Naya: Crônicas de Atlas escrita por Antonio Filho


Capítulo 6
Capítulo III: Repouso Lunar




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Após descansar o corpo sob a água termal e relaxante do chuveiro, Adna encontrava-se em seu ritual quase sagrado de pentear sua cabeleira prateada. Seus fios lisos, apenas levemente ondulados nas pontas, formavam madeixas vívidas e belas. Não sabia se o visual combinava com seus olhos verdes e nariz arrebitado, mas já havia se acostumado com a visão de todo seu corpo.

Admirava sua imagem no espelho beirando ao egocentrismo. Havia pensado em encantá-lo para comunicar-se com Naya, agora já não se fazia mais necessário. Seu único dever era analisar a nítida imagem a sua frente, refletida pela tecnologia do fino anteparo de prata que alimentava a vaidade de muitos por tantos milênios.

‒ Senhorita, o almoço será servido na Sala de Refeições. Quando descer, virei arrumar seu quarto. – Falou uma camareira através da porta, após duas batidas na porta.

‒ Ok. Descerei em alguns minutos.

Conjurando um robe de seda rosa que normalmente trajava para dormir, bem mais confortável que o vestido ainda encharcado de suor conjurado por Sinandrin, a fada desceu apressada. A fome que havia ignorado por horas não seria saciada apenas com chocolatinhos.

No local indicado, o salão largo com piso de madeira assustadoramente frouxo transformava cada passo numa dança desajeitada de titubeios. Percebeu após ver a sua direita a sala da recepção, que esse era o tal cômodo que havia visto antes.

Adna encontrou oito grandes mesas repletas de hóspedes comendo e conversando em meio a berros e risadas, como num bar em que a cerveja e a artemisia haviam se esgotado. Por sorte, sem o asqueroso cheiro alcoólico. Uns gritavam histórias e piadas em tons eloquentes similares aos contos épicos valerianos narrados por atores e atrizes dos teatros dramáticos, outros choravam de tanto rir ou mandavam os engraçadinhos descerem das mesas em caretas de desagrado que logo se vertiam em sorrisos tão puros quanto os de crianças.

A animação das pessoas rindo como se fossem uma só família irradiava a mesma felicidade que encontrara lá fora no dia anterior, quando havia chegado: impossível não se sentir acolhida com vários dos residentes a convidando para juntar-se sem sequer saber seu nome. Todavia, o pudor gritava mais alto que os pedidos. Após observar bem a composição de cada mesa, optou por aquela mais próxima das janelas, onde havia apenas mulheres.

Adna sentou-se a um banco de distância do grupo feminino, reservada. Após alguns meneios de seu pescoço a procura de um garçom, afim de servi-la as numerosas e coloridas porções a sua frente, alertaram-na que se tratava de um Buffet Livre.

‒ Sente com a gente garota! ‒ Disse a ninfa estapeando repetidamente a cadeira próxima a ela, entusiasmada. ‒ Estrangeiras aparecem o tempo por aqui, mas não precisa se preocupar, nós te ajudaremos a se enturmar! Agora, conte um pouco sua história para nós!

A fada se sentou ao lado da cordial moça em trajes curtos de couro verde. Combinava com suas tatuagens naturais nínficas que desciam dos olhos até o pescoço. De nome rapidamente revelado, Helda Verdecanto, Adna entendeu a sistemática da refeição no Repouso Lunar meio à conversa.

Desde que fosse paga a taxa de hospedagem completa, qualquer um poderia comer e beber o quanto quisesse durante os horários das refeições. Cada uma das mesas tinha seu próprio banquete individual, com opções de entradas, pratos principais e sobremesas. A única constante em todas elas era a placa com a frase “Repita até estourar”. A palavra “engordar” ganhando forma material.

‒ Experimente de tudo! Nossas comidas são bem diferente das de vocês. E, aliás, nós temos tempo, muito tempo! Durante a semana do festival tudo funciona mais devagar para que todos possam aproveitar as festividades.

Isso era interessante, aproveitar tudo, mas ao mesmo tempo inconveniente. Poderia se servir com a quantidade de comida que quisesse, porém, jamais fizera isso em sua vida: as refeições em Valerian davam-se o trabalho de aparecerem. Sempre impecáveis, prontas para deliciarem seu paladar. Consistia apenas num pequeno desafio.

‒ Você precisa de ajuda? ‒ Perguntou Helda, um pouco preocupada.

‒ Não, obrigada. Eu vou conseguir!

Utilizando-se dos talheres enormes e rústicos para capturar a comida, a fada tentou disfarçar sua inexperiência nessa prática que se mostrara digna do salário pago aos cozinheiros e garçons de sua casa. Mesmo com as risadas de algumas das garotas, a fada desejava fazer isso sozinha. “Se eu consigo memorizar todas as regras, protocolos e rituais de mesa de Valerian, porque não conseguiria fazer isso?”

Com os ares da aventura em seus pulmões, Adna queria mais dessa sensação de fuga de rotina, experimentando algumas comidas novas, diferentes, umas boas e outras nem tanto. Provara o sushi de atum das águas frias, preparados com os famosos cardumes do Oceano Celestial. Aos poucos, percebia aos olhos vermelhos e lacrimejantes, não sabendo se de arrependimento por ter evitado novas coisas por tanto tempo ou pelo excesso de pimenta que alvejara sua boca. Mas agora se sentia mais leve, ao menos espiritualmente.

Talvez fosse essa atmosfera popular por qual estava rodeada. Não necessariamente pior, entretanto, também não se comparava ao cintilante mundo régio. Simplesmente diferia do usual, assim como férias que serviam para agregar vivência e relaxar.

Frutas locais também entraram no generoso cardápio da garota Elvellon: manga, tangerina, amora e abacate. Notas doces e azedas que desconhecia e aos poucos a conquistava, mas completamente rechaçadas pela arrebatadora paixão que sentira pelo churrasco sulino.

Adna já havia degustado diversos tipos de carnes vermelhas de todas as partes do mundo, mas o assado bovinos que a fizera ignorar seu estômago empanturrado conquistara seu coração. Como se pequenas gotas de sabor abençoadas pelos espíritos do prazer derretessem macias em sua boca. O churrasco era a melhor coisa que já havia provado.

Ao mesmo tempo em que saboreava um pedaço generoso de carne de javali assado, iguaria que com certeza obrigaria sua prima a comer também; Adna ouvia atentamente as garotas conversando sobre a festa que iniciaria o Festival Oceânico amanhã na praia.

‒ Com licença, por acaso aquele local na praia que hoje pela manhã estava caótico, é onde será o festival?

Uma das garotas, humana e ruiva, inclinando-se em sua cadeira na direção de Adna, com um sorriso simpático estampado no rosto jovial, respondeu, balançando-se contra a mesa aos impulsos:

‒ Você deve estar falando da Praia Central, com certeza. Estão terminando de montar as arquibancadas do Anfiteatro Talassariano para que todas as pessoas possam ver as apresentações do primeiro dia. A Competição de Dança será feita lá.

‒ Competição de Dança?

‒ Sim, é o principal evento de amanhã. – Disse num ligeiro tom de surpresa por deparar-se com alguém em Lunara que desconhecia a grande comemoração, explicando ligeiramente sobre o grande Festival Oceânico. Ao ver o rosto esclarecido da garota e que a mesma não tinha mais perguntas, a humana voltou a conversar com suas amigas sobre os vestidos que usariam durante a badalada abertura.

Ao terminar sua refeição, satisfeita como nunca antes, sua mente já estava pensando em como conseguiria carne de javali nimphoniano em Valerian da mesma qualidade da que provara hoje. Adna subiu rapidamente ao seu quarto e, jogada na cama com a barriga abarrotada, contatou Naya como havia combinado.

“Vamos nos encontrar amanhã na praia.”

“Ok... Pode ser um pouco mais específica? A cidade inteira deve ser uma praia pelo que vi hoje cedo”

“Nas arquibancadas do Anfiteatro Talassariano da Competição de Dança, está bom? Você o verá de longe, ele é enorme. Vi quando cheguei na cidade.”

“Certo. Nos vemos amanhã sem falta.”

“Muito bem. Aproveite para conhecer a cidade ou comer e beber. Tudo aqui é delicioso!”

Risos.

“Tá bom. Procurarei um amigo que conheci aqui.”

“Amigo é? Sei...”.

“Dá um tempo Adna...”.

Sentindo a conexão cortada por Naya num gesto mental correspondente a uma tapa na cara, a fada riu, espreguiçando o corpo. Sem sono, voltou a pentear seus cabelos como se já não estivessem perfeitamente arrumados, exultante: tudo estava melhor do que esperava.


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