O Sol Negro E A Lua Branca escrita por Gabby


Capítulo 31
Não Largue Sua Cruz


Notas iniciais do capítulo

Essas tranqueiras de criatividade... Desculpe. Agradecimentos à Néphélibate. Aproveitem o capítulo!



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Isshin abraçou suas filhas o mais forte possível — tinha medo de elas também estarem em perigo, como seu primogênito. Lá no fundo de seu peito corria uma sensação de que ele poderia proteger seus filhos de todos os males do mundo. No entanto, Isshin sabia que isso não era possível — fora esfregado na cara dele nos últimos meses.

— Ei, que cheiro é esse? — Isshin perguntou, sentindo um aroma forte e adocicado.

Yuzu sorriu.

— Minhas amigas me deram de Natal.

Karin fez uma careta.

— Me dá vontade de vomitar.

Ichigo chegou pela porta, parecendo um pouco como um morto vivo. Olhos ocos — como se sua consciência não estivesse ali, ou como se não tivesse consciência alguma —, pele pálida, olheiras e caminhado lento.

No entanto, ao ver suas irmãs ali, com as malas nas mãos, o rosto de Ichigo se iluminou. Ele não pretendia abraça-las tão de repente — nem era do seu feitio fazer isso —, mas Karin e Yuzu eram os únicos aspectos de sua vida que não haviam mudado por toda aquela guerra sobrenatural. E ele sentiu o anseio de que continuassem assim: seu porto seguro, onde ele pudesse se ancorar para suportar toda aquela tempestade.

///

Ishida estava, como sempre, elegantíssimo. Usava um terno de linho e sapatos bem lustrosos. Orihime notou suas roupas, com certa vergonha. Percebeu que ele nunca a vira sem o uniforme de copeira antes. Ficou se questionando se Ishida realmente estava interessado nela ou era apenas sua imaginação.

Estavam jantando na cozinha dos empregados, e Inoue não pôde deixar de notar o quanto aquele gesto significava. Uryuu era filho de um lorde e não precisava, de forma alguma, sentar-se a mesa com ela. Inoue ficou imaginando se ele sentava-se ali só por causa dela e o quanto Ishida faria por Orihime. Ouvira vagamente histórias de nobres que só queriam moças para aquela coisa e depois as largavam, porém essa ideia parecia absurda quando se tratando de Uryuu Ishida. Era algo completamente deselegante e desrespeitoso, que contrariava completamente os altos valores de Uryuu. No entanto, a ideia de alguém tão rico querer casar com uma copeira era fantasiosa demais até para Inoue.

— O que há? — perguntou Ishida, interrompendo seus pensamentos. — Pensas no ocorrido no porão?

Orihime ficou calada, pois se negasse poderia criar mais questionamentos.

— Orihime, eu sinto tanto por aquilo — disse Ishida. — Fui criado nesse ambiente; combato as sombras desse mundo desde sempre. Mas eu compreendo que, para você, isso tenha sido assustador. Nunca deveria ter contado.

— O importante é que você falou a verdade — replicou ela, com a voz rouca.

— Ás vezes, é melhor não saber — observou Ishida.

Orihime trincou os dentes.

Sempre é melhor saber.

Inoue lembrou-se do ocorrido com sua mãe. Ela ficara com um homem que pensara ser solteiro e a prometera em casamento. No entanto, este mesmo homem já tinha uma esposa e família. Ele a largara sozinha, grávida de Orihime. Ela fora fruto de uma traição — era bastarda — e isto a atormentava até hoje. Até hoje tinha a maldita marca da infidelidade de seu pai — os malditos cabelos ruivos.

Ishida respirou fundo, depois ajeitou os óculos — um tique que tinha.

— Orihime, acho que já é a hora... — Seus olhos se perderam em algum lugar de seu nervosismo. Quando sua consciência retornou, ele alcançou a mão de Orihime e a tocou, relutante. — Eu tenho cortejado você informalmente e acho que você merece mais.

Orihime emitiu um ruído de engasgo, porém não ousou dizer mais nada. O seu coração batia forte, quase saindo por sua boca.

— Gostaria de cortejá-la formalmente. Com a sua permissão, claro — Uryuu apressou-se a acrescentar, antes que a ruiva pensasse que ele estava sendo autoritário. — Damas de companhia, locais de encontro adequado... Tudo que uma moça tem direito, você sabe.

Orihime sorriu. Sabia que Uryuu nunca a desrespeitaria de forma alguma, no entanto achava muito nobre da parte de Ishida oferecer todas essas opções para fazer com que ela se sentisse mais segura.

— Seria uma honra — disse Inoue, baixinho.

Ishida retirou a mão da de Orihime e suspirou, animado.

— Gostaria que você conhecesse meu pai — disse ele. — Faremos um almoço no Dia de Natal e...

O corpo inteiro de Orihime tremeu de nervosismo, tanto que ela nem pôde se conter.

— Não posso! — exclamou. — Olha pra mim: não posso ir em um almoço com um bando de aristocratas! Sou uma copeira, lamento de dizer. Não tenho aulas de francês e piano; não sei nem ao menos escrever. Eu não uso luvas para proteger minhas mãos delicadas — até porque elas nem delicadas são! Trabalhei na roça até que vim para o centro, e daí então só lavei roupa.

Uryuu alcançou as mãos de Orihime, que gesticulavam desesperadas. A forçou as abaixar, acalmando-a. Deslizou os dedos por toda a extensão de suas mãos — a palma, os dedos, as cicatrizes, os calos.

— As suas mãos têm história, Orihime. Cada calo, cada cicatriz, é um relato de trabalho duro. — disse Ishida, os cílios tampando parcialmente os olhos azuis. — E é uma história que eu nunca acharei com nenhuma filha de aristocrata ou burguês. É algo só seu.

Orihime sorriu e segurou suas lágrimas de felicidade.

— No entanto, se você preferir que eu diga para o meu pai que você é apenas uma amiga, direi — continuou Uryuu. — Talvez o nervosismo caia um pouco de seus ombros.

Inoue mordeu os lábios.

— Prefiro, prefiro sim. Obrigada.

///

Rukia ajoelhou-se e encarou a cruz pregada em sua parede. Fazia algum tempo que não rezava. Com tudo aquilo acontecendo, ela nem pensara mais nisso.

No começo, pedira a Deus várias vezes para que Ele a salvasse daquela situação. No entanto, nada aconteceu. Rukia precisava carregar sua própria cruz.

Uma pequena aranha apareceu, inocentemente caminhando na cruz. Em seguida, um volumoso bando de aracnídeos invadiu e cobriu o objeto.

Rukia quase gritou, porém havia algo em sua garganta que a impedia de emitir qualquer som. Sentia aranhas caminhando sob sua pele; podia mesmo até ver as pequenas elevações no formato dos aracnídeos. Tentou respirar, porém engasgou. Soltava guinchos à procura do ar. Rukia sentia que algo segurava seu pescoço; o pressionava. Ela se debateu, tentando se soltar. Sua visão estava nublada, vertiginosa. A cruz cheia de aranhas parecia muito mais perto. Podia ver os olhinhos brilhantes das criaturas. Ela ouviu uma batida na porta. A cruz caiu no chão ruidosamente; as aranhas se espalharam e correram, fugindo e se escondendo nas frestas do objeto. Seja lá o que estava sufocando Rukia a largou. Ela caiu no chão, grata pela sensação de que suas costelas não estavam mais tentando perfurar seus pulmões.

Mais uma batida na porta, quase impaciente.

Rukia tossiu — uma tosse áspera que machucou sua garganta. De sua boca, uma pequena aranha saiu correndo. Rukia quase vomitou ao pensar naquelas patinhas peludas percorrendo sua garganta.

— Princesa Rukia? — chamou Neliel. — Posso entrar?

Rukia respirou fundo e se levantou. Alcançou a cruz e a pendurou no lugar.

— Obrigada — disse, visando Deus ao observar aquela cruz de madeira.

— Rukia! — Neliel chamou de novo; a voz carregada de preocupação. — Preciso te pedir algo.

— Já vou! — Rukia gritou, enquanto caminhava até a porta.

Caramba. O Diabo não a deixava em paz nem mesmo quando ela estava rezando.

///

Uma imensidão de vestidos e acessórios coloridos. As pessoas caminhavam pela loja, animadas em comprar uma roupa nova para o Natal. Orihime estava imensamente feliz e percorria deslizando todo o local, fascinada com os vestidos caros e belos.

Ela precisava de uma roupa nova para ir ao almoço na casa dos Ishida. Iria gastar as suas economias em uma loja do centro do reino, de classe média — porém, seus planos mudaram quando Rukia se ofereceu para comprar uma roupa elegante à Inoue em uma das lojas de mais prestígio do reino Kuchiki. Só pessoas extremamente ricas compravam lá. Inoue pensou, inicialmente, que ficaria deslocada — porém comprar roupas trazia alegria e conforto para qualquer mulher.

Rukia gostou muito de ouvir os ruídos de todas as moças ali presentes — os comentários, os gritos entusiasmados abafados por risadinhas. Neliel a pedira para ir até a loja e comprar um lindo vestido à Orihime. Ela havia aceitado o pedido de bom grado — afinal, tinha dinheiro o suficiente para deixar sua amiga feliz. No entanto, dinheiro não traria a felicidade de Rukia. Sorrisos de quem ela amava sim.

///

A catedral recém inaugurada cintilava. Lustres de cristal iluminavam o local; centenas de bancos enfileirados enfeitados com arranjos de flores. Vitrais enormes e coloridos davam um toque de delicadeza a aquele enorme estabelecimento. O padre, os coroinhas e diáconos marchavam pelo tapete vermelho. A igreja vivia sua primeira missa de Natal — Missa do Galo, à meia-noite.

Neliel sentava-se junto a família real em um camarote, de visão ampla a igreja. Jamais se sentira tão imponente e tão pequena. Aquela igreja era sensacional. A acústica era perfeita.

Ela ouvia com atenção a voz do padre enquanto percorria a plateia em busca de rostos conhecidos. Viu um cabelo laranja bem característico de Ichigo. Ele pedira para se sentar lá embaixo, junto à família. Neliel admirava-o por ser tão unido a seus familiares. Nell o seria também, se a sua família tivesse a metade da beleza da família de Ichigo — um pai que amava e tentava fazer de tudo por seus filhos; irmãos se que se amavam, embora tão diferentes. Uma família original e bonita — nada de opressão, muita espontaneidade e empatia.

Ela costumava ligar Ichigo á Rukia e vice-versa. Os dois omitiam, mas ela sabia bem que eles haviam passado algo de muito importante juntos. Neliel olhou para Rukia com o canto do olho — a princesa tinha uma postura firme e refinada. Usava um vestido dourado; o espartilho apertava sua barriga mais do que nunca nos dias de festa. O rosto estava bastante maquiado; o cabelo preso em um belo penteado. Parecia muito mais velha do que realmente era. Talvez por causa da roupa e maquiagem — mas também porque os acontecimentos a endureceram. Agora, sua alma e seus olhos eram calejados e pesados.

Neliel pensou em quantas pessoas os acontecimentos do último ano haviam endurecido e o primeiro que veio a sua mente foi Grimmjow. O príncipe, que tinha fama de ser mimado, agora aparentava simplicidade. Ficava o tempo todo em seu quarto; não lembrava de trocar de roupa ou pentear os cabelos. Coisas de rotina, mas ele a perdera completamente. A vida de Grimmjow girava em torno do pai e do reino. E então, de repente, ele não tinha mais nenhuma dessas coisas. Perdera o chão. Isso quebrara sua mente. Neliel tentava concerta-lo — não que uma perda tão grande pudesse ser esquecida. Mas ela precisava alegrá-lo, fazer com que seguisse a vida, antes que cometesse suicídio. Ela insistira para que o príncipe comparecesse à Missa do Galo — talvez a palavra de Deus o fizesse algum bem —, mas ele não quis sair do quarto. Nell não quis forçá-lo. Sabia bem o que era desanimar com a vida.

Neliel sabia que não era uma bruxa. Rezava todos os dias; ia à igreja duas vezes por semana. Sua alma havia sido purificada. No entanto, as vozes continuavam ali. Ela era doente. Precisava de tratamento — no entanto, tinha medo de se internar. E se nunca fosse curada? As pessoas que ela via realmente morriam. Quem os teria assassinado?

Pensou em todos os familiares daquelas pessoas mortas. Pensou na mãe de Cassandra; pensou em Anthony. Talvez a vida dessas pessoas tenha sido ainda mais mudada do que a dela e a de Grimmjow.

Um pensamento, de repente, passou pela cabeça de Neliel. E se ela houvesse matado todas aquelas pessoas? Atolada na loucura, era realmente possível que ela tivesse feito tudo aquilo sem se lembrar?

Viu o cervo negro em meio a multidão. Ele acariciava com o focinho algumas crianças; bufava para outras pessoas. Ás vezes, o cervo virava para Neliel e a olhava. E não importava o quanto ele estava longe — ela conseguia ver o reflexo do próprio rosto nos olhos negros do cervo.

Quando Neliel ajoelhou-se para falar com Deus — as mãos juntas e suplicantes, uma apertando a outra —, pediu para que tudo aquilo acabasse. Pediu para que ele aliviasse o peso sob seus ombros.

Quando a missa acabou, Neliel desceu as escadas com Rukia de braço dado. A princesa sussurrava, confidenciando o quanto estava com fome. Os lindos vestidos das duas comprados na loja farfalhavam atrás — vermelho e dourado.

Neliel abaixou a cabeça quando viu que os monges também estavam na celebração. Usavam as típicas túnicas marrons, mas dessa vez parecia haver algo de especial nos rostos brancos. Algo radiante em seus olhos, diante do nascimento de Cristo.

Neliel não viu Davi até que ele se aproximasse dela — o monge se misturava perfeitamente aos outros. Uma mecha de seu cabelo desprendeu-se do penteado quando ela começou a praguejar internamente. Havia evitado Davi desde aquele sonho — ele era um monge; estava comprometido com Deus. Aquilo soava errado de tantas formas.

— Ei, srta. Neliel, faz tanto tempo que não a vejo! — sorriu Davi. — Por onde esteve?

Neliel sorriu nervosamente e apertou o braço de Rukia.

— Afazeres no castelo.

Rukia franziu a testa. Davi continuou imóvel; o sorriso parecia pregado em sua face.

— Princesa Kuchiki, permita-me dizer que está fabulosa esta noite. — A voz dele era suave como o tilintar de sinos. — Tenho sentido falta da família real aqui na missa.

Rukia fechou os olhos, sorrindo, depois os abriu. Era incrível como ela ocultava e revelava as duas brilhantes pedras preciosas que eram seus olhos.

— A vida real tem sido bem corrida, na verdade. Muitos afazeres políticos. — Rukia conseguia misturar casualidade com diplomacia perfeitamente. Ás vezes, Nell esquecia que ela havia sido treinada para isso. — Mas peço desculpas pela ausência à Igreja. O reino dos homens acaba, mas o de Deus é eterno.

Davi concordou.

— Então, eu estou curiosa — começou Rukia, em um tom cantarolado e um sorriso no rosto. — Como você e Neliel se conheceram?

Davi ficou em silêncio por algum tempo, com os olhos fechados. As pálpebras dele eram finas e frágeis, mas os cílios eram compridos. O monge parecia ser moldado por um artista com muito tato e delicadeza.

— Infelizmente, não em boas circunstâncias — respondeu ele. E não disse mais do que isso por algum tempo. — O que vocês acharam da catedral?

Rukia se livrou do braço de Nell para gesticular. A dama de companhia ficou calada e de cabeça baixa durante toda a conversa entre a princesa e o monge. Davi, de vez em quanto, a dirigia olhares. Neliel não tinha coragem de olhar de volta — ele tinha olhos castanhos escuros, macios e adoráveis. Eles pareciam errados na face de um monge.

Rukia olhou para algum ponto a sudeste dela, depois pediu licença e saiu. Byakuya a aguardava com os braços cruzados, usando um imponente e belo traje que ressaltava sua pele de porcelana. Ele queria que a princesa conhecesse alguém — um dos importantes fornecedores de madeira da região.

Neliel crispou os lábios, pronta para pedir licença. Antes disso, observou o resto das pessoas indo embora da igreja. Só sobraram os do clero, a família real e os interessados a conversar com eles.

— Eu não sei bem o que aconteceu com você — começou Davi, com a voz contida. Os olhos dele eram fixos nos dela. — Não sei bem porque tem se afastado...

— Estou ocupadíssima no castelo, Davi... — justificou-se.

— Você não sabe mentir. Vou dar graças a Deus por isso — cortou Davi. Neliel lembrou-se por um momento de Anthony e em como as mentiras o haviam encrencado. — Me conte o que realmente está acontecendo com você.

Um sorriso irônico escorregou por sua face.

— Vou ter que me confessar?

Davi suspirou.

— Não tenho posto para confessá-la, Nell. Sabe disso. — Davi deu de ombros. — Encare como uma conversa de amigos.

Neliel respirou fundo. Ela não queria ficar de mal com ele. Gostava de Davi. Ele era seu amigo muito antes de ter um sonho ridículo com ele. O monge sempre a transmitira segurança e nunca a julgara. Era seu suporte.

— Não sei se você sabe, mas o Hueco Mundo foi invadido — contou. — E há um príncipe que perdeu o pai. Ele está na nossa casa agora. É muito triste. Grimmjow fica o dia todo no quarto e come como um passarinho. E há vezes que eu o entendo.

///

Era estranho sair de uma enorme catedral e ir para uma casinha na periferia. Mas Ichigo se sentia melhor assim. Ele era atraído pela simplicidade — por isso, não gostara da igreja. Sempre pensara que todo o clero e seus estabelecimentos deveriam ser humildes — já que Jesus era assim. Mas era justamente o contrário. Enquanto pessoas passavam fome, nobres enviavam seus filhos para mosteiros. Isso garantiria um futuro rico.

Ichigo sentiu o cheiro de comida quente. Yuzu havia servido a mesa — frango e risoto. Ele sentiu seu paladar comichar enquanto sentava-se á mesa e se servia. Fogos de artifício estalaram em sua boca. Estava com tanta saudade da comida de Yuzu.

Apesar de todas as coisas que ocorreram, apesar de Ichigo ter sido completamente desestruturado, algumas coisas ainda continuavam iguais. A comida de Yuzu era uma delas. As discussões entre o seu velho e Karin ainda continuavam constantes. As ceias eram tradicionais e seriam eternas. Ichigo nunca deixaria de amar sua família — e ele esperava que sua família nunca deixasse de lhe amar.

///

Os lábios de Hinamori formigavam. Ela os tocou, pensando no beijo que Toushiro a dera antes de sair para ir à Missa do Galo.

— Ei, você vai à catedral conosco — dissera ele, depois de beijá-la. Suas bochechas estavam rubras; o nariz um pouco franzido. Momo fez silêncio. — Não vai?

Ela negou com a cabeça, desconfortável. Estava sentada na beirada de sua cama, as mãos no colo. Toushiro havia se levantado depois do beijo. Os dois se encontravam no quarto dela — ninguém sabia dos beijos apaixonados que trocavam. Sua relação não estava pronta para ser julgada pelos outros. E, francamente, Momo nem ligava se aquilo era segredo ou não. Os homens do castelo do Hueco Mundo já fizeram-na coisas bem piores e ela não pôde abrir a boca.

— Vampiros não podem entrar em igrejas — ela explicara. — São sagradas.

Hitsugaya assentiu com a cabeça.

— Se eu encostar uma cruz em sua pele, você queima ou algo assim?

Momo olhou para o anel em seu dedo. Aquele que Ulquiorra a dera antes de queimar ao sol. Depois, com o grito dele ecoando em sua cabeça, fez que sim.

O castelo estava deserto. Todos haviam saído para ir à Missa do Galo. Momo ficara responsável por cuidar do banquete da meia-noite. Se esforçara bastante para que ficasse bem gostoso, pois ela sabia que todos estariam com muita fome quando chegassem. Assou um porco inteiro, além de um belo salmão defumado. Como acompanhamento, fez farofa, purê de batata e polenta.

Ela estava cortando tomates para fazer uma salada quando lembrou-se que não vira Grimmjow saindo de casa. Subiu as escadas rapidamente, rumo ao quarto do príncipe. Momo queria conferir se Grimmjow não precisava de nada, afinal ele não comera nada há algum tempo e Hinamori sabia o quanto o apetite dos lobisomens era voraz.

Antes mesmo de abrir a porta, seu olfato vampiresco denunciou cheiro de sangue. Momo só tomava de animais há algum tempo (em Hueco Mundo, não era incomum que tomasse sangue humano, no entanto no Reino Kuchiki era proibido), então aquele cheiro a fez salivar. Ela tinha certeza absoluta de que não era sangue animal.

Poderia ser humano?

Esse pensamento contorceu suas entranhas. Será que Grimmjow havia capturado uma pessoa?

Ela abriu a porta, com as mãos tremendo. Lobisomens não gostavam de serem interrompidos durante àquela hora. Se Grimmjow estivesse descontrolado, provavelmente iria atacá-la — e o príncipe dos lobisomens tinha muito mais força do que uma simples vampira.

Ela viu alguém deitado na cama, agonizando e gemendo. Com cuidado, ela adentrou o quarto. Silenciosamente, Momo caminhou até à cama. O sangue vinha todo de lá. O cheiro metálico do fluido instigava suas presas — elas já haviam crescido e pressionavam e perfuravam seus lábios.

Quando já estava bem perto, algo brilhou mais do que o sangue que tingia os cobertores brancos de vermelho. Dois olhos azuis. Era o príncipe Grimmjow.

Momo gritou com o susto, mas logo depois se recompôs. Havia muito sangue, de forma que ela teve dificuldade a encontrar a fonte do sangramento.

— Quem fez isso com você, príncipe? — Momo perguntou.

Grimmjow estava quase inconsciente — o brilho dos olhos se apagava; as pálpebras fechando como cortinas quando a peça termina. Ela estava desesperada, mas respirou fundo e focou. Encontrou a fonte do sangramento — o pulso do braço direito.

— Eu — respondeu Grimmjow, em um sussurro. — Desnutrição demorava muito. Eu precisava acabar logo com isso.

O mundo começou a rodar. Sangue vertia dos pulsos de Grimmjow, ensopava suas mãos, os lençóis, pingava no chão em gotas. Momo estava paralisada — tentava conter o impulso de beber aquele líquido doce, nutritivo, viscoso e encorpado. Nunca tomara sangue de lobisomem antes. Talvez, esta fosse a chance de se vingar de todo o sofrimento que aquela espécie a causara.

Momo abriu a boca, as presas perigosamente posicionadas.

E a fechou logo depois.

Urahara Kisuke e Shihouin Yoruichi chegaram, correndo. Perceberam de imediato do que aquilo se tratava. Kisuke arrancou um pedaço de sua blusa e amarrou forte no pulso de Grimmjow. O tecido ficou ensopado de sangue logo em seguida, então Yoruichi também se empenhou em tentar curá-lo o mais rápido possível.

No entanto, Grimmjow não estava disposto a deixar. Com a pouca força que ainda tinha, tentou afastá-los de si. O braço que não estava cortado golpeou Yoruichi com as garras.

— Não resista! — berrou Yoruichi.

Urahara prendeu o braço de Grimmjow com suas duas mãos — as veias saltando. Ele gemeu e trincou os dentes, lutando.

— Me deixe ir para o Inferno! — ganiu.

Momo não podia deixar de compará-lo a um animal ferido, almejando ser sacrificado.

— Você não vai para o Inferno, Grimmjow — disse Yoruichi, tentando fazer com que ele se sentisse bem o suficiente consigo mesmo para lutar por sua vida — ou pelo menos não lutar por sua morte.

— Então como é que vou encontrar meu pai? — ele gemeu, a voz fina e apagada. Depois, finalmente desmaiou.

A inconsciência do homem permitiu que Yoruichi e Urahara contivessem o sangramento. O processo de estabilização de Grimmjow foi lento e deixou os dois exaustos. Os lindos trajes de festa foram estragados pelo sangue — o casal não foi à missa, porém iria jantar no castelo —, assim como os lençóis da cama. Não importava mais o quanto eles lavassem e esfregassem, a mancha seria eterna. Hinamori sabia por experiência própria — já havia lavado muitas roupas assim.

///

Grimmjow fora transferido para um outro quarto. Neliel o acompanhara desde que chegara e soubera da notícia. Chorava muito e apertava forte a mão do príncipe. Fora Yoruichi e o médico que viera ao castelo, ela era a única que parecia se importar.

Toushiro viera conversar com Hinamori — havia até mesmo abraçado-a —, mas depois fora para seu quarto se trocar. Momo continuava no quarto de Grimmjow — o vermelho parecia indecente no lençol.

Olhou para uma poça de sangue, logo depois para a porta. Sentia tanta vergonha de si mesma pelo que iria fazer.

Hinamori trancou a porta, logo depois foi até a poça de sangue e se ajoelhou. Suspirou — suas presas cresceram. Ela se abaixou e encostou a boca no chão sangrento, lambendo o líquido.


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