A História de Maia escrita por Maia Sorovar


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Vampiro - a Máscara é um famoso jogo de RPG. A personagem Fátima é de minha autoria, inspirada nos jogos de tabuleiro.



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“Meu nome é Fátima Azbed Raji. Nasci no deserto, numa família de beduínos. Até os 5 anos era uma garota normal da tribo.

   A partir dessa idade as meninas são iniciadas na dança e nos afazeres domésticos, para que, aos 15 anos, estejam prontas para o casamento. Meu pai achava que eu merecia mais e instruiu-me em matemática, línguas (as mais diversas), astronomia, medicina e até alquimia. Minha mãe ensinou-me a arte da dança do ventre, com todos os seus apetrechos: o véu, a espada, o bastão, as taças, os snujs e o punhal. Gosto mais da última.
  Aos 10 anos meus pais morreram num ataque de mercenários. Sem irmãos e sem um dote, fui acolhida por meu tio, dono de um bordel em Alexandria. Trabalhei para ele como dançarina, sem precisar me prostituir e feria com o punhal aqueles que tentavam ultrapassar o limite. Mas, um dia, um cliente muito poderoso ameaçou de morte meu tio, eu e as outras garotas caso ele não me entregasse. Sem condições de rebater, concordou e amarrou-me na cama.As cordas estavam frouxas para que eu pudesse fugir. Porém, o cliente chegou antes disso e começou a me tocar. Ele não contava com o punhal, o qual não abandonava. Quando dei por mim, já estava fincando a lâmina em sua carne.
  Vingança, doce vingança. Naquele momento descobri o que me esperava no casamento – as garotas da tribo só aprendiam aos 14 anos os mistérios do sexo, mas minha mãe se foi antes de poder me ensinar – e como o sangue podia ser doce. Ao ver meus pais mortos, com 10 anos, tentei reanimá-los e acidentalmente passei a mão suja na boca. Era amargo o sabor e a cena do acampamento destruído deixou-me com uma aversão a morte. Quando parei de esfaquear o sujeito um pouco de sangue respingou nos meus lábios. Era um gosto adocicado (creio que pelo prazer que me deu matar o desgraçado) e então percebi que nem todos os homens mereciam viver.
  Meu tio nunca descobriu o que houve. Não sei como, acho que os deuses me deram forças, carreguei o homem para fora do bordel e enterrei-o no deserto. Meu primeiro assassinato. E eu só tinha 13 anos.
  Passei a aceitar homens no meu quarto, aqueles que eram realmente rudes com minhas amigas, as outras garotas do prostíbulo. Nunca mais eram vistos depois disso. Meu punhal chegou a ficar com manchas na lâmina. Eu tinha por hábito molhar meus dedos com o sangue das vítimas e provar. Sempre muito doce.
  Nenhum crime fica impune eternamente. Acabaram por descobrir meus atos e então fugi. Era maio, daí vem meu pseudônimo Maia.
  Tudo que consegui carregar comigo foram as roupas de dançarina, os véus, a espada, o punhal – entre as roupas estavam a da minha mãe, da minha avó e a que seria entregue-me quando completasse 14 anos para a noite de núpcias – e um medalhão com o símbolo da tribo.
  A fuga foi traumática, pelo fato de eu ser mulher. Corria o século XVI quando parti para a Europa. Tempos difíceis para qualquer pessoa local. Aproveitei-me do intenso comércio do império com a Itália e embarquei clandestinamente para lá.
  Itália, belo país! Apesar de estrangeira, sabia falar a língua local (obrigada, papai) e consegui emprego de tutora numa casa de família abastada em Roma. Mas, novamente, descumpri o 5º mandamento da Bíblia e tive que deixar a cidade. Parti para outra onde tomei contato, em cada localidade que passava, do que chamam hoje de Renascimento e também, Inquisição.
  Deixar a Itália foi um dos maiores erros que cometi. Fui para a Inglaterra, viajando pelas florestas do continente. Ao chegar, soube que os não convertidos ao anglicanismo ou ao catolicismo estavam sendo perseguidos. Minha religião não é a do profeta, ela baseia-se em antigos ritos de adoração à natureza.
  Acusada de bruxa, escapei por muito pouco de ir para a fogueira. Aqui agradeço àquele lavrador que me acolheu, sem pedir nada em troca. Descanse em paz, bom homem.
Cheguei a França, onde a situação era pior. Tinha quase 17 anos na época. Conheci uma trupe de ciganos que tinham certo prestígio junto aos senhores feudais e juntei-me a eles.
  Durante exato 1 ano, apresentei-me em diversas praças públicas e casas particulares do país. Porém, a maldição atacou-me outra vez. No castelo de um desses senhores, seu filho tentou conseguir prazer às minhas custas mas, ao invés disso, conheceu o fio do meu punhal. Acusada em todo o país, parti para a Espanha.
  Torquemada, que homem cruel e terrível ele foi. Assassinava mulheres, homens, crianças, adultos, velhos e jovens por puro sadismo. Eu quase fui vítima de suas pregações e da ignorância popular.
  Prenderam-me numa vila, a 50 km de Zaragosa e, sob tutela do inquisidor local, fui submetida a torturas cujas lembranças fazem doer cada parte do meu corpo. Acabei por ser considerada culpada pela prática de bruxaria e fui condenada à morte na fogueira. Seria numa 5ª feira, à noite.
  Na hora e dia marcados, estava presa no mastro, com a população local gritando:
  - Bruxa!
  - Queime no inferno, Satanás!
  - Volte para seu lugar, reencarnação do Demônio!
  Seguravam as tochas que ateariam fogo em mim.
  Tento, mas não consigo me lembrar direito o que aconteceu. Recordo de uma seta partindo as cordas e outra acertando o inquisidor no peito. Tive também a impressão de estar sendo carregada.
  Acordei numa carruagem, sendo que o sol não havia se levantado ainda. A minha frente estava um homem, como os outros; o que me chamou a atenção foi sua tez, extremamente pálida. Eis uma reprodução do nosso diálogo:
  - Quem és tu, senhor? E onde estou?
  - Estás numa carruagem, senhorita.
  - E a fogueira, a aldeia?
  - Estão longe. Podes ficar sossegada, milady, que não correrás perigo agora.
  - Mas quem és? Para onde estamos indo?
  - Estamos indo para minha casa.
  - Sua casa? O que quer de mim afinal?
  - Preciso de uma criada e achei que eras a pessoa certa.
  - Como me encontrou? Não me lembro de ter visto o senhor antes...
  - Estava passando pela estrada, ouvi gritos e fui ver o que era. Tive uma visão um tanto peculiar da senhorita vestida de negro, amarrada em um mastro. Como sou contra a violência, decidi tirá-la de lá.
  - Então as flechas... Foi você?
  - Sim, minha querida. Gostaria que trabalhasses para mim. Tu me deves isso agora.
  - Eu nunca devo nada a ninguém, senhor!
  - Por favor, só por algum tempo. Prometo que serás bem recompensada.

  - Não prometo nada, mas vou pensar no assunto.

Chegamos a uma mansão, na entrada de Zaragoza, quando faltava pouco para amanhecer. Entramos e ele mostrou-me meu quarto.

  - Podes dormir aqui senhorita! Amanhã virei ouvir sua resposta final. – E se retirou.

Era um quarto bastante aconchegante e, estranhamente, cheio de objetos com figuras de rosa. Tão cansada como estava logo adormeci.

  Acordei ao pôr-do-sol e ao lado da cama estava, numa cadeira, um vestido para uma dama européia. Vesti-me e fui andando pela casa até a sala. Era uma residência finamente decorada, com obras de arte por toda a parte. Quadros, vasos, tapetes e muitas rosas. Ao chegar a sala, deparei-me com meu salvador sentado diante de uma mesa posta para 1 pessoa.
  - Sente e sirva-se à vontade! – Ele disse. – Deve estar faminta e preciso de você com saúde para poder trabalhar aqui.
  Pensei em recusar, mas a fome era tanta que sentei e comi como há muito tempo não fazia. Estranhei o fato dele não me acompanhar e quando terminei, perguntei-lhe o porquê disto.
  - Eu tenho uma alimentação um tanto quanto especial, minha cara – Com um sorriso indecifrável no rosto.
  - Qual seu nome?
  - Chamo-me Diego. Diego del Sino. E o seu?
  - Maia. Só Maia.
  - És muito bonita. Uma pena ter sofrido tanto, Fátima! – Falou como se pudesse ler meus pensamentos.
  - Como disse?
  - Teu nome não é Maia e sim Fátima. Sei de tudo que aconteceu contigo, teus pais, teu tio, o filho do nobre, tudo!
  - Mas, mas... – Eu estava aterrada.
  - É muito simples, minha cara. Vejas isto! - Pegou uma faca, cortou a mão e vi o corte se fechar diante dos meus olhos.
  A esta altura eu já estava de pé, perto da porta, pronta para correr para fora dali.
  - O que o senhor é?
  - Sou aquilo que seu povo não conhece, mas o da Europa sabe muito bem o que é. Sou um vampiro! – Falou uma voz atrás de mim. Ele havia, com uma velocidade impressionante, ido para a porta e bloqueado a saída.
  Realmente, depois de tantos anos com ele, aprendi quase tudo que se pode saber sobre a raça. Mas naquela época até o nome me soava estranho.
  - Um o quê?
  - Um vampiro, um cainita. Vejo que és realmente ignorante sobre nós. Mas fique comigo e tornar-se-á uma grande entendedora do assunto. Eis minha proposta: seja minha criada particular – não se preocupe, não a tocarei sem permissão – e eu dar-lhe-ei, além de salário e um teto, proteção e a possibilidade de viver eternamente.
  Apesar de nervosa, eu ri! A conversa estava chegando aos limites do absurdo.
  - Como disse, senhor? Viver eternamente? Está brincando, não?
  - Não estou não, criança. Tenho uma prova de minha idade. – Dando-me um papel.
  Era uma certidão de batismo de 30 de agosto, de 1245. Não podia acreditar.
  - É mentira, diga que é!
  - Não é, minha querida! Mas...  E tua resposta?
  - Eu não sei, o senhor é... Esquisito.

- Hahahahahha! – Gargalhou. – Essa foi a coisa mais suave que já me disseram. Relaxes, Maia. Existem porém, 2 coisas que deves saber, antes de aceitares este emprego. Primeiro: terás que tomar um cálice do meu sangue todos os dias, para continuar jovem e viver muito. Segundo, é sobre meu alimento. Estou com fome, por sinal. – Disse isso e segurou meu pescoço.

  - O que vai fazer? - Perguntei trêmula. Em outras circunstâncias, teria cravado meu punhal em seu coração, mas este havia sido deixado na aldeia e eu estava paralisada.
  Sem responder minha pergunta, ele abriu a boca e pude ver seus caninos, tão grandes e afiados como num morcego. Em seguida, senti as presas cravarem-se na minha jugular. Um misto de dor e prazer percorreu meu corpo, enquanto meu sangue era sugado. A certa altura desmaiei.
  Acordei ainda na sala, deitada num sofá, com Diego lambendo meu pescoço. Em seu rosto estava estampada uma expressão de imensa satisfação.
  - Teu sangue és delicioso, criança. Acho que isso se deve a tua condição virginal. É uma pena que serás uma lacaia minha e não farás parte do meu rebanho.
  - O que houve? – Perguntei tonta, logo me lembrando. – Como teve coragem de atacar uma dama indefesa?
  - Eu sei que tu não és tão indefesa quanto diz, minha cara. Principalmente quando está com isto! – Entregou-me meu punhal.
  - Como, quando...?
  - Mandei empregados buscarem teus pertences na aldeia. Devo dizer que tem algumas roupas bem interessantes lá.
  Confesso que fiquei constrangida nesta hora. Apesar de tudo o que já havia feito, nunca alguém havia tocado em qualquer coisa minha, principalmente roupas.
  - São do meu antigo emprego, mas acho que o senhor já deve ter conhecimento dele.
  - Sim, eu sei. E gostaria que o mantivesse.
  - Como senhor?
  - Serei prático, minha querida. Quero que dances. Além de minha criada particular, pretendo fazer de tua pessoa uma dançarina das melhores casas de todos os países. Aceitas minha proposta?
  Já faz quase 4 séculos que respondi esta pergunta. Foi algo que mudou meu destino para sempre.
  Diego del Sino cumpriu sua palavra. Mas não sem tirar um certo benefício disso. Minha dança, naquela época e ainda hoje, tão exótica, misteriosa e sensual, atraía homens às dezenas para as apresentações. E estes deixavam suas esposas em casa. Muitos maridos não entendiam o porquê delas serem encontradas desacordadas na sala, cozinha ou quarto.
  Meu mestre ensinou-me o que achava necessário e eu aprendia o que queria, mesmo sem sua permissão. Etiqueta, artes plásticas, música, moda, cozinha fina. Como um vampiro Toreador, era extremamente fascinado pela beleza e pela arte. Vivia rodeada por ambas. Ele gostava de mim, bajulava-me o tempo todo, com roupas e jóias caras, o que pudesse me deixar feminina e atraente para sua pessoa.
  Minha personalidade alterou-se com o passar dos anos. Sempre tinha tudo o que queria, tornei-me um tanto caprichosa, mimada e egoísta. Mas não perdi a doçura e a bondade que meus pais me deram quando me criaram com tanto amor.
  Soa estranho que um ser como ele, vaidoso, mas um perfeito Casanova, nunca tivesse me atacado. Descobri o motivo depois de 100 de convívio, por puro acaso.
  Como empregada de confiança, é minha função limpar os aposentos dele. Ao contrário da mitologia vampiresca existente dizer que estas criaturas adoram castelos velhos e poeirentos, a minha não é assim. Ou seja, toda a casa deve estar na mais perfeita ordem quando for noite. Pois bem, de volta ao meu relato, foi durante um entardecer na Espanha, justamente no local do nosso primeiro encontro. Não entendia porque meu mestre não me deixava limpar a estante mais alta com seus livros; só que como eu descobrira que de lá tinham saído muitas aranhas, desobedeci seus comandos.
  Estava horrível, teias e sujeira por toda a parte. Quase caí da escada de tanto nojo. Ao chegar ao final, encontrei um pequeno diário, bastante antigo. Curiosidade sempre foi um dos meus maiores defeitos e comecei a folheá-lo. Estava escrito em catalão e pertencia à antiga amada de meu mestre, cujo grito me lembro perfeitamente.
  - MAIA! O que pensa que está fazendo?
  Não esbocei qualquer reação.
  - Eu lhe fiz uma pergunta! Responda-me. JÁ!
  - E-eu... Estava... Limpando... – As palavras não queriam sair.
  - E isto que está em sua mão? – Apontava para o diário.
  - Achei... Estava sujo. Eu...
  - Quem lhe disse que podia tocar nesta prateleira? Você tinha ordens para não fazê-lo.
  Aqui faço um apelo. Os que não conhecem a fúria de um cainita não a provoquem. Diego estava apoplético, por pouco a besta não despertou.
  - Largue isso. AGORA!
  - Está bem! – Recoloquei-o no lugar e desci a escada. Ele me arrastou para meu quarto e me trancou lá. Não falou comigo por uma semana e tampouco me deixou sair dali, por mais que eu pedisse desculpas.
  O que aconteceu após isso e quem era a mulher é algo que fui ameaçada de morte caso contasse a qualquer um. Posso dizer apenas que ela é a real razão de meu mestre escrever tantas poesias e nunca ter tido uma amante ou casado-se.

Chego ao final da minha carta e não importa quem a esteja lendo, quero que saiba que a fiz para que minha memória não se desfaça com uma bolha de sabão. Vivo ainda com Diego del Sino, ele me acolheu e cuidou de mim. Só espero que um dia um homem me queira, aceite esta minha condição de carniçal e faça feliz esta que tanto sofreu.”

   

                                             Fátima Azbed Raji, Paris, França, 1953.”


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