Universo Em Desequilíbrio escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 50
Tomando novos rumos




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Aqueles foram os dois dias mais difíceis e dolorosos da sua vida. Primeiro foi acompanhar o funeral do Titi mal acreditando que um dos duplos dos seus amigos teve aquele final terrível. Por mais que Cebola dissesse que aquilo tinha sido uma fatalidade, ela não conseguia evitar aquele sentimento desagradável de culpa. Teria sido boa idéia querer invadir o barraco ao invés de esperar pela polícia? Não havia como saber.

Também houve depoimentos, dificuldade em fugir da mídia ávida por lhe importunar atrás de notícias, alvoroço de repórteres em frente a sua casa e o telefone tocando sem parar. Até nas redes sociais as pessoas lhe importunavam. Em meio às mensagens das amigas lhe dando apoio, havia os chatos fazendo gracinhas e perguntas indiscretas. Nada de internet por um bom tempo.

A coisa chegou a um ponto em que foi preciso desligar todos os telefones da casa para ter algum sossego. Para evitar toda aquela agitação, Mônica foi dispensada de ir a escola pelo resto da semana. Assim ela teria tempo para descansar e se recuperar do trauma.

Cebola havia levado um tiro no ombro por causa de toda a confusão. Nem ele soube contar direito o que aconteceu. Tudo o que ele lembrava era de um dos bandidos entrando no quarto ao mesmo tempo em que policiais apareciam pela abertura do telhado, vários tiros foram dados e mesmo tentando se proteger uma bala acertou seu ombro. E tudo ficou escuro.

Após passar a noite no hospital, ele foi liberado para voltar a sua casa, onde sua mãe chorosa e preocupada o esperava com aflição. Cascão também se recuperou bem e foi para casa no dia seguinte.

Cebola andava pela rua, com o braço imobilizado por causa do tiro no ombro. Ele ia ter que usar aquilo por um tempo.

– Como você está? – Mônica perguntou indo ao seu encontro.
– Bem. Tirando isso aqui, eu tô inteiro.
– Nossa, fiquei tão preocupada quando você ficou pra trás! Eu devia ter tirado você dali, desculpa!

Ele acariciou o rosto dela com a mão livre e falou docemente.

– Se tivesse ficado, teria levado um tiro. Isso teria sido muito pior pra mim.
– Cê...
– Vamos que daqui a pouco ela vai embora e você não poderá se despedir.
– Tá bom...

Os dois foram em direção a casa da Magali e viram que Cascão tinha chegado primeiro. Eles estavam conversando no portão da casa e pararam de falar quando viram o casal chegando. O visual dela estava muito diferente. Magali usava apenas uma calça jeans, uma blusa azul-escuro e não tinha mais aqueles piercings no rosto e nem aquela maquiagem pesada. Seu rosto estava limpo e Mônica pode ver o quanto a moça estava abatida, pálida, com olheiras e mais magra do que de costume. Até seus cabelos tinham perdido aquele ar rebelde e arrepiado. Agora estavam penteados para trás e já estavam crescendo um pouco, mostrando que Magali não tinha mais intenção de cortá-los.

– Como você tá hoje? – Mônica perguntou para o duplo da sua amiga.
– Melhor, eu acho...
– Puxa... você vai mesmo sair da escola? Por que não fica?

Magali deu um sorriso amargo.

– Meus pais acham que é melhor eu mudar de ares e conseguiram uma transferência pra mim numa escola do interior. Vou morar com a Tia Nena por uns tempos. Quem sabe assim eu fico longe de encrencas.

Mônica ficou em silêncio, sentindo-se frustrada ao ver Magali indo embora daquele jeito. Depois de tudo, seus pais decidiram que a situação na escola ia ficar insustentável para sua filha. Ela tinha feito muitos inimigos e sem sua gangue, ia ficar sozinha e desprotegida contra a ira dos outros alunos. Por isso decidiram que o melhor era tirá-la dali e mudar de ambiente.

– Você vai ficar bem? – Cebola perguntou sentindo pena da moça. Toda aquela pose de valente tinha ido embora, dando lugar a uma garota frágil, delicada e insegura.
– Tranqüilo, tô numa boa. Gente... er... tipo assim...

Ela pigarreou, respirou fundo, mordeu os lábios, fez algum esforço e finalmente conseguiu falar.

– Valeu... de verdade. – ela falou com dificuldade. Agradecer nunca foi seu forte. Geralmente ela achava que quando alguém lhe fazia algo, era com algum interesse por detrás ou, no caso da sua antiga gangue, que faziam por mera obrigação.
– Magali...
– Pelo menos eles deixaram eu levar meu gato. – ela mostrou uma gaiola de transporte onde tinha um gato branco lá dentro.

Mônica colocou o dedo entre as grades da gaiola para acariciar a cabeça do gato e falou.

– Oi, Mingau.
– Heim? Como você sabe o nome dele? – Magali perguntou sem entender nada. Ela nunca havia falado do seu gato para ninguém.
– Er... ele é tão branquinho que parece um mingau de maisena...
– Foi por isso que coloquei esse nome nele.

Cebola esboçou um sorriso, achando a situação até engraçada. Todos pareciam meio deslocados e um tanto sem jeito na frente dos outros. Mônica os olhou lamentando por Magali precisar ir embora justamente quando todos os quatro finalmente tinham se unido. Tudo aconteceu numa situação extrema e perigosa, mas aconteceu e agora eles estavam prestes a se separar de novo. Infelizmente, eles não tinham a mesma ligação e entrosamento que seus amigos originais. E talvez nunca viessem a ter.

(Cascão) - Olha lá quem chegou.

O recém chegado trazia uma grande cesta coberta por um bonito pano rendado e esperava com um sorriso no rosto.

– Vai lá falar com ele. – Mônica lhe cutucou. – Ele ficou na maior preocupação por sua causa.
– Tá... então eu vou nessa pessoal. – Cascão falou indo embora. – Minha mãe me botou de castigo. Um mês sem vídeo-game, andar de skate, sobremesa, ler minhas revistas e... e...

O corpo dele tremeu fortemente e o rapaz terminou fazendo uma careta.

– Ainda vou ter que tomar banho todo dia. Argh! Isso é crueldade, eles querem me deixar mais traumatizado!

Cascão foi embora dali ainda reclamando da injustiça que seus pais estavam cometendo. Ele tinha ido ao salvamento de uma garota em perigo e ainda era tratado como criminoso?

Eles riram um pouco e Cebola resolveu aproveitar a deixa para ir também. Não havia mais nada para fazer ali e certamente Magali preferia conversar com o Quim a sós.

(Cebola) - Se cuida, valeu? E tenta andar na linha dessa vez.
– Pode deixar.
(Mônica) - Até mais, a gente se vê qualquer dia. Boa sorte, viu?
– Valeu.

Mônica sentiu vontade de abraçar Magali, mas se conteve ao ver que a moça não parecia muito a vontade com todo aquele sentimentalismo. Só lhe restou ir embora dali com o Cebola sentindo o coração triste e desolado.

– Oi. – Quim cumprimentou quando os três foram embora.
– Oi...
– Como você está? Se recuperou do que aconteceu?
– Mais ou menos, vai levar um tempo até eu esquecer tudo.
– Pois é... Então você vai embora mesmo...
– É...
– Puxa... que pena.
– ... – houve um pouco de silêncio constrangedor entre os dois. Depois de tanto tempo sem se falar, era a primeira vez que eles estavam frente a frente sem a hostilidade de Magali para atrapalhar.
– Eu trouxe pra você comer durante a viagem.
– Mesmo? – ela pegou a cesta e viu que ali tinha várias guloseimas da padaria. Sonhos, biscoitos, aqueles bolinhos de chocolate que ela adorava e há tento tempo não comia e vários pedaços de bolos. – Puxa, quanta coisa!
– Achei que ia gostar.
– E o seu pai?
– Não esquenta. Já sou bem grandinho e ele não pode mandar na minha vida pra sempre. E sabe...
– O quê?
– Agora que tudo isso acabou, a gente bem que podia... er...

Magali adivinhou o que o rapaz queria dizer e não pode deixar de ser feliz. Depois de tanto tempo, ele ainda sentia algo por ela? Mas não, ainda não estava na hora.

– Olha, minha vida tá uma bagunça danada e eu preciso ajeitar muita coisa. Não tô com cabeça pra isso e também vou morar em outra cidade!
– Eu posso te visitar!
– Você sabe como sou complicada...
– Tudo o que é bom dá trabalho mesmo!
– Não, Quim... você merece coisa melhor. Eu não sou a pessoa certa pra você. Foi mal.

Ele respirou fundo, tentando conter as lágrimas e falou decidido.

– Você precisa colocar sua vida em ordem primeiro e vou respeitar isso. Então eu vou esperar.
– Não perca seu tempo, não vale a pena!
– Isso quem decide sou eu! Então vou esperar o tempo que for necessário. Eu esperei até agora, não esperei? Então posso agüentar mais um pouco!

Por um instante ela pensou em atirar aquela cesta na cabeça dele e lhe falar uma grosseria para fazê-lo desistir de uma vez. Um rapaz tão bom quanto ele não devia perder tempo com alguém como ela. No entanto, ele colocou uma mão sobre seu ombro e lhe falou de um jeito que lhe desarmou.

– Eu gosto é de você, Magali. Nenhuma outra garota jamais comeu os meus quitutes com tanta vontade quanto você. Então eu vou te esperar o tempo que for.
– Pode demorar. E eu posso ter um monte de recaídas.
– Vou estar do seu lado te apoiando. Não pude fazer isso durante esses anos, então vou fazer agora.
– Seu teimoso... – ela falou já sem argumentos para fazê-lo mudar de idéia.

Seu pai saiu de casa carregando algumas malas e chamou.

– Magali, está na hora! Você sabe que a estrada fica movimentada demais perto da hora do almoço.
– Tá bom, pai. Eu vou chegando, tá na hora.
– Tudo bem. Onde você vai tem computador?
– Meu pai me arranjou um iPhone. Dá pro gasto.
– Então a gente vai poder se falar. E quando puder, eu passo lá pra te levar mais umas coisas da padaria.
– Beleza, a gente se vê então.

Ela se despediu do rapaz e quando foi pegar a gaiola do gato, ele segurou sua mão e lhe deu um beijo carinhoso na face.

– Quim...
– Vou sentir saudade.
– ...

Quim pegou a gaiola do gato para ela e a acompanhou até o carro. Os dois se despediram mais uma vez e Carlito arrancou dali, levando sua filha para começar uma vida nova. O rapaz ficou ali por um tempo e voltou para a padaria sentindo-se ao mesmo tempo triste e esperançoso.

– É um bom rapaz, filha. – Sua mãe falou enquanto seu pai guiava.
– O Quim é legal...

Vendo que a filha não queria conversar, eles continuaram a viagem em silêncio. Magali foi olhando a paisagem do seu bairro à medida que o carro avançava. Tanta coisa ia ficar para trás! Aqueles meses tinham sido uma loucura e sua vida virou de pernas para o ar num instante. Agora era hora de mudar e ela estava com medo.

Como seria recomeçar em um colégio novo? Será que ia conseguir fazer amizades? E será que ela ia conseguir evitar cometer os mesmos erros? De uma coisa ela sabia: continuar no colégio do Limoeiro não dava. Ainda mais porque muita gente lhe culpava pela morte do Titi.

Uma olhada rápida nas redes sociais lhe mostrou o quanto todos estavam zangados com ela. Havia comentários hostis, insultos e até ameaças. Apesar de Titi não ser popular na escola e as garotas não gostarem dele, ainda assim os outros alunos promoviam um linchamento virtual mostrando que ela não ia ter nenhum momento de trégua caso voltasse ao colégio.

Na cabeça dos alunos, ele tinha se envolvido com aqueles traficantes por causa dela e pensando um pouco, Magali também achava isso. Tudo o que ela fez foi arrastar seus amigos para o mau caminho e um deles acabou sendo morto sem que ela pudesse fazer nada. De certa forma, aquela culpa ia lhe acompanhar por um longo tempo para lembrá-la de tomar mais cuidado com suas escolhas.

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Os dois se sentaram no banco da praça. O dia estava um pouco nublado e levemente frio. O vento soprava e Mônica agradecia por ter levado seu agasalho.

– Será que a Magali vai ficar bem?
– Acho que vai, sei lá. Vamos ver se agora ela cria juízo.
– Eu achei que ela fosse ficar e que a gente pudesse ser amiga. – ela falou desanimada por ter conseguido tão pouco.
– Ninguém muda tanto da noite pro dia. Ela até que mudou demais.

Ela não concordou. A Magali alternativa não tinha chegado nem perto do seu original, que era tão doce e meiga.

– E como dizem: um passo de cada vez. Vamos respeitar o ritmo dela e esperar.
– É...

O rosto dela estava muito triste e Cebola deduziu que não era só por causa da Magali.

– Você também tá bolada por causa do Titi, não é?
– Que coisa horrível! Eu não esperava isso!
– Ele resolveu mexer com gente que não presta. Era mais ou menos previsível.
– Droga... por que eu fui inventar de querer invadir aquele barraco?
– Quê? Olha, nem pense nisso tá bom? A culpa não foi nem sua nem de ninguém!
– Por que ele não pulou o muro como a gente fez?
– Ele não sabia que a gente entrou no terreno dessa forma, por isso deve ter achado mais fácil contornar a casa e ir lá pra frente onde tava a polícia. Olha, não fica assim não, por favor! O bandido atirou de ruim mesmo, você não teve culpa de nada!

Mônica ficou um pouco em silêncio, pensando no que ele tinha dito. Apesar de saber que ele estava certo, ainda assim era doloroso pensar que o duplo de um amigo seu tinha sido morto. Como ela ia encarar o Titi original quando voltasse ao seu mundo?

– A Denise falou que lá na escola tá todo mundo botando a culpa na Magali. Isso não é justo! Ela até tentou ir ao enterro e...
– E quase foi atacada pela família dele. Ainda bem que os pais dela também tinham ido. É por isso mesmo que foi melhor ela mudar de escola.
– Isso é tão complicado... acho que vou precisar de um tempo. Agora eu tenho que ir pra casa porque meus pais me colocaram de castigo também. Sem internet, telefone, sem mesada, não vou poder ir ao shopping com minhas amigas... eles não vão nem mesmo deixar eu receber os amigos em casa, já pensou?
– Vixe! Eles pegaram pesado mesmo, heim?
– E você?
– Tô tranqüilo. Quem paga minha internet e meu celular sou eu, então minha mãe não tem como me castigar. – D. Cebola praticamente não tinha autoridade sobre o filho, já que ele dirigia a casa sozinho. Não tinha como lhe proibir nada já que ela não queria ter que ficar levantando do sofá para vigiá-lo.
– E ainda preciso ensaiar muito no piano. A festa vai ser daqui a três dias, dá pra acreditar?
– Quê? Você vai ter cabeça pra tocar depois de tudo?
– Tenho que ser forte e seguir em frente. Além do mais, tudo já tá preparado e meus pais esperaram tanto! Não é justo tirar isso deles. Eu vou ficar bem, preocupa não!
– Tá bom. O chato é que a gente só vai poder se falar de novo quando você voltar pra escola. Seus pais não vão te deixar ir ao cinema comigo, vão?
– Ih, nem pensar! A gente vai ter que esperar mesmo!
– Que pena...
– Pois é. Já vou senão minha mãe dobra meu castigo. Tchau!

Ele segurou seu rosto com um mão e lhe deu um beijo intenso, mantendo-a no mesmo lugar e sem conseguir se mexer.

– Tchau. – ele sussurrou quando seus lábios se separaram e após lhe dar mais um selinho, Cebola a deixou ir, ficando ali mais um pouco pensando na vida.

Sim, sim... tudo tinha se ajeitado. Seu objetivo de derrotar Magali tinha sido alcançado, ainda que não da forma como ele tinha planejado. De qualquer forma, ela estava fora do seu caminho e não ia lhe causar mais problemas. E apesar de não ter conseguido conquistar a amizade dos colegas de escola, pelo menos algum respeito ele tinha conseguido. O suficiente para não ser mais o cobaia do colégio. Só faltava uma coisa, mas ele precisava esperar que toda aquela agitação passasse e Mônica se recuperasse daquele incidente desagradável.

– Quando ela voltar pra escola, eu faço o pedido! – Ele falou consigo mesmo sentindo-se totalmente certo do que queria. Não havia mais nada que o impedia de fazer aquilo.



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