Mother escrita por Maxine Evelin


Capítulo 1
Um


Notas iniciais do capítulo

Tive essa ideia há dois anos, mas mantive nutrindo em minha cabeça até que eu tivesse amadurecido o suficiente na escrita para poder postar aqui.
Espero que gostem.



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David era um bom homem, e como um bom homem, ele abriu a porta do carro para a mulher sair. Mesmo esta sendo uma prostituta. As molas velhas do Cadillac 76 rangeram quando a mulher saiu do carro, arrumando a saia que David fizera questão de desarrumar. Sempre que dirigia com alguma companhia, gostava de manter sua mão direita no meio das pernas, seja nas suas, ou nas dos outros, gostava da sensação de ter a ponta de seus dedos quentes e depois dar uma cheirada.

    Tinha em mente que o cheiro de um genital podia dizer muito sobre uma pessoa, e prostitutas tinham um cheiro especial, meio râncido, corrupto, que ele adorava sentir.

    Trancou a porta do carro, apertou o alarme, que soava como um jingle de um comercial antigo, e passou o braço pela cintura da mulher. Mais alta e mais bonita do que ele, juntos, eles pareciam uma versão misturada da loira promíscua e um sósia do Ron Jeremy, daquelas que você só vê nos bizarros filmes pornô germânicos. Ele dizia coisas imbecis, do tipo que somente crianças do primário achariam engraçadas, e ela ria de suas piadas, tentando disfarçar a falta de graça de seu cliente. David olhou novamente para a mulher, analisando os traços de sua fisionomia. Era de fato um achado maravilhoso, seu rosto ainda era jovem o bastante para se destacar entre as outras, suas pernas eram longas e torneadas, seu busto não era avantajado como a maioria de suas acompanhantes, mas isso não importava, ele gostava de seios pequenos.

    — Espero que você esteja com fome, antes de ir te buscar, deixei preparando uma ótima caçarola de fígado.

    — Ah, iremos fazer em sua residência? Bem… Eu não costumo fazer em residências. Não tenho essa permissão, sabe?

    — Ah, o que? Seu cafetão vai te bater por causa de uma boa trepada na casa de seu cliente? Duzentos dólares a mais te dá alguma segurança? Mas não se preocupe, iremos trepar em meu trabalho. — disse David, retirando duas cédulas de cem dólares do bolso, e colocando-as por debaixo do top apertado. — Vamos! O que é isso, Sarah? Aposto que você deve estar morrendo de fome, ninguém é de ferro.

    A prostituta sorriu, acanhada, e acenou com a cabeça. David riu alto e tirou uma chave rústica do bolso do paletó branco. Uma porta antiga de mogno se diferenciava de todas as portas que disputavam espaço no quarteirão comercial. Na vitrine ao lado, grossos vidros escuros escondiam seu interior, apenas mostrando em sua superfície letras grandes e douradas. Taxidermia Irmãos Feellan, est. 1876. A porta abriu em três giros lentos e dois estalos agudos, um cheiro forte de curtume velho vinha de dentro do estabelecimento, fazendo o nariz de Sarah arder.

    — Venha. Vamos entrando, a caçarola deve estar quase pronta — disse David, entrando no estabelecimento devagar.

    Luzes de um lustre de metal se acenderam quando David abaixou a alavanca. O hall estava repleto de animais empalhados; animais raros, empalhados durante séculos, exibidos como troféus de de extrema qualidade. Corujas albinas observavam a entrada do estabelecimento, seus rostos paralisados em diversas expressões, de agonia a surpresa. Ursos pardos mantinham-se em pé perto da entrada, as cabeças levemente inclinadas para o lado, davam a impressão de estar observando atentos aos passos de seu dono e da estranha que o acompanhava. Sarah deu um grito e saltou para trás, agarrando-se no batente da porta.

    — Uma beleza, não é? — perguntou David colocando o paletó no cabide, lágrimas de riso escorriam de seus olhos. — Ursos pardos do noroeste, empalhados em 1934 pelo meu avô. Incrível como até hoje parecem reais, não é? A técnica de Taxidermia de meu avô era considerada a melhor de toda a América.

— Você empalhou todos esses bichos?

    — Não, não. Muitos deles são de gerações passadas, minha especialidade é diferente de meus parentes. Eu cuido da venda dessas peças, minha mãe é a responsável por continuar empalhando os animais e mantê-los preservados. Aliás, mamãe é uma das melhores captadoras de expressões em Ursidae e Chordata. Ela e meu irmão, que, bem… Não está aqui no momento.

    — Ah. Interessante. — respondeu Sarah, olhando para o hall gigantesco. Animais de vários portes, formas e posições. Símios pendurados em suportes no teto, como se estivessem dependurados em rochedos. Aves presas por fios de pesca, paralisadas em um voo de caça caótico. Uma verdadeira selva colorida de movimentos e angulações, como se o tempo tivesse parado de forma natural, no meio de um habitat pseudo selvagem. — Ahn… Vai querer me comer aqui mesmo? Eu não me sinto muito a vontade com esses animais todos ao redor.

    — Nunca vi uma pessoa tão cheia de frescura como você, por acaso é o seu primeiro programa, é? - David riu. - Calma, calma. — levantou as mãos e apontou para o corredor. — Primeiro nós vamos jantar, quero conversar um pouco, te conhecer um pouco, botar as notícias em dia. Sabe, um homem como eu, com quase 40 anos nas costas, sem esposa e herdeiros, é meio complicado. Solitário, digamos. E outra, a caçarola é realmente boa.

 

    A mulher sorriu e o acompanhou pelo corredor estreito até outra sala menor, passou pelas pequenas correntes de miçangas, que estavam presas ao batente da porta e parou em frente à uma longa mesa de jantar. A sala era mais simples do que a entrada do estabelecimento, um tapete antigo vermelho se estendia por quase todo o chão, seus detalhes dourados combinavam com os retoques da mobília que preenchia a sala. Sofás antigos, de aparência cara. Na superfície de cada mesa, de cada batente, nas paredes, pinturas e fotos de rostos e pessoas sentadas. Todas sem expressão, como mandavam os costumes de antigamente.

    — Não se acanhe, puxe uma cadeira e sente-se, vou lá pegar um pouco de Caçarola… — disse David, sorrindo, caminhando até uma porta e desaparecendo por ela. Sarah sentou-se e deu uma nova observada no lugar. Os papeis de parede eram antigos, uma mistura de creme com bege, cores que somente famílias do tipo republicanas sem sal escolheriam. O rifle de caça, escorado sobre a lareira decorativa; o relógio cuco, cujos ponteiros tremiam sem sair do lugar; os candelabros de prata, com velas de silicone e pequenas lâmpadas, ao invés de chamas. Tudo isso dava um ar bizarro ao local. Os guaxinins empalhados nos quatro cantos da sala, em pé, esticando as patas, como se quisessem ver o que havia na mesa de jantar. O casal de corujas sobre o armário, que encaravam-na com olhares de desdém. As pessoas nas fotos, com expressões de indiferença. Tudo naquela sala era estranho, absolutamente tudo. Disso ela tinha certeza.

    O barulho da mecânica enfraquecida do relógio ressoava numa melodia catatônica, angustiante. O cheiro da caçarola, misturado ao odor mórbido de coisas velhas, fazia o estômago de Sarah revirar. Por um momento, a seguinte pergunta passou-se em sua cabeça: O que eu estou fazendo aqui? Não era uma pergunta que ela fazia com muita frequência, mas quando acontecia, era sempre seguida de um calafrio, que a fazia travar por inteiro. Um barulho alto de metal ecoou de trás da porta, seguido de uma dúzia de xingamentos.

    David abriu a porta, segurando uma bandeja cheia, carregava-a com uma toalha de cozinha e um pegador em forma de sapo, seu avental, da    queles que você só acha em brechós, dizia em letras maiúsculas e tortas: “EU amo Cosinhá”.

    — Olha aqui, demorou, mas chegou. A caçarola estava grudada, então tive que tomar cuidado, mas... — David soltou um chiado ao encostar a bandeja quente na mão desnuda. - Ai! Essa porra está quente, cuidado para não queimar a boca. Não quero que você perca a sensibilidade. — soltou uma risadinha.

    Sarah olhou para a bandeja. Era, de fato, uma das melhores refeições caras que ela havia visto. Tivesse sido ele quem a preparou, ou se apenas requentara no fogão para fingir ser bom na cozinha, parecia muito bem feita.

    — Pegue um pouco. Caçarola com fígado é minha especialidade. — disse David, cortando um pedaço e colocando em seu prato. Sarah comia pouco, estava sem fome no momento, mas a comida estava saborosa. O fígado e massa de caçarola estavam impecáveis. A maciez da caçarola com a textura suave do fígado desmanchavam em sua boca, fazendo-a querer mais.

    — Gostou do fígado, né? Eu sabia. Fígados gordos sempre desmancham na boca. Bem, você não tem problema de colesterol, tem? — David riu e deu mais uma garfada em seu prato. Conversaram por alguns minutos. Ele comia afobado, uma garfada atrás da outra. Contou sobre seu trabalho na loja de Taxidermia, onde havia uma sala somente de troféus, ganhos pela família durante os dois séculos de funcionamento da loja. Durante vários minutos entediantes, ele fez um monólogo sobre sobre seus orgulhos ridículos e seu trabalho, enquanto Sarah apenas meneava a cabeça e sorria, desejando que tudo isso acabasse logo. Não era de se surpreender que ele estivesse solitário por tanto tempo. O cara era um porre.

    — Diga-me, Sarah, certo? — Sarah acenou com a cabeça e David a acompanhou. — Bem, quantos anos você tem?

    — Fiz dezoito faz pouco tempo.

    — Dezoito?! Quer dizer que você é nova nisso? Ah… — David limpou a boca suja com um guardanapo. - Quer dizer que você é inexperiente, então? Você sabe fazer uma garganta profunda, pelo menos?

    — Não, eu…

    — Hahahaha! Peguei você, sua boba. Coma mais um pouco, vamos passar horas nos divertindo. Fiz questão de tomar dois azulões. Só por precaução, sabe? — David lambeu o bigode de ator pornô, e deu uma ajustada nos colhões.

    Um grito agudo ecoou, vindo do andar de cima do estabelecimento, David olhou para cima e pediu desculpas.

    — Minha mãe. Ela está bem doente, os médicos dizem que é uma vertente raríssima de Alzheimer. Ela sofre, não se lembra de como falar e tem dores por todo o corpo. Peço desculpas por isso, e por trazê-la para cá, mas não posso deixar minha mãe sozinha. Meu irmão está viajando e eu estou sozinho aqui. É… É complicado. — David abaixou a cabeça. Por um momento, Sarah sentiu pena daquele homem baixinho e bigodudo.

    — Sei… — Sarah olhou para o prato quase limpo. Não se sentia muito bem, uma tontura repentina fez com que sua visão ficasse turva. Um calafrio subiu por sua espinha, suas pernas tremeram e sentiu sua bexiga afrouxar. Agarrou os talheres fortemente e sentiu o mundo girar. Por um momento, pensou em sua pressão, ou em alguma alergia aos ingredientes que tinham naquela comida. Por um momento, desejou novamente não estar ali. Seus olhos percorreram a sala, os olhares nos quadros perscrutavam-na, olhares frios e calculistas, quase sem vida. Sentiu-se nua e envergonhada, como uma menina no chuveiro coletivo da escola pela primeira vez. Sua cabeça foi para trás, e sentiu a saliva espumar em sua garganta. Ao longe, aquela figura gorda e anatomicamente desastrosa retirava os pratos e colocava uma toalha no local. Sentiu sua mão sebosa afagar seus cabelos e, ao longe, um sussurro:

    “Durma com os anjos” e empurrou a cabeça dela contra a toalha.


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