A Filha Dos Mundos escrita por Devill666


Capítulo 43
Algumas despedidas I




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A primeira coisa que Saya fez depois de telefonar à mãe foi contactar o advogado. Queria redigir o seu testamento. Por isso, como precisava de duas testemunhas, pediu à Maya e à Sui que a acompanhassem. A ideia era regressar a Caladmirion e nunca mais voltar ao Mundo em que crescera. Assim, ao fim de alguns anos, seria dada como desaparecida ou morta e a sua herança distribuída pela família de acordo com a lei. Isso não a preocupava, apenas queria deixar o jornal a Kohaku. Ele seria o novo director da redação e, quando chegasse a devida altura, seria ele quem procuraria um novo director, com perfil para o jornal e as suas necessidades.

Durante a última semana que passou na cidade que a vira crescer, Saya aproveitou para se despedir de tudo e de todos os que amava. Passou pelas ruas apinhadas de gente apressada, com um passo lento e sonhador, observando tudo já com um sentimento nostálgico. Entrou nalgumas das suas lojas preferidas apenas para fazer compras ( de que não precisava) pela última vez, para reviver pela milésima e derradeira vez estranho ritual de escolher uma quantidade infindável de roupas, experimentá-las e por fim levar uma ou duas. Viu quase todos os filmes que estavam no cinema, chorou e riu, e quase ficou doente com a quantidade astronómica de pipocas que comeu.

Na quinta-feira à noite, organizou um gigantesco jantar para todas as pessoas que trabalhavam no jornal. Mas não lhes disse qual era a verdadeira razão dessa comemoração. Disse-lhes apenas que naquele ano decidira fazer um jantar de Natal, mas pediu que ninguém levasse prendas. O objectivo do jantar não era trocarem prendas, mas sim divertirem-se e conviverem uns com os outros. Foi o melhor jantar em que ela alguma vez estivera.Todos se sentiam alegres e contentes, comeram e beberam bem, conversaram e por uma noite estiveram todos juntos, unidos numa perfeita felicidade. No final do jantar, Saya ofereceu um presente a cada convidado. E quando se estava a despedir de Maya, a sua melhor amiga desde os quinze anos, as lágrimas molharem-lhe os olhos pela primeira vez desde que decidira voltar às Terras da Luz. « Bem, alguma vez tinhas de chorar por causa disto, não tinhas, palerminha?», perguntou para si própria.

Na sexta-feira, dia vinte e três de Dezembro, à hora de almoço, Saya encontrou-se com Kohaku pela última vez na pequena pizzaria em que se tinham conhecido por causa de uma entrevista informal de trabalho, no dia em que a sua amizade começara, ondemais tarde tinham começado a namorar e onde tinham almoçado juntos antes do acidente que mudara para sempre a vida de Saya.

Ela sabia que aquela seria uma despedida difícil. Talvez já não o amasse como amava Kai, mas ainda gostava muito dele porque tinham sido durante anos, antes de começarem a namorar, grandes amigos, e essa amizade mantivera-se sempre. Saya compreendia agora que fora um grande erro terem namorado. Há amigos que nunca se devem tornar namorados, assim como há namorados que nunca devem tornar amigos. Eles era apenas mais um desses casos que devia ter ficado pela amizade profunda e desinteressada. Não o tinham feito e lentamente a relação caíra numa rotina enfadonha, fazendo esquecer o quanto outrora se tinham divertidos juntos. Se ela tivesse decido ficar naquele Mundo, talvez voltassem a ser amigos. Mas suunha que nunca o viria a saber.

Pediram o habitual: uma pizza de frango, molho picante, pepperoni e extra mozzarella para Kohaku, e uma de atum, milho, bacon e ovo cozido para Saya.

- Vou viajar - disse Saya.

Decidira que era a melhor forma de explicar a ausência. Depois eles podiam pensar que ela tivera um acidente fatal ou qualquer outra coisa que quisessem.

- Vais viajar?! Para onde? - perguntou Kohaku admirado.

- Não sei. Vou sem destino. Quero apenas viajar. Parto amanhã.

- Amanhã? E então o jornal? Precisamos de ti.

- Deixo-te. Fica em muito boas mãos.

Kohaku abanou a cabeça e suspirou profundamente repetidas vezes.

- Eu não posso dirigir o jornal. Não sou capaz.

- Durante um mês em que estive no hospital foste perfeitamente capaz. Diria mesmo que o fizeste tão bem ou melhor do que eu...

- O jornal sem ti não é a mesma coisa.

- Kohaku, não podes esperar que o Mundo fique eternamente igual. Tudo muda, uma vezes para melhor, outras para pior, mas muda. E nada o pode impedir. De facto, não devemos sequer tentar impedi-lo. Lembra-te das histórias gregas. Sempre que um rei tentava impedir uma terrível profecia, acabava sempre por provocá-la.

- Eu nunca pensei que acreditasse no destino - disse ele espantado.

- E não acredito. Acredito apenas que determinadas coisas têm de acontecer e que nos é permitido traçar o nosso percurso dentro desse grande e universal caminho traçado no começo dos tempos.

Ele olhou-a simultaneamente espantado e divertido.

- Saya, convertes-te a alguma religião esquesita ou estás apenas a brincar comigo? - perguntou a rir.

- Nem uma coisa nem outra - respondeu ela encolhendo os ombros - Isto é apenas uam filosofia de vida. Tudo o que podemos fazer na nossa vida resume-se a isto: escolher o que fazer com o tempo que nos foi concedido.

- Ah! Estou a ver... Então tu decidiste que a tua vida deve ser a viajar por onde calha.

- Não sejas ironico - retorquiu Saya, suspirando também - Apenas quero poder respirar e viver um pouco. Depois do acidente vi como a vida é curta e frágil. Só quero aproveitar um pouco da minha vida. Visitar a minha mãe e conhecer lugares que eu sempre sonhei em ver. Percebes?

As pizzas chegaram, quentes e fumegantes, com o queijo derretido a brilhar à luz das lâmpadas. Saya inspirou profundamente como se estivesse a absorver todo o cheiro que emanava das apetitosas pizzas. Era quase estranho pensar que aquela seria a última pizza que alguma vez comeria. E mais uma vez a sensação nostálgica invadiu-a.

- Gomenasai - disse Kohaku, enquanto cortava um pedaço grande de mais da sua pizza - Se queres viajar, tens todo o direito de ir. Mas continuo a achar que é um erro deixares-me como director do jornal.

Ela encolheu mais uma vez os ombros e sorriu.

- Tenho a certeza de que escolhi o melhor director que alguém podia escolher. Mas como não to posso provar... receio que vás ter de o constatar por ti rpóprio.

O rosto de Kohaku contorceu-se numa tentativa falhada de conter o riso. Em menos de um minuto, ambos riam alegremente.

- Há ainda mais uma coisa que te quero pedir - disse Saya.

- Tudo o que quiseres.

- Se por acaso me acontecer alguma coisa, quando achares que não consegues continuar, faz o que for preciso, procura o que tiveres de procurar, mas encontra alguém que tome bem conta do nosso jornal.

Ele olhou-a de relance e a sua cara ganhou uma expressão séria.

- O que queres dizer com isso de «se te acontecer alguma coisa»? - perguntou.

- Nada, absolutamente nada - respondeu Saya muito calmamente - As probabilidades de me acontecer alguma coisa durante a viagem são mínimas. Mas os azares acontecem e eu só quero ter a certeza de que o meu querido jornal vai ficar sempre muito bem entregue.

Comeram as pizzas com um apetite sôfrego. Quando acabaram, Kohaku ainda insistiu em levá-la no dia seguinte ao aeroporto, mas ela, por sua vez, insistiu que não valia a pena porque, de mais a mais, ainda nem sequer tinha a certeza de partir para um outro país já no dia seguinte; talvez ainda visitasse primeiro um pouco do seu país. Por isso, com o último adeus, cada um seguiu o seu caminho e nunca mais se voltaram a ver.


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