eu ficava rodando junto tentando acompanhar ele... Eu quis mudar de assunto, o clima estava começando a ficar pesado...

— Então... É assim que vocês se divertem por aqui?

— Eu não. Eu meio que tento não me divertir. Procuro ficar trabalhando. Eu tenho um talento incrível pra causar problemas e trazer sofrimento a todos.

— Hm... Somos dois então. E você quer ser um chefe?

— Claro. Quero ter meu próprio restaurante.

— E onde você aprendeu a cozinhar? Praticando em casa? Botando fogo em algumas cortinas?

— Na prisão. — Ele parou de pedalar, e largou a bicicleta no chão.

— Mentira!

— Não, sério! Eu fui preso, só que eu era menor na época.

— E por que?

— Roubo de carro.

— Isso é brincadeira, você... Você não tem cara de quem faz isso...

Não mesmo!!! Tão lindo... Pele branquinha, cabelo preto... olhos azuis... lábios rosados e fininhos e que deviam beijar tão bem...Okay voltando á história!!!!

— Só porque.. eu me visto bem ou porque eu sou um tremendo gato?

— Metido! — SIM!!! Por isso mesmo seu lindo!

— Mas é verdade, não é tão grave assim, mas eu não me orgulho disso. Mas eu não faço mais isso.

— Então o sistema penal te corrigiu totalmente!

— Vou te falar uma coisa... É um milagre que eu tenha conseguido sair de lá. Quando eu tava lá, eu caí na real. Tipo, se eu voltar, vou acabar mal.

— Entendi... Mas ainda vai roubar uma BMW pra mim, né?

— Pra você? Hm... qualquer coisa!

Por que eu digo as coisas que eu digo? As palavras saem todas erradas. As vezes eu gostaria de não poder falar nada.

Eu gosto dele.

Naquela noite, ele me levou pra casa. Não vi meus avós, acho que já estava dormindo. No dia seguinte, era sabado, então, fiquei em casa a manhã inteira, mas trocando sms com Vitor. E minha avó ficou "me obrigando" a assistir um documentário na Discovery Channel. Meu avô me chamou pra ir no píer com ele, mas eu ja tinha planos. Eu ia sair com o Vitor depois do almoço, ele disse que me levaria em um lugar legal. Mas, antes... Minha avó quis convidar ele pra almoçar. Okay.

— A Sra cozinha muito bem. — Vitor foi o primeiro a puxar assunto.

— Obrigada!

— Vitor é chefe... Sabia vovó?

— Oh, mesmo? — perguntou meu avô.

— Não, na verdade, sou só cozinheiro ainda. Mas estou trabalhando pra ter meu próprio restaurante um dia.

— Por que não conta pra eles onde aprendeu a cozinhar?

— Annie... não faz...

— Ele aprendeu na prisão. — eu vomitei as palavras praticamente.

Meus avós, principalmente minha avó, já mudou seu jeito de olhar para Vitor. Uma sobrancelha arcada e uma ruguinha a mais na testa. Gostei disso. Não por ele, mas por ela desaprovar mais uma coisa que eu faço.

— Ele foi preso por roubar carros. Não tem problema nenhum nisso. Não é vovó?

— Então isso faz de você um ex condenado? — meu avô era mais... como posso dizer? Legal? Ele sempre entendia os dois lados da história, e sempre fazia ou dizia o que era certo. Era uma das coisas que eu gostava nele.

— Sim senhor, mas eu mudei completamente. Não faço mais nada disso.

— Eu entendo, e entendo que um tempinho na prisão muda qualquer um. — Minha avó estava sendo irônica. Será que se eu enfiasse o garfo na garganta dela, e escondesse o corpo no porão, alguém sentiria falta dela? Acho que sim. E saberiam que fui eu.

— É sim. A galera que estava comigo lá, na detenção juvenil, entrou e saiu de lá várias vezes. Vendo isso que eu percebi que eles saiam de lá, do mesmo jeito que entravam. Sozinhos. Então eu resolvi me deixar fora de tudo isso.

— Claro que tivesse sido melhor, se não tivesse sido preso...

— Sim senhora.

Silêncio.

— É aipo nessa salada de batatas? — perguntou Vitor, me fazendo ter um sobressalto com sua voz.

— Uhum... — respondeu minha avó, com a boca cheia, mas sorrindo. Droga!

— E com um pouco de pepino em conserva?

— Uhum, isso mesmo! — ela abriu um sorriso.

— Pensei que minha mãe fizesse a melhor salada de batatas, mas essa é melhor.

— Obrigada!! — ela sorriu mais ainda. — É uma receita da minha mãe.

Merda!!!!! Ela não tem que gostar dele.

— Se importa se eu roubá-la? — disse Vitor, sorrindo.

— Hmm, pensei que tivesse parado de roubar? — ela ainda estava sorrindo!!! Mas que droga!

— Prometo lhe dar os créditos!

— Ah, então tudo bem!

Mais sorrisos? O que é isso? E eu estava de fora de novo. E Vitor ficou bravo comigo. Estávamos no píer quando discutimos.

— Você fez besteira. Contou meu segredo só pra provocar sua avó.

— Foi só uma piada!!

— É, e eu não quero ser o tema da sua piada, ok? Qual é o teu problema? Por que você é assim? Nem pensou duas vezes em me deixar sem graça, só pra poder implicar com ela. Sabe o que mais me incomoda, além de estar brincando comigo? É ver esses seus... olhos grandes... e lindos e... fundos... Sabe o que é estranho e mais me incomoda em você? É que seus olhos são castanhos e deveriam ser escuros e sem profundidade...iguais aos outros mas não... Eles insistem em me afogar e... — ele estava sussurrando e a menos de um palmo de distancia do meu rosto... E aqueles olhos azuis...

— Você tá querendo me beijar? — eu perguntei rindo. Ele não conseguia ficar bravo comigo!! Ha!

— Sim, lógico que eu quero, e garanto que todos os caras nesse píer também querem...

E nos beijamos. 

Seus lábios eram frios demais e delicados nos meus. Do mesmo jeito quando tomamos água gelada e sentimos nossa boca fria. Era assim... E as mãos dele dançavam com sincronia em minhas costas e em minha cintura, me fazendo ter espasmos  e de vez em quando uns arrepios de leve.

Andamos de mãos dadas por um tempo, até encontrarmos um lugar vazio. Era como o píer, só que menor, tinha uma loja, eu acho, abandonada. Era tudo aberto, e as paredes estavam pichadas. Mas era de frente pro mar. E a vista era linda. E nos beijamos mais um pouco, encostados na parede. Mas aí, ele pegou meu diário do meu bolso...

— O que é isso??

— Não é nada!! Vitor! Devolve!

— Não, deixa eu ver!

— Vitor! Não tem graça!

— O que é tudo isso? "Aprender a andar de monocíclo... " "Criar o primeiro museu de bala de goma..." "Aprender a falar fluentemente o idioma africano..."

— É sério, chega! Me devolve!

— Annie, o que é isso? — ele ria sem parar.

— É só... uma lista de coisas a fazer...

— Quer mesmo fazer isso? Perder a virgindade... Opa essa não está riscada!!

Ele ria..

— Já chega!!! Devolve! — e eu estava ficando irritada de verdade.

— Não, está ficando cada vez melhor!!!! "Como morrer...". — ele ficou em silêncio e parou de fugir de mim. — "Ser incinerada por um motor a jato..." "Ser atropelada por um carro" , "saltar do avião sem paraquedas..." Você quer mesmo fazer tudo isso?

— Claro!

— Você não pode fazer tudo isso!

— Para de rir de mim!!! É a unica coisa séria na minha vida, e você está rindo!!

— Annie, você quer matar alguém, isso não é certo! — e ele ria mais.

— Eu não quero matar alguém, eu quero ME matar. Não se preocupa com isso. Não é da sua conta.

Ele ficou sério de repente. E eu sabia que tinha falado besteira. Besteira pra ele... porque aquilo era sério pra mim.

— Para de falar bobagem.

— Não é bobagem. — eu arranquei meu diário da mão dele. — Eu não to falando bobagem.

— Por que você quer se matar? É a coisa mais idiota que eu já ouvi. Aliás, o dia todo foi simplesmente idiota. Pra começar que eu não deveria ter ido almoçar na sua casa...

— Não é minha casa. É a casa dos meus avós. E sabe o que eu acho idiota? Você querer seu próprio restaurante.

E mais uma vez, as palavras erradas saem pela minha boca sem eu ter controle delas. Mas não me pareceu ter afetado ele, então eu continuei.

— Olha, eu estou no ultimo ano do colégio... E depois o que? Ser como a minha mãe? Desesperada pra conseguir um marido? Ou como meus avós? Que tem medo da própria sombra? Vitor, eles estão presos no mundo pequeno deles. Você tem 17 anos e está se divertindo, curtindo a vida, quando de repente está com 60, vendo seus netos curtirem a vida deles, e você com medo da própria morte. Eu não. Eu não quero isso. Eu não vou viver essa parte ruim da vida. Eu quero parar enquanto eu estou no auge. Antes que a velhice me pegue.

Vitor, finalmente descruzou os braços, e me abraçou por trás, me fazendo ficar de frente pro mar. O abraço dele era bom...

— É uma visão extremamente cínica da vida... Mas você tem tanta sorte. Você é muito privilegiada sabia? Você deveria apreciar o que tem de bom.

— É exatamente o que eu estou fazendo. — Eu me virei, pra ficar de frente pra ele. — Eu estou tentando valorizar o que eu tenho de bom. Agora.

Não falamos desse assunto o resto do dia, e a noite, quando cheguei em casa... Bom, estava vazia. Procurei pelos meus avós, e depois fui até o quarto deles. E SURPRESAA!! Eles estavam transando! Eu achei que eles não faziam mais essas coisas. Credo!!!! Passei parte da noite, limpando minha mente daquela cena.


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Notas finais do capítulo

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