Spirited Away 2 escrita por otempora


Capítulo 32
Discrepância




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Boh ficou muito tempo agarrado ao corpo morto de Zeniba, como se pudesse trazê-la de volta com aquele simples contato com a pele translúcida e flácida; despejando suas lágrimas sobre o rosto imóvel de sua tia, como um elixir que a tornaria jovem, faria que ela tivesse ainda uma vida inteira pela frente.


Mas isso não poderia ser feito. Pois restava somente um fardo moribundo em seus braços e as memórias falhas em sua mente. Pequenas coisas, gestos e ensinamentos, a que ele não atribuíra o verdadeiro valor, por simplesmente, no momento, não serem importantes de verdade. Agora ele queria resgatar cada fragmento de memória, reivindicar tudo o que perdera para si. Sendo egoísta, tomando segundos do tempo para ver aquela velha sorrir, para ouvir mais uma palavra de sabedoria, ou até mesmo uma bronca. Tudo menos aquela quietude, o silêncio impregnado de tensão e suspense enquanto ele utilizava suas energias para que houvesse um suspiro.


- Bou. – o tom de voz de Chihiro trouxe-o de volta à realidade. Sabia que algo muito ruim havia ocorrido, mesmo sem virar o rosto. Pousou suavemente a cabeça de Zeniba no chão. Inspirou todo o ar que cabiam em seus pulmões e virou a cabeça com rapidez excessiva para o interior da casa, como se não tivesse vontade de prolongar ainda mais a agonia, como se estivesse preparado para tudo que pudesse ver.


Enganou-se ao pensar isso.


- Kamaji? – conseguiu balbuciar.


Lá dentro soou uma voz rouca e terrivelmente velha.


- Quem esta aí? – perguntou, tentando distinguir quem eram os dois visitantes.


Chihiro olhou para Boh, incerta se deveria se anunciar. Não sabia o que havia acontecido, mas temia que, o que quer que fosse, Kamaji estava envolvido nisso. Depois de retornar daquele lugar não sabia em quem mais confiar. Foi Boh quem tomou a palavra e seguiu adiante, expondo-se à luz da janela para que Kamaji pudesse vê-lo, o rosto intransponível. Seguido por uma hesitante Chihiro.


Kamaji estudou os dois jovens por alguns instantes. Eram as mesmas pessoas que o deixaram não fazia mais de uma semana? Não acreditou que fossem, havia uma dureza presente em seus traços, a maneira que os dois se movimentavam... Orientando-se um pelo outro, como se palavras fossem desnecessárias para que pudessem se entender. Eram tão graves!  


- O que aconteceu aqui? – a voz de Boh estava mudada, estava mais grossa e autoritária, além de um desespero latente disfarçado. Ele continha-se com as mãos apertadas em punho ao lado do corpo, o qual pendia para frente, pronto para avançar; tão inseguro em relação à sua presença quanto Chihiro estava.


- Preciso explicar-lhes alguma coisa.


Boh controlou uma nova explosão de fúria diante da voz impassível do velho aracnídeo. Chihiro passou uma das mãos em torno de seu braço para assegurar-se de que ele não faria nada impensado.


- Acalme-se. – sussurrou. 


Kamaji fez que não viu a troca de informações, permaneceu estático, consciente demais de sua posição para estar confortável. Remexeu-se no sofá diante das expressões indagativas e acusadoras de Chihiro e Boh. Passou os dedos pelos cabelos sujos que lhe restavam.


- O que faz aqui, Kamaji? – Chihiro começou, querendo de qualquer maneira romper aquele silêncio oprimente, apertou a mão de Boh num gesto inconsciente.


- Não tenho nada a ver com a morte de Zeniba. – disse. Chihiro relaxou de maneira visível, coisa que não aconteceu com o garoto a seu lado.


- Mas sabe o que aconteceu aqui. – ele afirmou com sobriedade.


Kamaji assentiu solenemente, indicando que ele estava certo. Seus modos mudaram, as palmas juntaram-se na frente do corpo, ele observou-as por um longo tempo, repassando tudo que tinha ido dizer, de forma sistemática e analítica. Depois limpou o suor que se acumulara em sua testa.    


- É verdade. – murmurou para si mesmo. Ergueu o rosto, virando-o para a janela para que pudesse enxergar o sol. Sem acreditar no que estava prestes a fazer soltou as palavras rapidamente, procurando se redimir o mais breve possível, ou receber sua condenação. – Não queria... – parou, sem conseguir encontrar as palavras na hora que mais precisava.


Boh silenciou Chihiro com um gesto ínfimo. Agora não era hora de pressioná-lo ainda mais. Sabia que o velho lutava com sua consciência constantemente durante um período longo demais para que fosse saudável. Deixara de se importar consigo mesmo, com sua casa e as coisas que o cercavam, para voltar-se para seu interior travando uma batalha em seu interior entre duas metades opostas que possuíam um argumento em comum: o de ele ser mal e estar irremediavelmente perdido.


Agora, ele desejava o perdão daqueles que foram mais prejudicados. Viera conversar com Zeniba, porém...


- Traí a todos vocês. Uma vez contra minha própria vontade e na segunda... – enterrou o rosto nas mãos como se não suportasse mais estar exposto daquela maneira, preparado para todas as maldições que pudessem ser lançadas. Mereceria perecer eternamente no reino da Morte.


Ergueu o rosto lentamente, notando o silêncio; silêncio que era ainda mais aterrador do que qualquer injúria que ambos pudessem dizer. Pois ele via a verdade estampada na face dos dois.


- Contei a Haku tudo que ele precisava fazer. Ajudei-o, pois vi o desespero em que se encontrava. Ele não é um mau menino. – justificou-se, enxergando ao homem que o obrigara a revelar coisas que deveria manter secretas como se fosse uma criança indefesa. Como se estivessem na casa de banhos novamente em que suas aventuras nunca acarretariam em morte. Ignorando que agora as coisas tornaram-se sérias demais e que não havia espaço para erros. Ele estava velho, irremediavelmente velho, pois se deixara apodrecer, isolado do mundo. Haku iria permitir que obtivesse sua vida de volta. Poderia retornar ao seu verdadeiro lar, junto a seus semelhantes. – Não é... – retomou o raciocínio. – Ele somente precisava de alguém. – Ou seria ele próprio que necessitava desesperadamente que uma pessoa lhe estendesse a mão para tirá-lo da escuridão? Não sabia. Os desejos se confundiam. Seria por que tinham pensamentos iguais, a mesma solidão intrínseca? A vontade de fugir para longe... de estar perto de quem amavam, nunca conseguindo.


Olhou para Chihiro, ela tinha a Boh agora. Para que careceria de Haku nesse momento? Tinha uma pessoa para lhe segurar a mão quando se sentisse solitária demais. A figura de Haku fora parcialmente esquecida; ainda restavam as memórias distantes demais, e o surgimento de um vilão, o qual ele deveria evidenciar. Era sua obrigação fazer isto, ele ajudara a criá-lo.


- Não o julguem, por favor. – pediu, defendendo-o novamente; sem saber por que tinha esta necessidade. – Ele tem sofrido tanto. – observou Chihiro se encolher mais ainda para junto de Boh, encontrando aconchego no calor de seu corpo. Protegendo-se daquelas palavras ofensivas.


- Foi ele quem matou Zeniba, não foi? – a voz de Boh sobrepujou-se as desculpas murmuradas de Kamaji.


O queixo do velho caiu levemente, antes que ele pudesse se dar conta. Boh já sabia de tudo, desde o início. Agora tinha um poder próprio emanando dele, não dependia mais da força de Haku.


Ergueu-se do sofá com esforço, pronto para partir. Não iria dizer mais nada, não participaria do jogo que Boh planejava.


- Não adianta, Kamaji. A não ser que queira ser morto pelas cópias de Sem Rosto... deve ficar. – deixou que o impacto de suas palavras fosse absorvido.


Kamaji olhou-o com estranheza, sem entender do que falava. Seria mais um truque dele? Boh estava sério enquanto se aproximava.


A escuridão se apossou do entorno.


- Estamos cercados. – Boh disse.


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