Retratos escrita por geezinha


Capítulo 1
Capítulo 1




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A tinta voou das mãos pálidas e trêmulas, borrando as imagens perfeitas nas telas. Um rio de lágrimas histéricas lavava seu rosto respingado de tinta, os cabelos negors grudados na fronte de marfim. Seus olhos injetados assemelhavam-se a uma janela, pela qual a perturbada alma presa espiava o espetáculo ensandecido lá fora. A doce loucura de um pintor em decadendência. Gerard não sabia o que buscava, porém sua única certeza era a de que algo não estava certo. As pinturas lindas desapareciam, sobre o movimento frenético de seus dedos alvos, borrando toda aquela tinta desperdiçada. O que estava faltando? Os quadros eram lindos, simplesmente perfeitos, mas... Não era o que ele queria. Estava insatisfeito.

Um grito rouco rasgou sua garganta, enquanto ele enterrava os dedos nos fios negros da basta cabeleira, a franja sedosa cobrindo-lhe os olhos. Prostrou-se, de joelhos, no chão, e tornou a gritar, confuso. Fitou o trabalho de meses, destruído em segundos. Vida medíocre. Por que ser um famoso pintor? Por que tronar-se um fútil consumidor? Se encher de bens materiais? Qual era o papel de tudo isso em sua vida? Qual era, afinal, a importância de se estar vivo? Prolongar todo esse sofrimento se apenas o fim é certo. Se a Terra algum dia o sepultaria, para ser profanado pelos vermes, devorado pelas vidas de consciência inferior. De que adiantava existir?

A tempestade de neve que desabava, do lado de fora da casa escura, chegara ao seu ápice, como que espelhando toda a loucura interior, sepultada no rapaz agora imóvel e ofegante. Seu âmago negro contorcia-se, o grito rouco preso no peito vulcânico, amargurado, repleto de um fel amargo, de uma mente intranquila.

Subitamente, Gerard levantou-se. Abriu a porta da sala de estar e saiu, recebendo aquela tempestade fria como um quente abraço acolhedor. Seus olhos dançaram. A ponte, o mar lá embaixo. Correu no meio da neve, não dando atenção aos pés descalços que reclamavam, queimando contra o gelo claro. Alcançou o primeiro degrau, pisando agora com mais cautela. A arcaica estrutura de ferro gemeu protestando. Um pedaço de pele da sola de seu pé grudou-se à fina camada de gelo, rompendo-se. A ferida deixou um rastro de sangue nos degraus seguintes.

Olhou para baixo. A água corria, plácida, indiferente. Para a natureza, não importava o fim de mais aquela vida. Gerard preparou-se, seus pés deixaram o platô firme, flutuando, temporariamente, pela atmosfera fria. Um baque surdo foi o único aviso. Seus pulmões queimaram. A massa líquida penetrou sua garganta, enchendo-a de um sabor salino. Que fim mais apropriado para um artista.

Já quase perdendo a consciência, pode divisar um segundo corpo na água. Braços o envolveram, puxando, e tudo foi o mais completo breu. Havia desfalecido.


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