Naya: Crônicas de Atlas escrita por Antonio Filho


Capítulo 4
Capítulo II: Olhos para um Novo Mundo: Pandora.




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No interior da dimensão de transporte do portal, as garotas finalmente conseguiram reunir coragem para abrir os olhos. Viam por todos os lados, ainda que turvo, imagens distorcidas de diversos locais de Atlas. Alguns familiares, a maioria estranha; todos envoltos por brumas azuladas e cintilantes. Reinos inteiros, cidades pequenas e isoladas da interligação mundial, estrelas.

A sensação de estar caindo a uma velocidade imensa confundia, pois não pareciam sequer mover-se do local onde estavam, mas algo como vento lhes batiam o rosto e jogava os cabelos para trás. A aceleração empurrava a paisagem surrealista para longe, forçando-as a cerrar os olhos contra aquela brisa irreal, mas extremamente convincente.

Pouco tempo se passou desde a “queda” até o momento em que aquela breve dimensão perdeu sua estabilidade. Rachaduras no horizonte surgiam preenchidas por forte luz, tomando conta do local e destruindo as imagens como se fossem quadros protegidos por fino vidro. A turbulência afetava o psicológico. Antes que pudessem perceber a tontura, ambas já haviam desmaiado.

“Onde eu estou?”.

Naya levantou-se bruscamente, como quando se acorda de um pesadelo. Abrindo os olhos vagarosamente para acostumar-se a luz abundante do local, o clarão dava espaço para os contornos da paisagem. Percebeu que estava num lugar estranho, uma grande campina estranhamente verdejante. Incomum porque não existiam relvas naturais dessa cor em Valerian: lá todas possuíam tons avermelhados ou alaranjados, como num outono eterno e constante.

A grama úmida entre seus dedos sentia-se agradável, embora sua textura fosse diferente, talvez até mais macia. Observando mais um pouco, ela percebeu o mar estendendo-se até o alto no horizonte em fronteira com os céus, soprando brisas litorâneas geladas em sua direção, contrastando com o sol forte. Apertando os olhos, via-se que no pé do litoral havia uma cidade, aparentemente minúscula.

Observava, notava, percebia. Susto. Naya deu-se conta de que Adna não estava por perto. O coração apertou por um instante, mas lembrou-se não havia com o que se preocupar, ela também era uma maga de sangue Elvellon poderosa. A prima não gostava de lutar, muito menos ferir, mas isso não a impedia de se defender com magias de incapacitação e outros truques escondidos por de trás daquele rostinho inocente de fada.

Por um momento, Naya hesitou. Não sabia o que fazer. Apenas sorria, feliz. Quase nunca usufruía dessa oportunidade. Sempre haviam conselheiros e suas “opiniões” disfarçadas de ordens. Mas agora, tudo estava a seu alcance. Poderia voar o mais rápido que conseguisse, andar sem lembretes do Véu Régio: qualquer coisa. Essa dúvida tinha um gosto bom. Liberdade. “Então é parecido com isso?”.

As opções surgiam aos montes em sua mente, mas agora, a prioridade deveria ser descobrir onde estava. Infelizmente, o que a vista alcançava não permitia tirar muitas conclusões, além de que provavelmente estava em Nimphos, continente berço do reino de Sinandrin. Uma ajuda mágica seria necessária.

Entrando em posição de concentração, Naya cruzou as pernas, acomodando-se no chão do carpete verde incomum. Entrelaçando os dedos e fechando os olhos, afim de bloquear sua visão física e libertar sua mente para captar a mana natural que corria por toda Atlas, ela sussurrou o feitiço. Agora deveria ser capaz de enxergar o espectro mágico dos quilômetros mais próximos.

Tentou procurar a aura mágica de sua prima pelas redondezas e estranhamente não sentiu a presença de nada a sua volta. Apenas via o vazio e a fantasmagórica luz solar que atravessava suas pálpebras. A experiência indicava que não existia vida por perto, conclusão impossível: a natureza local era praticamente intocada. Deveria ver ao menos espectro do ambiente, pois tanto a vida vegetal, a animal e até mesmo alguns minerais carregavam consigo a essência da magia, tornando-os alvos em potencial desse feitiço de localização, a Percepção Astral.

Naya não entendeu muito bem o que estava acontecendo. Já havia usado essa magia dezenas de vezes para evitar os guardas e professores no castelo e nunca falhara na tarefa. Talvez algo estivesse causando interferência. Jazidas de arcanite poderiam produzir efeito similar, mas para a direção oposta: cegavam um mago pela enorme quantidade de mana num único local. “Intrigante...”.

Outra ideia surgiu em sua mente. Sussurrando o feitiço para conjurar suas asas, afim de aproveitar-se da visão privilegiada, a princesa sentiu uma forte e súbita pontada em sua cabeça, como se sofresse um derrame. A dor forçava suas mãos a apertá-la instintivamente, esperançosa de que a agonia diminuísse entre os gritos. O desespero estendeu-se por curtos e incontáveis segundos, até cessar quando uma voz familiar sussurrou em sua mente:

“Bem-vinda, Naya. Para tornar sua experiência mais interessante, eu bloqueei suas habilidades raciais de fada, assim como as de sua prima. Logo, vocês poderão sentir leves efeitos colaterais caso tentem usar magias muito avançadas ou específicas durante os próximos momentos. Não se preocupe, vocês são tão fortes como qualquer maga elfa de sua idade. Aliás, você e Adna estão em Pandora, procurem-se na cidade de Lunara e divirtam-se. Não poderei contatar vocês hoje novamente. Aproveitem a estadia, estamos numa ótima época do ano!”.

‒ Ai minha cabeça....

A bela voz soava extremamente explicativa e entonada, como se conversasse com um retardado mental. Ao término da mensagem narrada pela inconfundível fala de Sinandrin, a princesa ficou um pouco irritada, mas entendeu a intenção da rainha em bloquear os poderes feéricos. Se desejava tanto ser uma garota normal por alguns dias, seria injusto dispor de um arsenal da realeza.

Todos os que partiam mundo a fora em busca de aventuras começavam apenas com o básico que a magia podia oferecer. Estar sob essas condições não seria nem um pouco confortável, mas quem disse que viver dia após dia era possível estando resguardado por muralhas do arcano? As emoções só se sentiam para quem se abriam completamente aos seus encantos.

Naya demorou um pouco para perceber, mas agora estava sozinha, sem poder, numa terra estranha e a barriga começava a reclamar de fome. Calma, foco: logo encontraria algo para comer. Queria tanto uma aventura, agora começaria sua primeira. Não deveria estar olhando apenas o lado negativo...

‒ Lunara... Só pode ser aquela cidadezinha na praia. Se não posso voar, o jeito vai ser ir andando mesmo. ‒ Disse para si mesma, animada com o novo mundo.

Alcançando a estrada cinzenta e ladrilhada que cortava a campina, provavelmente ligando cidades próximas, Naya seguiu caminhando a passos lentos, enquanto observava como tudo se diferia do que havia estudo nas aulas reais. Lembrava-se de fotos repletas de pessoas miseráveis e terras inférteis, castigadas pelo forte sol tropical. O continente sulista de Nimphos não era um local bizarro, como todos costumavam dizer.

Em Valerian, muitos silfos costumavam viajar mais até Mundo Próximo, denominadas as terras ao sul de Magicália. Comerciantes internacionais e grandes aventureiros contavam histórias sobre como esse continente era atrasado e repugnante. Chamavam seus habitantes de “seres” primitivos ignorantes.

Por muito tempo a princesa acreditou nos estereótipos, até conhecer Sinandrin, que mostrara a verdadeira face do sul: uma terra de riquezas abundantes e cultura única. Pelo visto, o que aprendera sobre essa terra se fazia mero preconceito, pois, por exemplo, não estava vendo a “selvageria incessante” que assolava os reinos austrais. Apenas uma bela planície verde que se estendia por todos os lados, radiante e vívida. Naya começou a perceber contradições no ato de estudar uma terra aliada em meio a uma educação tão falaciosa. Talvez essa fosse sua oportunidade de aprender sobre o mundo real além das páginas das enciclopédias magicalianas. A chance de formar sua própria visão do mundo.

Andando enquanto transpirava empolgação e suor, Naya via que não apenas a flora, mas a fauna de Pandora também a interessava. Não sabia se eram rebanhos ou manadas, mas dezenas de rhinos andavam livres pela campina. O modo sonolento e desajeitado que os bichos caminhavam a divertia.

Enquanto se deslumbrava com um deles que dormia sob a sombra de uma das escassas árvores desse campo, ela o observou por algum tempo, consumida pela curiosidade.

O quadrúpede gordo, cobertos por uma armadura natural cor de aço e de olhos grandes e meigos parecia tão inofensivo quanto possível. Deixava-se até acariciar a cabeça pelo toque da fada e ainda tocar-lhe o chifre, grosso e robusto, que tomava o lugar do focinho. Talvez estivesse ficando louca, mas Naya achava que o animal deveria ser completamente domesticável, dada sua simpatia com bípedes. Mesmo que o mamífero fosse duas vezes maior que um grifo, seu aspecto risonho a convencia disso.

Não existiam criaturas como essa em sua terra, mas lembrava-se vagamente de ter visto um holograma tridimensional ou fotos dessas criaturas fofas na aula de biologia.

Via um acordar, dando-lhe capim na boca, até que ouviu um barulho atrás de si: uma carroça vinha em sua direção.

Guiada por seis musculosos corcéis pardos, a aguçada visão de sua raça conseguia perceber o encantamento nas ferraduras dos cavalos. Uma versão local do feitiço Ilimitae, que permitia animais correr incontáveis quilômetros sem se cansar. Uma magia perfeita, se não reduzisse a vida útil dos pobres usuários das ferraduras.

Quando a carroça se aproximou, se é que poderia se chamar assim, pois era tão arrumadinha, o elfo idoso que guiava os cavalos parou imediatamente. A moça no pé na estrada fazia sinais estranhos com as mãos, denunciando sua condição de estrangeira. Acostumado com essa classe de desavisados, ele perguntou amistosamente:

‒ A mocinha está indo para Lunara? Gostaria de uma carona? – Rouco, ajustava o chapéu de abas longas sobre a cabeça, que cedia à força do vento.

‒ Sim! Sim! - Naya ficou aliviada ao saber que estava indo para o local correto. Começava bem sua viagem.

‒ Suba na carroceria, meu filho está lá dentro cuidando dos produtos. Segure-se bem!

‒ Muito obrigada, senhor!

A princesa nunca havia subido numa carroça, apenas em carruagens e com a assistência de servos. A queda que levara ao colocar o pé no suporte errado deixou isso bem claro. Sorte que ninguém havia visto tamanha vergonha.

Ao entrar, Naya tratou de recobrar a postura e rapidamente limpar a terra das pernas raladas nos pedregulhos do pavimento. Percebeu que por trás das cortinas índigo, o transporte estava lotado de vidrarias, cheio de produtos dissímis. A maioria ela não tinha a mínima ideia do que poderia ser: uns dentro e outros fora de caixas, alguns pareciam ainda estar vivos, dançando dentro dos potes ou até a encarando quando eles estavam preenchidos com olhos.

Como dissera o guia, seu filho estava lá dentro. De costas para a entrada, organizava algumas caixas. O rapaz não parecia se importar com sua subida nem com o barulho que faziam os tapas que dava contra o vestido na tentativa de limpá-lo. Sequer voltava sua cabeça para trás. Mas ele a percebera com certeza, sacudindo ligeiramente as longas orelhas élficas.

‒ O que foi pai? Por que paramos? – Questionou com o timbre grave para um elfo, enquanto empacotava um caixote com vários frascos cheios dos olhos horripilantes e amarelados.

Ao sentir o disparar dos cavalos novamente, ele virou-se confuso. Tinha certeza de que ouvira alguém entrando, o que certamente deveria ser seu pai, mas não era.

Deparando-se com a imagem daquela bela moça de vestido nas mãos e pernas machucadas, ele se constrangeu com a confusão. O elfo por um momento arregalou os olhos, surpreso com a situação incomum, tentando disfarçar quando percebeu que ela havia notado sua reação exagerada.

‒ Oh, me desculpe pelo engano. Meu nome é Ariel. – Cumprimentou ele estampando um sorriso simpático. Aproximando-se rápido, ofereceu um aperto de mão.

‒ Naya, prazer. ‒ Hesitando por um segundo, ela estendeu a mão, espelhando o movimento do rapaz, respondendo com um aperto tímido. Sempre uma situação incomum o toque entre os corpos de duas pessoas que não se conheciam entre os membros da nobreza: o máximo presenciado socialmente era a troca de reverências. Fazia tanto tempo que não fugia da atmosfera real que havia esquecido que pessoas normais não se importavam em tocar umas às outras.

‒ Está indo para a cidade comemorar o festival? – Indagou, animado.

‒ Festival?

‒ Você não é daqui pelo visto né? Nessa época do ano é comemorado o Festival Oceânico. São as maiores festas litorâneas do ano e do continente em nome do Mar e da Lua! Muita música, dança, luais e até fogos de artifício. É muito divertido!

‒ Realmente, parece ser! Mas estou indo para encontrar minha prima, quem sabe eu vá a uma dessas festas. Você e seu pai estão indo pela festa? – Perguntou quase retoricamente, reparando na quantidade enorme de produtos que conseguiam ocupar aquela carroça que se mostrava minúscula para transportar tantos itens.

‒ Também, mas nós também moramos lá e vendemos artigos de alquimia na cidade. Com o festival a cidade lota de pessoas procurando esse tipo de produto! A maioria desse estoque foi encomendado, praticamente.

O elfo e a fada conversaram por algum tempo. Naya observava-o. Com uma idade aparentemente próxima à sua, aspecto de 17 anos humanos, ele era um pouco mais alto que ela mesma, esbelto e tinha a pele branca, mas visivelmente queimada pelo sol, além do cabelo azul-escuro. Não parecia com os elfos de Valerian. Tal distinção se fazia principalmente devido às orelhas maiores e mais pontiagudas que as das castas élficas nortistas, além da cor de sua cabeleira. Seu rosto também tinha traços bem feitos e másculos, como os de um silfo: reunia qualidades das duas raças.

Talvez fosse o penteado bagunçado ou os olhos arredondados, mas ele o lembrava um silfo, Gerard Melanar, dos amigos proibidos. “Não! É o jeito de falar. Rápido, engolindo as palavras. Os dois tem essa animação difícil de encontrar num vida longa”.

Nesse momento, a princesa lembrou-se de uma de suas conversas com Sinandrin: “Em Nimphos, diferente de sua terra, meus súditos pandorianos podem ter filhos com pessoas de uma raça diferenciada se assim desejarem, ou segmento de raça no caso dos elfos. Essa legislação faz com que a população não seja tão homogênea como nos reinos do norte, onde vocês preservam ideais de pureza das raças.”. Com certeza havia algum ancestral elfo boreal ou silfo do extremo norte em sua família.

Enquanto isso, Ariel também observava a garota com certa admiração. Os olhos dela chamavam atenção pela cor de âmbar, extremamente bonitos e chamativos, coloração raríssima entre as raças de vida longa. Baixinha para ser uma elfa e com certeza não parecia ser uma humana. Certamente seria uma fada. Percebeu não apenas por seu desconhecimento do festival, mas pelo modo cuidadoso e sublime como ela pronunciava as palavras em élfico, que a garota deveria ser de algum lugar do norte. Talvez até do oriental País do Fogo.

Ficaram lá, sentados. Ele de pernas cruzadas no chão, ela de joelhos sobre o piso, trocando palavras, olhares e risadas. Ariel percebeu durante a conversa as caretas de dor que ela fazia ao mesmo tempo que tentava encobrir os tornozelos escoriados. Suas pernas deveriam estar doloridas e ardendo, dada a vermelhidão e os resquícios de terra.

‒ Espere um pouco... ‒ Ariel levantou-se abruptamente, procurando algo dentre as diversas caixas que estavam no fundo da carroceria. ‒ Aqui!

Exibindo um lenço branco numa mão e uma vidraria cheia de um líquido verde na outra, o elfo sorria. Seus olhos da cor do oceano brilhavam como se tivesse descoberto a cura definitiva para a Peste Escarlate.

‒ O que é isso? ‒ Indagou Naya, curiosa e particularmente assustada com aquele surto de animação.

‒ Você vai descobrir... ‒ Retirando a rolha depressa com os próprios dentes, jogando-a longe mais rápido ainda, Ariel derramou o líquido sobre o pano. Exalava um perfume misto cítrico e refrescante que logo tomou o ambiente. ‒ Com sua licença...

Agachando-se para alcançar a fada, o alquimista pediu para que ela mostrasse os machucados em sua perna. Envergonhada, não por ter que levantar o vestido até os joelhos e revelar todo o estrago, mas por lembrar-se da cena patética que produzira tamanha ferida, Naya os mostrou. Vagarosamente, Ariel encostou o lenço úmido sobre o tornozelo, onde os arranhões pareciam piores.

Arrepios. Por mais gentil o toque que sucedera, a sensação de choque térmico eriçara até os pelos da espinha. Por um instante Naya quis tirar aquele tecido esverdeado de si, mas segundos depois, uma ótima sensação tomou seu corpo. Formigamentos na perna e uma estranha leveza física rapidamente fizeram tudo se encaixar: cura.

‒ Que poção é essa? ‒ Perguntou, ao notar o rosto dele, satisfeito. O alquimista esperava fosse demorar mais para o efeito começar.

‒ Extrato de Cármica 97. É uma boa poção para tratar com urgência ferimentos leves. ‒ Disse, enquanto embebia o curativo, ajudando-a a aplicar o remédio sobre o restante dos arranhões.

‒ Eu não conhecia essa. De onde venho são mais comuns as feitas com valeriana.

‒ Eu também tenho a receita dessa. Todo alquimista que se preze tem, na verdade. O extrato dela é muito mais forte e prático que o da cármica! Aliás, ninguém jamais poderia beber esse líquido verde como as pessoas fazem com as de valeriana. Morreriam envenenados com certeza. ‒ Afirmou em tom sábio, como alguém que seria facilmente identificado como entendedor do assunto, que não era de longe o forte da maga. ‒ Isso quer dizer que você é de Valerian, não é mesmo? É o único lugar do mundo onde a famosa rosa de sangue cresce naturalmente pra alguém dizer que essa poção caríssima é comum!

Naya cerrou os olhos, cautelosa. Deveria tomar mais cuidado com o que falava a partir de agora. Mesmo que o elfo parecesse gentil, se soubesse demais poderia acabar complicando a vida de ambos. Pior: poderia perder o controle da situação. No mínimo imprudente, se não estupidez, falar algo que fosse se arrepender depois. Mas também rude de sua parte se ficasse muito defensiva em suas palavras, ainda mais com alguém que acabara de ser tão prestativo sem sequer um pedido. Talvez devesse apenas mudar os rumos da conversa.

‒ Você está certo. ‒ Declamou, admirada com o poder curativo da poção. Já não sentia dor alguma e a cicatrização estava quase completa onde ele aplicara primeiramente. – Você parece ser um ótimo alquimista. Eu quero saber mais sobre o misterioso mestre botânico Ariel...

– Maelthor. – Acrescentou, apontando para o rótulo de destinatário de uma das caixas de suprimentos, carimbado com o selo de sua família.

– O alquimista/comerciante de Lunara. – Completou a fada.

– Isso! Só isso mesmo. Não sou do tipo muito envolvido com magia ou armas, como muitos por aqui. Sei só o básico. Prefiro trabalhar com comércio em Lunara que sair por ai! Mas eu também quero saber mais sobre você Naya...

– Só Naya. – Respondeu em ultimato, sorrindo.

– O quê?! Não é justo! – Contestou Ariel, entre risadas.

– Se eu te contasse meu sobrenome teria que te matar. Deixemos apenas assim.

Ariel expressava uma indignação imersa na mais completa ironia, boquiaberto e arregalando os olhos numa falsa surpresa, levando Naya a gargalhar até o ar faltar.

– Ok, insistir não vai ajudar muito pelo visto, né? Então, conte-me ao menos por que nós te encontramos praticamente no meio do nada.

– Digamos que não foi a melhor viagem de teletransporte da minha vida. – Comentou sarcasticamente, ainda rindo das caretas de Ariel. Fôlego. – Sou de Valerian, como você previu. Viver aprisionada lá não era bem o ideal de vida que eu sonhava para mim, por isso estou aqui. Para conhecer mais desse mundo imenso e maravilhoso distante de casa!

– Entendo. Eu também quero sair de Pandora um dia, conhecer Lumine ou Magicália, aprender mais sobre minhas raízes. Visitar parentes distantes. Talvez quando eu for mais velho e tiver mais dinheiro eu vá, mas agora eu tenho obrigações e preciso ficar aqui e, aliás, amo muito minha terra! Mas eu não entendi uma coisa... Como você pode não gostar de viver no reino mais perfeito do mundo? – Indagou Ariel, curioso com o soar severo das palavras da fada.

O reino de Valerian possuía fama de norte a sul por ser uma terra de abundância: tecnologia, riquezas, cultura, magia e diversos fatores que apenas somavam pontos para a construção de uma imagem utópica no planisfério mundial. Soava estranho ouvir alguém falar sobre a terra rubra sem estar acompanhado dos anseios e desejos de um dia morar lá. Mais incomum ainda escutar palavras de infelicidade de uma fada ou silfo que de fato vivia lá.

Naya arqueou as sobrancelhas numa mistura de melancolia e surpresa com o decorrer das palavras de Ariel. Depositando o lenço úmido em sua mão sobre o piso lenhoso, ela desviou o olhar para o nada, impressionada com ingenuidade do elfo:

– De perfeito Valerian não tem nada. Não existe liberdade verdadeira lá. De nada adianta ter todo o poder que nosso reino tem se é mais que constante o medo de ser julgado, mal interpretado ou até de fazer coisas simples que temos vontade. Uma vida repleta de imagens e reflexos sem realidade. Sem sentido.

Ariel se sentiu inibido a perguntar detalhes de como seria a vida dela em Magicália, mas desconfiava de que alguns rumores e estereótipos sobre os reinos do norte fossem realmente verdade. Toda a preocupação com o renome era de fato algo valorizado lá. Parecia inimaginável acontecer coisa do tipo em Pandora ou qualquer outro país de Nimphos, onde tudo conhecido como qualidade de vida fora conquistado a poucas gerações. Mas lá, o valor da reputação fazia-se suficiente para atingir alguém de forma brusca.

Suicídios aconteciam esporadicamente, noticiados pelas transmissões e boatos. Talvez fosse a exigente pressão cultural nortista a causadora dessas mortes desnecessárias.

Toda vez que Ariel assistia algo do tipo, sua mente entrava em conflito. Seriam os magicalianos mesquinhos a ponto de atribuir o valor da própria vida a coisas tão pequenas, mesmo com tudo aos seus pés? Ou seria necessário encarnar na pele de um deles e experimentar essa vida para poder julgar de forma correta? A primeira concepção sempre prevalecia, mas ao ouvir sobre a realidade da boca de alguém que de fato experimentava tal vida, tomar partido se tornava mais difícil.

Não existia maneira de tabelar o preço da própria vida, mas Ariel conseguia entender em parte o porquê de ocasiões lamentáveis assim se repetirem. Uma vida sem luz, vazia de sentido por séculos é tão atrativa quanto uma lâmina no pescoço. Contudo, de algo ele tinha certeza: entender era completamente diferente de aceitar.

Os minutos passavam rapidamente com as palavras trocadas. Mesmo distraída com a conversação, Naya não conseguia parar de se perguntar onde estaria Adna nesse momento. Torcia para que ela não tivesse surtado com as atitudes de Sinandrin...


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