Universo Em Desequilíbrio escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 15
Mais difícil do que parece




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O suor escorria pelo seu rosto, as mãos tremiam, as cores fugiram da sua face e sua pele estava gelada de pavor. Na sua frente, aquela coisa monstruosa parecia rir do seu desespero, como uma fera que se comprazia em se divertir com a dor da sua presa. Tudo estava tão silencioso que ela podia ouvir o som da própria respiração e também as batidas do seu coração que parecia gritar agonizado diante daquela ameaça.

– Então, filhinha? Estamos esperando! – Luisa falou pela terceira vez já ficando impaciente com aquela demora. Souza também estava impaciente já que precisava voltar ao trabalho a qualquer momento.
– Eu... er... vocês querem mesmo que eu toque agora? – Mônica perguntou com a esperança de que seus pais acabassem desistindo daquela loucura.
– Claro! Há dias que você nem chega perto do seu piano! Você precisa praticar!
– Certo... eu preciso...

Ela voltou a olhar para a partitura e lembrou-se de quando tinha ido para o Japão com os amigos. Ao olhar para aqueles símbolos que Tikara dizia serem kanjis, ela não conseguia sequer imaginar o que eles significavam. Era um mistério total. Olhando para a partitura, a sensação era exatamente a mesma, como se ela estivesse diante de um texto em japonês. O pior era que seus pais achavam que ela podia entender aquilo, o que não era verdade.

Vendo que não dava mais para adiar, ela respirou fundo, fechou os olhos, rezou mentalmente para conseguir se lembrar alguma coisa e preparou-se para tocar. Talvez, se começasse a bater os dedos nas teclas, a música poderia acabar saindo por si mesma. Como não tinha outra opção, ela resolveu tentar e foi dedilhando as teclas do piano aleatoriamente enquanto olhava a partitura tentando entender alguma cosia.

Seus pais acompanharam sua execução com os olhos arregalados, Luisa sentiu arrepios desagradáveis em sua pele e Souza ficou com dor de cabeça.

– CRENDEUSPAITODOPODEROSO!!! – Durvalina falou entrando correndo na sala como se algo de grave estivesse acontecendo. – Estão matando um gato aqui?

Luisa ignorou a pergunta da empregada e sacudiu um pouco a filha que parecia muito distraída com o instrumento.

– Querida, pare por favor! Esse piano custou uma fortuna e você vai acabar estragando!
– Quê? – ela parou na hora e tirou os dedos das teclas como se elas tivessem ficado quentes de uma hora para outra.
– Minha nossa, o que foi isso? – Souza falou esfregando a testa para aliviar a dor. – Durvalina, me traga um remédio para dor, sim? Ai minha cabeça!

Os dois olharam para filha e pelos seus rostos, dava para ver que estavam bastante aborrecidos.

– Mônica Souza! – aquilo fez o corpo da moça tremer. Não importava qual mãe estava falando, ouvir o nome completo sendo pronunciado com uma cara fechada e duas mãos sobre a cintura nunca era bom sinal. – O que está acontecendo com você?
– Eu... er... acho que estou meio enferrujada e... e... faz muito tempo que eu não toco...
– Muito tempo? Até poucas semanas atrás você tocava maravilhosamente bem!
– Eeeeuuu?
– Claro! Agora, de uma hora para outra, você deu para ficar com esquisitices?

Ela engoliu em seco. Apesar de ter adorado os primeiros dias, com o tempo ela viu que a adaptação ia ser mais complicada do que o esperado. Para começar, a família sempre exigia etiqueta durante as refeições e essas horas se tornaram as mais temidas para ela, que não conseguia mais dar duas garfadas na comida sem ouvir reprimendas de sua mãe.

– Filha, não é assim que segura o garfo.
– Você não deve partir o filé desse jeito.
– Segure o copo delicadamente, ele não vai fugir!
– O guardanapo deve ser colocado no colo. E por favor, coma mais devagar!

Como ela ia saber que seu duplo tivera aulas de etiqueta também? Pelo visto, a Mônica alternativa tinha feito todos os cursos imagináveis, o que deixava a moça ainda mais apavorada porque ela não conseguia se lembrar de nada. E agora, diante do piano que insistia em rir do seu vexame e de dois pais que não estavam nada felizes com o seu desempenho, ela não sabia o que dizer. Não era possível falar a verdade e ela não conseguia pensar em uma desculpa que fosse convincente.

– Por acaso você está com algum problema? – Souza perguntou olhando bem para o rosto da sua filha.
– Eu... não, tá tudo bem! Sério!
– Então por que você está tão mudada? – Luisa também quis saber.

Ela abriu a boca para tentar responder algo e não conseguiu pensar em nada. Não havia como explicar que ela não era a filha deles e sim um duplo vindo de uma dimensão paralela.

Um toque de celular ecoou pela sala silenciosa, fazendo com que Souza desviasse sua atenção momentaneamente.

– Alô? Como? O cliente não tinha cancelado a reunião? Ele mudou de idéia? Justo agora? Céus, tenho que correr! – ele desligou o aparelho e disse afobado. – Preciso ir, um cliente acabou remarcando a reunião e já deve estar a caminho. Você pode cuidar disso, querida?
– Claro, pode ir.

Souza saiu correndo dali, tentando ajeitar o paletó enquanto colocava alguns documentos na sua pasta e Luisa voltou a olhar para Mônica com um olhar inquisidor.

– Mônica, agora que seu pai saiu você pode falar. Tem certeza de que não há nenhum problema?
– O-olha mãe... acho que eu... quer dizer... não sou eu mesma!
– Como assim?
– Tipo, eu me sinto outra pessoa, sabe? É como se muita coisa tivesse dado um branco...

O rosto da moça queimava de vergonha a medida que ela balbuciava coisas sem sentido. Pelo menos sem sentido nenhum para sua mãe alternativa, que ouvia tudo sem entender uma palavra. Por acaso aquilo seria um daqueles conflitos de adolescente? Estranho, ela pensou que sua filha já tinha superado. Como aquilo não estava levando a lugar algum e ela ainda precisava voltar a joalheria, Luisa resolveu não pressionar mais e finalizar a conversa.

– Vamos fazer o seguinte: quando estiver pronta para conversar, me procure. Mas eu quero que você resolva esse seu problema com o piano porque um casal amigo meu vai fazer bodas de prata e eu prometi que você ia tocar no aniversário de casamento deles.

Mônica mexeu os lábios, tentando falar alguma coisa e as palavras não saiam.

– Isso mesmo, mocinha! Você irá tocar em uma grande festa de gala para comemorar as bodas de prata de duas pessoas muito importantes e influentes.

Seus olhos esbugalharam e ela sentiu o ar faltando nos seus pulmões.

– Toda a alta sociedade estará na festa, serão uns duzentos convidados e tudo vai sair nas colunas sociais mais importantes do país!

Ela começou a sentir palpitações dentro do seu peito e uma vertigem desagradável tomou conta do seu corpo. Sem perceber o pânico da filha, Luisa continuou.

– É por isso mesmo que você precisa estar impecável! Não só no piano como em todo resto. Eu vou mandar uma grande estilista fazer seu vestido e projetarei suas jóias com minhas próprias mãos! Por isso, procure melhorar bastante!

Quando sua mãe virou-se para sair da sala, Mônica tirou forças de lá do fundo de suas entranhas e conseguiu perguntar num fio de voz.

– Mãe... para quando vai ser a festa mesmo?
– Para daqui a três meses.

Assim que se viu sozinha, ela desmoronou no sofá tentando desesperadamente recuperar o fôlego. Ela ia tocar piano em uma festa elegante dentro de três meses? Na frente de duzentas pessoas? E sua performance ainda será noticiada pelo país inteiro? O pânico que tomou conta dela foi tão grande que ela não agüentou e saltou do sofá e correu para seu quarto a toda velocidade. Lá, ela fechou a porta cuidadosamente e ao se certificar de que ninguém estaria escutando, ela olhou para os lados e começou a chamar com a voz aflita de tanto medo.

– Ei, homem do jaleco branco! Por favor, me tira daqui! Ai, socorro! Eu quero ir embora, pelamordedeus! Me ajuda! – ela foi falando várias vezes esperando obter uma resposta para sua aflição. As coisas não estavam indo nada bem e era só questão de tempo até seus pais perceberem que ela não era mesmo a filha deles. O que ia lhe acontecer caso descobrissem a verdade?

Ela continuou chamando por Paradoxo sem resposta. Ao ver que não tinha adiantado, ela se jogou na cama e começou a chorar de medo, sentindo o peso de toda aquela cobrança esmagando seu corpo. Até que sua antiga vida não era tão ruim quanto ela pensava. Seus pais podiam não ser ricos, mas pelo menos não lhe exigiam tanto.

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– Ai que dó! Não dá pra fazer alguma coisa? – Magali perguntou sentindo pena da amiga.
– Coitada... tocar piano na frente de duzentas pessoas? Isso deve ser muito assustador! – Xabéu falou também sentindo pena da Mônica.
– Assustador? – Magali perguntou – Ela vai pagar um micão, isso sim!
– Micão nada, um king-kong mesmo! – Cascão completou imaginando a cena da Mônica tentando tocar um piano e quebrando o instrumento em vários pedaços.

Astronauta olhou para Paradoxo e falou.

– É óbvio que ela está tendo dificuldades. Parece que suas instruções não ajudaram em nada.
– Não há problemas nenhum com minhas instruções, comandante, porque não há instruções. Ela precisa encontrar seu caminho sozinha. Eu não posso ensiná-la a fazer isso porque vai de cada pessoa.

Cebola, que até então estava sentado no seu canto mergulhado em seus pensamentos, acabou saindo do seu transe ao ver que ela estava em dificuldades.

– Tá na cara que ela não vai agüentar o tranco. E na boa, a Mônica tocando piano? É mais fácil ela carregar ele, não tocar!
– Acredite em mim, ela é perfeitamente capaz disso e de muito mais coisas.

Cebola ainda tentou argumentar, alegando que uma pessoa de inteligência tão limitada quanto a da Mônica dificilmente ia conseguir resolver aquele problema sozinha. Paradoxo manteve-se irredutível porque sabia muito bem que aquele rapaz subestimava a inteligência daquela moça. Ela não precisava que ninguém lhe apontasse o caminho. Uma dica talvez, mas ela era muito capaz de se virar.

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– Aumenta o som aí, cacete! Não tá dando pra ouvir nada! – Magali ordenou agitando o corpo ao ritmo da música pesada. Franja aumentou o volume e um som estridente de guitarra ecoou por todo ferro velho.

Ela deu um bom gole da lata de cerveja e comeu mais um pedaço de carne que Denise tinha lhe servido. Titi cuidava da churrasqueira e o restante dançava, comia e bebia a vontade. Daquela vez eles tinham conseguido roubar uma boa quantia que permitiu financiar aquela festa. No inicio, ela ficou receosa quando Tonhão tinha roubado aquela televisão enorme de LCD. Mas quando conseguiu vender o aparelho, suas preocupações sumiram e ela resolveu dar aquela festinha para comemorar. Os negócios estavam se expandindo!

Ela olhou para o céu e viu que estava anoitecendo. Que pena... por que o fim de semana tinha que durar tão pouco? Quando seu celular tocou, ela fez uma careta de desagrado. Era sua mãe.

– O que foi?
– Magali, onde você está?
– Com meus amigos!
– Já são quase sete horas, mocinha! Pra casa agora!
– Ah, que saco mãe! Eu tô numa boa com a galera aqui!
– Não quero nem saber! Ou você vem agora ou mando seu pai ir aí te buscar!
– Grrr! Porcaria!
– E não fale assim comigo, senão você vai ver só uma coisa.

A moça desligou o celular na cara da mãe e deu mais um gole da latinha de cerveja.

– Era sua mãe? – Denise perguntou.
– Era. Que merda, viu? Eles vivem pegando no meu pé!

Após comer mais uns pedaços de carne e tomar mais cerveja, Magali decidiu ir embora. Se não fosse, seu pai ia aparecer naquele ferro-velho para buscá-la e da última vez que isso tinha acontecido, ela acabou passando a maior vergonha.

Por ser domingo, ela não teve que esperar pelo ônibus por muito tempo e lá pelas sete e meia ela já estava chegando em casa.

– Magali, isso é hora de chegar? Que horror! Já pensou se te acontece alguma coisa no meio da rua?
– Qualé, mãe? Eu sei me defender, valeu?
– Ah, é? Sabe se defender de bandido armado?
– Que exagero!
– Exagero nada. Você sabe que eu não quero que chegue tão tarde e...

Sua mãe começou a falar e ela se desligou de tudo. Aquele falatório irritante não a interessava nem um pouco. Já cansada daquilo tudo, Magali foi para seu quarto ainda sob as reprimendas da sua mãe e fechou a porta na cara dela.

Seu quarto era escuro, repleto de pôsteres de bandas de rock, algumas pixações nas paredes e estava todo bagunçado, com roupas espalhadas pelo chão, livros que ela nunca lia, sapatos, botas, e várias outras coisas. Um gato branco e peludo saiu debaixo da pilha de roupas que estava sobre a cama e veio se esfregar nela, ronronando alto.

– E aí, amigão? Vem cá. – ela pegou o gato no colo e sentou-se na cama, afagando seu pelo macio. Aquilo fez com que ela se acalmasse um pouco. Mingau se aconchegou no colo dela e ficou quieto. – Minha mãe tá me enchendo o saco, viu? Se pudesse, saia de casa. Ô vida chata essa!

O gato esfregou o focinho nela, que também coçava sua barriga. Era até estranho alguém como ela ter um gato tão lindo e fofo dentro do seu quarto, mas ele a acompanhava desde criança e talvez fosse seu único amigo de verdade, o único que não precisava ser ameaçado para respeitá-la. Magali abriu mão de muita coisa que considerava fútil e típica apenas de patricinhas chatas, mas do seu querido gatinho ela não ia se separar nunca.

– Eu bem que queria ter dado uma surra naquele cobaia. Merda, por que aquela burguesinha chata fica sempre metendo o nariz onde não é chamada? Eu ainda vou acertar a mão na cara dela, ah se vou!

Ela deitou-se na cama com o gato sobre sua barriga e ficou olhando para o teto, pensando em como sua vida era uma droga. E tudo aquilo era culpa do Cebolinha. Por que aquele imbecil teve que estragar sua vida? Agora ela se sentia num caminho sem volta, sendo forçada a seguir em frente e sem nenhuma opção de retornar ou de tentar algo novo. Era por isso que ela pretendia infernizar a vida dele o quanto pudesse. Se ela não podia ser feliz, então ele também não podia. Nem ele, nem ninguém.



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