Garota De Papel escrita por Robs Moraes


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

esse primeiro capítulo é só uma apresentação. Depois a história esquenta, eu juro. Sejam bonzinhos com a autora de primeira viagem(:



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O despertador avisou que o período havia começado. Independente do número de primeiros dias de aula por que passei, sempre existem os sete minutos de dúvida. Não costuma acontecer nada no primeiro dia. E ainda dava tempo de desistir.

Enquanto eu pensava, não completamente acordado, a porta de meu quarto foi aberta com certa violência, revelando Luiza, vestindo apenas uma toalha e seus óculos.

– Bom dia, Gui – não parecia uma afirmação, pela expressão mal humorada em seu rosto – Você vai se atrasar se não levantar. E, se eu vou para a aula hoje, você vai também.

Luiza era minha colega de apartamento. Um poço de bom humor, principalmente às manhãs. Tendo me acordado, prosseguiu seu caminho para o quarto ao lado do meu, deixando pegadas molhadas no caminho. Retorci o corpo na cama, tentando espreguiçar sem sucesso. Na parede, um grande pôster do batman que me acompanhava desde o ensino fundamental me encarava.

– Eu sei, Batman – admitia a derrota e fui me arrumar.

Meus estudos e minha perspectiva de emprego estavam bem longe do ramo dos super-heróis. Após terminar um ensino médio com médias perfeitas e notas que me colocariam em qualquer curso de engenharia, resolvi contrariar a família toda seguindo literatura. Alguma coisa sobre conhecer mais sobre o livro por entender quem o escreveu sempre me fora fascinante. E, mesmo que não tivesse ideia do rumo a tomar depois da faculdade, até agora não me arrependia da decisão.

Cheguei à cozinha e Luiza já se servia de cereais sobre a mesa. Sua franja preta, a única parte solta dos cabelos, caía sobre os olhos, esbarrando em seus grossos óculos retangulares. Não sabia dizer se seus olhos estavam realmente abertos.

– Eu acho que a gente podia comprar comida de verdade de vez em quando – ela observou numa voz entediada – Não aguento mais cereais de chocolate.

Me servi de uma tigela igualmente cheia e afoguei os pedaços com leite.

– Quanto mais cedo começarmos a comer comidas saudáveis, mais cedo envelhecemos, Lu – respondi. Ela bufou.

– Eu acharia isso engraçado se minha cabeça não estivesse estourando – resmungou. Agora que eu a via da mesma altura da mesa, seus olhos estavam definitivamente fechados – Que tipo de pessoa faz uma festa na véspera do início do semestre?

– Que tipo de pessoa vai a uma festa na véspera do início do semestre? – retruquei – Eu dormi como um anjo, sabe por que?

– Porque eu fui dormir às nove da noite depois de ler Cinderela, porque eu tenho toque de recolher, porque estou na quinta série – ela me imitou de forma debochada e se levantou para lavar o pote de cereal – Era aniversário de um amigo meu, Guilherme. Que tipo de amiga eu seria se não fosse?

– Claro, claro – preferi não discutir sobre esse “amigo” ser um garoto que ela não via há pelo menos uns dois anos.

Levantei da mesa também e em menos de uma hora já estava assistindo a aula. Um senhor da idade do meu pai e com voz igualmente grave falava sobre poesias. O único gênero de que nunca gostei: poesias. Não entendia a necessidade de poesias, senão impressionar garotas. E nunca me pareceu que daria certo mesmo.

Tentando não dormir, comecei a olhar em volta. Era uma turma de uns setenta alunos, quase todos prestando muita atenção e fazendo anotações. Eu costumava ser assim, mas não no primeiro dia de aula. Não sobre poesia. Entre os poucos que não prestavam atenção, uma me chamou a atenção. Algumas cadeiras à minha frente, eu só podia ver os cabelos pretos que alcançavam pouco abaixo dos ombros, decorados por uma tiara vermelha. Nunca tinha visto essa garota. Ela brincava com um espelho. Não estava se admirando, tampouco jogando reflexos de luz no teto. Apenas se divertia observando pessoas fora de seu alcance normal de

visão. Fiquei observando. Ao encarar o espelho, apenas via a janela à esquerda da sala de aula. Ela abaixou o espelho. Levantou- novamente. Abaixou novamente. E continuou nesse ciclo percorrendo todos os cantos da sala. Vi a parede colorida à direita, um garoto dormindo sobre seu capuz, uma mulher um pouco mais velha que parecia não piscar, e, finalmente, os olhos da dona do espelho. Por segundos. Ela viu que eu estava observando e abaixou o espelho no susto, voltando a fingir que prestava atenção na aula. Segurei o riso. Continuei olhando para o espelho, enquanto ela não se mexia. Alguns segundos e ela levantou o espelho novamente e rapidamente abaixou. Sorri.

– Guilherme? – Luiza chamou, na cadeira ao meu lado, sussurrando – De que você está rindo?

Balancei a cabeça negativamente e tentei ser mais discreto. Ao olhar para a frente novamente, vi o pequeno espelho apoiado num estojo azul marinho. Refletido, um grande olho azul brilhante, enfeitados por cílios longos e uma sobrancelha expressiva. Ela podia me ver também, pois olhava diretamente para mim. Era linda. Tão branquinha, com cabelos tão pretos e olhos tão azuis. Torci para que sua boca fosse tão intensamente vermelha. Com o espelho parado, consegui um ângulo de observação. Ela sorriu. Abaixei a cabeça e sorri também. Ela sorria engraçado, levantando o nariz e apertando os olhos, fazendo com que as bochechas parecessem maiores ainda. Eu estava encantado.

– Deixa eu escolher um nome da chamada... Júlia! Júlia Mastroiane – a voz abafada pelos bigodes anunciou e a menina levantou a mão. Júlia Mastroiane. Eu sabia que ela teria um nome lindo, Júlia, e imponente, Mastroiane.

O professor tinha feito uma pergunta, à qual eu não prestara a menor atenção. Agradeci mentalmente por ele não ter chamado Guilherme Fonseca.

– Eu acho que o autor está usando uma retórica irônica para demostrar a luta interna. Quando diz que não ama é porque ama, pois logo é desmentido o não amar. É como se ele não quisesse amar, mas amasse mesmo assim – ela respondeu, numa voz suave. Por sono, não entendi uma palavra.

– É... É quase isso. Podemos melhorar essa resposta – não compreeendi o professor. Seja o que fosse que saísse com aquela voz de menina, eu acharia certo. Pode parecer besteira, e provavelmente é mesmo, mas eu conseguia sentir algum sentimento por ela se formar em mim.

Ao fim da aula, o sinal rouco e estridente se esforçou para ensurdecer todos os alunos, quase com sucesso. O professor ficou por minutos arrumando suas coisas, enquanto o resto da turma corria para ir para casa. Era comum só ter metade das aulas no primeiro dia. Estávamos indo para casa depois de apenas três horas, mesmo que três horas bem chatas ouvindo falar sobre poesia. Isso era um privilégio.

Quis procurar a menina, Júlia, mas Luiza me achou primeiro.

– O que estava acontecendo, Gui? Te vi rir a aula toda...

– Nada, nada – procurei por cima dos ombros dela, mas, numa turma de cinquenta alunos, um andando mais rápido que o outro, é difícil encontrar alguém específico. Principalmente se esse alguém não passa do 1,60m.

– Era com ela, não era? A morena clara dos olhos azuis? – Luiza perguntou. Não dei atenção – Ela já saiu, Guilherme, pare de bancar o obcecado.

Suspirei.

– Você conhece ela? – quis saber. Luiza revirou os olhos, como se estivesse acostumada a ouvir perguntar dela. Ou falar dela. Ou vê-la ser o centro das atenções. Eu entendia bem aquilo.

– Estudamos juntas no ensino médio – ela respondeu – Quer dizer, antes de eu ser transferida. No primeiro ano.

Eu e Luiza nos conhecíamos desde a metade do segundo ano, quando ela caiu de para-quedas numa turma formada desde a sétima série numa escola particular relativamente famosa. Teve sua fase de ser o brinquedo novo da turma, mas em duas semanas demonstrou falta de habilidades sociais suficientes para acabar fazendo amizade comigo apenas, o magrelo espinhento da turma. É importante deixar claro que foi apenas uma fase. Apesar de continuar com um porte nada atlético, meus dias de espinhas estavam bem longe para trás e o meu rosto já era bem normal e sem graça. O último ano da escola me trouxe surpresas como um tratamento de pele violento e, com ele, namoradas.

– E o que você sabe sobre ela? – perguntei, efusivamente – E por que eu nunca a vi por aqui?

– Não sei, Gui, eu não era exatamente amiguinha dela, como você pode imaginar. Existe uma diferença enorme entre garotas como ela e garotas como eu na escola.

– Isso é meio preconceituoso – comentei.

– Tanto faz – ela deu de ombros – Não estou dizendo que ela é fútil porque é bonita, ou nojenta, ou qualquer coisa. Ela só é bonita. E meninas bonitas tendem a ter um tratamento diferente de meninas magras demais e com narizes muito finos. Pelo menos aos dezesseis anos.

Me conformei. Luiza era um pouco amargurada por ter sido ignorada na escola. Eu entendia isso. Só não compreendia muito bem por que ela não podia se distanciar disso. Quer dizer, agora ela frequentava festas e aparecia a cada semana com um garoto diferente. A vida estava boa para Luiza. Mas, por algum motivo, eu sempre acabava ouvindo sobre a falta de popularidade de dois anos atrás.

– De qualquer jeito – ela continuou – Eu sei que ela tinha se mudado, o que explicaria a gente nunca tê-la visto por aqui. Deve ter vindo transferida de outra cidade ou estado. Eu sei que ela tinha um namorado, que surpreendentemente não era o “oh que sonho, garoto mais popular e lindo da escola”, era um nerd alternativo metido a intelectual ou qualquer coisa parecida. Um desses que... Você sabe.

Eu não sabia. Meu olhar deixou isso um pouco claro.

– Ah, você gosta de videogames? Ah, você gosta de super-heróis? Ah, você finge que entende de computador e sabe qualquer coisa de violão? – ela imitou uma voz anasalada e fez gestos com a mão e cara de nojo – Tudo isso é lindo e fascinante. Ah não, só se você for bonita.

– Você por um acaso tinha alguma coisa por esse garoto? Ou... – perguntei. Estava meio óbvio alguma mágoa.

– Não muito. Namoramos na sexta série durante duas semanas e meia. Ele era um idiota, completamente ignorado. Aí ele cresceu e de repente era legal fazer críticas profundas a gráficos de jogos e chegou uma menina que parecia obcecada por esse tipo de gente. Acontece.

Concordei, embora estivesse um tanto perdido.

– Se quiser falar com ela, boa sorte. Mas cuidado. Eu sei como você é, Guilherme.

– Como eu sou?

– Ingênuo. Inseguro – a tranquilidade com que Luiza dizia aquilo chegou a me incomodar um pouco – Ela vai fazer o joguinho com você. Querer te manter apaixonado, mas sem ter nada com você. Ser legal com você de cara e depois ficar mordendo e assoprando, te ignorando até perceber que você pode estar esquecendo dela.

Isso me parecia estranhamente familiar. Passava por essa experiência desde que começara a ter contato com o sexo oposto. Algumas meninas são legais, algumas meninas apenas querem que você ache isso. E você acha e obedece, porque o mundo é assim.

– Agora, quando ela fizer isso – Luiza concluiu – não ache que é culpa dela. Quer dizer, ela não precisa fazer isso. Mas a culpa vai ser sua de deixar. Não vai ficar chorando para mim depois.

Pensei sobre aquilo. Eu não era o tipo de pessoa que ficava chorando por causa de meninas. Isso só havia acontecido, na verdade, uma vez. Mas Luiza gostava de me lembrar.

– Enfim, o Maurício está me esperando, nós vamos dar uma volta – ela respirou fundo, como se tivesse acordado – Não me espere acordado, talvez eu durma lá na casa dele porque é longe. Boa sorte com a branca de neve, Gui.

Dois beijos na bochecha e ela tinha ido embora. Percebi que a sala estava praticamente vazia, exceto apenas por mim e pelo professor, que olhou de mim para a porta, me convidando gentilmente a sair da sala.

Fiquei pensando no que Luiza dissera. Era provável que Júlia me machucasse. Pior, era muito provável que nem isso. Eu tinha mania de pensar à frente das coisas. Já me via num relacionamento com ela, mesmo que clandestino. Seríamos felizes ou não. Ela ficaria comigo oficialmente ou não. Mas não enxergava a óbvia possibilidade de ela nem chegar a falar comigo. Pensar nisso me fez gelar. Teria até o dia seguinte para resolver se faria alguma coisa.

Chegando em casa, obedeci às ordens de Luiza. Não a esperei. Passei a tarde lendo o livro de poesias que Sr. Bigode mandara para a prova da semana que vem. Era bom fazer isso logo, antes de a matéria pesada chegar. Pensei mais em Júlia. Os olhos que pareciam sorrir mesmo quando nem olhava na minha direção e as maçãs do rosto tão redondas e tão rosadas. Mas se Luiza não gostava dela, talvez ela não fosse uma pessoa tão legal de qualquer jeito.

No dia seguinte, dormi demais. Sem Luiza para me acordar, acabei esquecendo de ajustar o alarme. Quando levantei já eram quase dez horas. Pensei em correr, mas o trajeto até a faculdade me permitiria assistir a um tempo de aula.

– Vamos tirar um dia de folga então – falei sozinho, como de costume. Quando se passa muito tempo sozinho, às vezes se cria hábitos estranhos, como conversar consigo mesmo e brigar com objetos inanimados.

No celular, uma mensagem perguntava por que não tinha ido a aula. Nem respondi. Tinha certeza de que Luiza viria almoçar em casa, ela era como uma irmã mais velha preocupada. Sabia que levaria um sermão durante o almoço. Abri a janela do quarto, o cômodo mais escuro e quente da casa, e, para minha surpresa, o vizinho do prédio da frente abriu também. Ou melhor, a vizinha.

– Bom dia – cumprimentei. Ela sorriu.

– Você está me perseguindo? – perguntou, debruçada sobre a janela. Eu estava certo. Ela tinha uma adorável boca vermelha.

– Por mais que eu adore gritar através da janela, eu acho que daqui a pouco vou apanhar – respondi, tentando impôr a voz – Meus vizinhos tendem a ser um pouco impacientes.

Ela riu de novo. Levantando o nariz, apertando os olhos, arredondando as bochechas. Agora eu podia ver as leves sardas escurecidas nas maçãs do rosto. Fazia sentido em sua pele tão branca.

– Eu adoraria sair, mas tenho que escrever um texto para o trabalho – ela trabalhava. Me esforcei em guardar essa informação, seria um bom início de conversa – Se você não se incomodar, a minha janela vai ficar aberta. Eu não estou acostumada com o calor do Rio de Janeiro mais.

Concordei e ela se afastou. Fingi que ia fazer alguma coisa também, mas acabei apenas virando de lado para a janela e esperando perder os olhos de vista. Espiei pelo rabo do olho e a vi, de camiseta rosa e short de dormir, sentada em frente a uma máquina de escrever com cara de antiga, digitando sem parar. Parecia inspirada. Tentei não observar muito, podia assustá-la. Mas, de algum jeito estranho, saber que podia ver seu quarto me deixava satisfeito.

Talvez eu a estivesse idealizando demais já. Mas não parecia errado. E ela não parecia nem de longe tão ruim quanto Luiza dissera.


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