Os dias passavam depressa na caverna, nos mal podíamos notar quando terminava um e começava o outro. A vida estava fácil, se normalizando aos poucos. Alguns ainda estranhavam minha presença, mas me tratavam com respeito, como se estivessem a poucos passos de confiarem em mim. Eu não os culpava, também levara um tempo para me acostumar com eles, e agora, tempo era o que tínhamos de sobra.

Eu podia sentir o calor do sol que estava nascendo, pela parede rochosa da caverna, se misturando ao meu calor e ao calor que o corpo de Ian imanava. Seus braços firmes me prendiam a ele, não da forma como Jared me segurava quando eu estava no corpo de Melanie, pelo contrário de um jeito firme porém doce, como se quisesse apenas mostrar para mim que ali, naquele abraço, eu estava segura. E era exatamente assim que eu me sentia, como se não houvesse lugar mais seguro e acolhedor no mundo.

Ian ainda estava dormindo profundamente, seu corpo relaxado e seu rosto sem expressão, como se estivesse em paz. Seu peito se erguia e depois relaxava de acordo com a sua respiração, o que me fazia, vez ou outra, me render ao sono. Mas não naquele momento. Já tinha se passado quase uma semana desde que Jared vira um Buscador, uma semana desde que eu pensei seriamente naquele investida estúpida e suicida. Só que agora ninguém mais falava no assunto, como se tudo o que estava acontecendo nos arredores da caverna fosse um terrível pesadelo, como se o que acontecesse lá fora não pudesse ultrapassar as paredes. Eu gostaria de ver dessa forma. Em todas as minhas vidas, nunca senti tanto medo. Não por mim, eu temia por eles, por todos eles. Desde Ian até Doc, todos eram importantes para mim, eu me preocupava com eles mais do que comigo mesma.

Tanto que o primeiro pensamento que veio em minha mente quando Jared avistou o Buscador foi me entregar à eles, porém, após o puxão de orelha de Melanie, eu sabia que de nada adiantaria, só os colocaria em mais perigo. Sabe-se lá quem eles colocariam nesse corpo. Poderia ser um buscador, que assumiria meu corpo e minhas memórias apenas para saber aonde os humanos fugitivos se encontravam. Eu não correria esse risco. Só tinha uma forma de ajudá-los e seria daqui de dentro.

- No que está pensando, Peg? 

Eu não havia notado que Ian tinha acordado, só pude fazê-lo quando sentir a ponta de seu polegar fazer desenhos sem forma certa, em minha testa. 

Procurei seus olhos, erguendo a cabeça brevemente para encontrá-los. Deixei que meus lábios formassem um sorriso leve antes que eu respondesse.

- Não sabia que já estava acordado. - Ele devolveu o sorriso, mas em sua testa as sobrancelhas se juntavam, apenas esperando a resposta de sua pergunta. - Estava pensando na vida. Em como ela é boa.

Seu peito emitiu o som de um suspiro que logo escapou pela sua boca. Mas ele não estava triste, nem nervoso, aquele suspiro apenas antecedeu a um sorriso maior, repleto de esperança.

- Há dois anos eu não enxergava dessa forma. - Começou. Encontrei minha cabeça em seu peito e apalpei minhas mãos no mesmo, esperando que ele continuasse, queria ouvir um pouco ao menos de sua história. - Quando tudo aconteceu, Kyle e eu apenas pensamos em fugir, não parecia haver escapatória, nem esperança. Não para nós. - Uma longa pausa se instalou no quarto antes que ele recomeçasse a falar. - E então encontramos Jeb, ele já estava na caverna com alguns outros, inclusive Jared. Mel já tinha sido levada há algumas semanas, estavam todos assustados com a história de Jared e demoraram para confiar em mim e Kyle. E então, depois de uns messes, você apareceu e foi a minha vez de ficar assustado. - Ian riu enquanto descia uma de suas mãos para as minhas costas, a acariciando levemente. - Acho que no fundo, naquele momento, eu vi esperança. Só não queria acreditar, como se a poeira do deserto tivesse coberto meus olhos.

- Mas você enxergou, depois de ser muito teimoso. - Murmurei, minha voz saindo falha, mas ainda assim clara. Ian riu novamente, dessa vez como se achasse até engraçado.

- Enxerguei. - Concordou. - E é por isso que não posso perdê-la. - Admitiu em seguida, sua voz baixando alguns tons. - Não sei o que faria se te perdesse, acho que ficaria como quando cheguei aqui, não veria esperança, nem cor, nem futuro, em nada.

No começo eu não sabia aonde ele queria chegar, demorei para entender, mas quando compreendi pude ver seu ponto de vista. Mesmo sem fazer o que planejava, só de ter pensado em partir, eu já havia machucado Ian. Ele estava machucado.

Já não bastava todas as vezes que eu o fiz sofrer quando estava no corpo de Melanie?

Teria que trabalhar naquilo, agora eu podia notar que a dor dele era pior que a minha própria. Dilacerante, eu me sentia quase humana quando esses sentimentos me dominavam, como se eu tivesse deixado de ser uma alma no momento que me aculturei à eles. Eu me sentia humana, sentia como se fosse igual à todos naquela caverna, e ainda assim diferente.

- Não precisa pensar nisso. - Assegurei, me erguendo sobre um dos meus cotovelos, para deixar meu rosto à altura do seu. Depois passe meus dedos em sua bochecha, sentindo seus músculos se relaxarem aos poucos. - Porque eu não vou à lugar nenhum. Não acho que exista vida para mim lá fora, não se eu não puder encontrá-la com você.

Eu estava falando a verdade, havia me adaptado a ter aquele tipo de conversa, com Ian e com qualquer um dali, tinham muitas coisas para serem esclarecidas e quando mais rápido eu as fizesse, mas tempo teria para aproveitar as outras coisas ali dentro. 

Novamente eu estava tentando provar a Ian que eu não ia à lugar algum. Nós já tínhamos conversado sobre isso, mas depois de tudo o que aconteceu, eu temia que ele não confiasse mais, tanto assim, em mim. 

- Você é diferente de todas as garotas que eu já conheci, Peregrina. - O som de sua voz era doce, afastando todos os temores de meu peito, os mandando embora, os mandando para fora daquelas paredes pelas quais eles nunca mais poderiam passar. - Agora eu entendo porque Kyle sempre se deu bem com garotas e eu não, acho que era porque meu destino era namorar uma alma de outro planeta. - E agora divertida, me fazendo rir brevemente e desmoronar em seu peito de novo.

- Fico feliz em saber disso. - Brinquei, feliz por todo aquele momento de tensão ter desaparecido e a paz ter voltado para dentro do quarto. - Por falar em Kyle, como estão as coisas entre vocês?

- Melhores. - Ian deu de ombros. - Eu ainda tenho vontade de socá-lo as vezes, mas estão melhores.

- Fico feliz em ouvir isso. Kyle é uma boa pessoa, apesar de tudo.

- É, ele é. - Concordou. - Vamos tomar café da manhã?

Assenti com a cabeça, sem emitir nem um som e nem mesmo me movimentando. Estava cansada, meu corpo só queria cama, por mais que eu soubesse que haviam coisas para serem feitas.