Last Letters escrita por AnyBnight


Capítulo 1
I: O Faminto




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Não sou diferente dos outros mortos. Antes de morrer, até antes de antes de morrer, eu já não era ninguém. Apenas um menino de rua esquelético, que passava seus dias revirando lixeiras a procura de alguma comida. Estava sempre faminto, o tempo todo. Não sei se teve algumas vez em que eu não senti fome depois de ter ido morar na rua.

Quando fui encontrado, estava num beco, encolhido ao lado de lixeira esperando alguém jogar o lixo fora para então revirá-la. Tinha alguém parado na entrada do beco, me encarando enquanto segurava uma sacola de pães frescos. "Ei, garoto, quer um?" me ofereceu, e sem pensar, eu avancei na mão que me estendia o pão. Não consegui não chorar naquela hora, era a primeira comida fresca que eu comia em meses! Acho que vi ele rir da minha cena, mas nem liguei, estava feliz por estar comendo.

Ele disse que se eu fosse com ele, poderia comer todos os dias. O que eu tinha a perder? Não tinha ninguém no mundo que se importasse comigo, eu era sozinho. Fiz "sim" com a cabeça enquanto mastigava um segundo pão. Depois que terminei de comer, eu fui com o estranho de jaleco até onde seria minha nova "casa".

Mesmo ele tendo me prometido que eu poderia comer todos os dias, não era bem assim. No dormitório onde eu morava agora tinha uns garotos mais velhos que não me deixavam comer. Minhas refeições se resumiam à migalhas e ossos ruídos que eles deixavam pra trás. Além disso, me ameaçavam pra eu não contar pra Maria, a assistente do doutro, que eles tomavam minha comida. 

Outra vez, passei fome.

Maria começou a vir buscar gente quase todo dia, e um dia, foi a minha vez.

"Maria, posso comer alguma coisa?" ela nem me respondeu quando pedi enquanto íamos pro consultório do doutor Drevis. O caminho todo era de corredores estranhos com cheiro nojento. Aquilo só piorava a dor na minha barriga vazia.

Chegando lá, era uma sala pequena e escura. Não dava pra ver quase nada que tinha ali. Maria me guiou até uma maca e me disse pra esperar. Estava muito fraco e acabei desmaiando. Mas ainda podia ouvir.

Não lembro as palavras exatas, mas sei que quando o doutor chegou ele falou alguma coisa sobre eu estar muito magro e que talvez não resistisse. Quis perguntar o que era, mas parecia que só meus ouvidos estavam funcionando naquela hora. "Realmente espero que este resista. Ele tem o formato ideal para o novo presente de Aya." foi só o que eu ouvi antes de alguma coisa fina e gelada perfurar minha barriga.

Dor.

Muita dor.

Por puro reflexo, meu corpo espasmou e se debateu com força enquanto eu dava um grito mudo. Não tinha percebido que haviam amarras me prendendo na maca até essa hora. O doutor e Maria recuaram alguns passos, só me assistindo agonizar. O sorriso que o doutor tinha era mais assustador que tudo que eu já tinha visto antes.

Senti meu corpo secando de dentro pra fora. Sangue, veias, fluídos, tudo em mim era forçado a endurecer. Era como se eu estivesse virando de madeira ou coisa parecida.

A última reação automática do meu corpo foi esticar a mão e abrir a boca, implorando sem voz pra'quilo parar.

"Não se preocupe, jovenzinho, você não vai mais sentir fome. Eu prometo."

Errado...

Até o fim, até depois do fim, eu estava faminto.

A fome me seguiu até a morte. 


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