Haviam se passado dois dias depois da confusão com o alarme de guerra. Eu, meus pais e Klaus estávamos almoçando na grande mesa de madeira, caríssima e de um material raro. Como se isso importasse, coitada da árvore que morreu pra essa futilidade. Meu pai já havia acabado sua refeição, e agora estava lendo um jornal, como sempre. Usava seus óculos de leitura, que escorregavam pelo nariz, e ele tinha de empurrá-lo a cada cinco segundos. Klaus cutucava a batata em seu prato monotonamente e eu... bem, eu comia como uma selvagem. Oras, sempre gostei de comer. E aquele carneiro estava maravilhoso. 

__ Clair, desse jeito vai ser expulsa do internato na primeira semana. - disse minha mãe, me olhando com as sobrancelhas franzidas.

"Isso seria ótimo". Pensei. Mas, obviamente, não falei. E tentei comer de um modo mais educado. 

__ Vão começar a convocar soldados aqui na Polônia e em outros países. Parece que estão querendo levar os soldados pra França e Inglaterra. Eles estão precisando de reforços.- meu pai disse depois de alguns minutos de silêncio. Se eu fosse um homem me ofereceria pra ir. Mas sou mulher, e se fizesse isso provavelmente ririam da minha cara.

__ Hum. Klaus, o que acha disso?- minha mãe perguntou olhando meu irmão, que ainda cutucava a batata em seu prato.

__ O que?- ele perguntou, erguendo os olhos preguiçosamente.

__  Talvez seria bom se você fosse para o exército, Klaus. Você não tem lá muito sucesso na vida acadêmica, e tiraria da sua cabeça essas bobagens de música.- meu pai respondeu por minha mãe. Meu Deus, isso é sério? Eles querem que Klaus vá pra guerra?

__ Vocês estão brincando, certo?- ele perguntou, com uma expressão de espanto.- Eu posso morrer!-

__ Ah, querido, claro que não. Você não precisa lutar, pode ficar com um trabalho mais leve. Teria uma rotina dura, acordaria cedo sempre, uma alimentação saudável. Você voltaria pra casa como um homem formado!- minha mãe disse, começando a se entusiasmar com a ideia. Eu assistia tudo atônita, com a boca suja de molho.

__ Mas vamos com calma. Vou ver os detalhes e veremos o que faremos.- meu pai disse, voltando a ler o jornal.

Klaus se levantou ruidosamente e subiu as escadas, aparentemente aborrecido.

__ Querida, está sujo aqui.- minha mãe me disse, entregando-me um guardanapo. A ignorei e fui atrás de Klaus.

O encontrei eu seu quarto. Ele estava com uma mão na parede, olhando a vista pela janela. Seus olhos estavam vermelhos, mas não vi nenhuma lágrima. Ele me olhou e forçou um sorriso, e eu retribuí.    

__ Sua boca tá suja de molho.- ele disse.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

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Já era noite. Ficamos sabendo que a Inglaterra e a França haviam declarado guerra contra a  Alemanha. Não sei se entendi muito bem isso, mas parece que formaram-se dois grupos. Os Aliados, que eram liderados pelos Estados Unidos, pela França, Inglaterra e URSS. E o Eixo, liderado pelo Japão, Alemanha e Itália. E nós fazemos parte dos Aliados. O Brasil era um dos países que mais nos ajudava aqui na Europa, mandando várias tropas. E era o único da America Latina que fazia isso. Mas ainda assim estavam convocando lá na França e Inglaterra. Se Klaus realmente fosse pro exército como meus pais estavam pretendendo fazer, provavelmente ele iria pra França, que é mais acessível do que a Inglaterra. Nós dois iríamos para França então. Eu em um internato de moças e ele na guerra. Naquele momento um pensamento louco passou por minha cabeça. E se trocássemos de lugar? Claro que não quero dizer que ele iria pro internato e eu pra guerra. Eu iria pra guerra e ele poderia... poderia se juntar à banda de Harry e Gordon! Com meu jeito pouco... afeminado, eu poderia me passar por um homem! Muito arriscado, vá dormir Clair! Minha consciência me alertou. Estava com sono, e realmente resolvi ir dormir.  Talvez eu estivesse delirando, talvez esse pensamento fosse idiota demais. Mas não tirei aquilo da cabeça. E se desse certo?

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Quando acordei, já me troquei, substituindo a camisola creme por uma roupa confortável. Minha mãe achava que eu andava desleixada demais em casa. Mas por que diabos eu deveria me arrumar pra ficar em casa? Já odeio fazer isso quando vou em festas e reuniões de negócios entediantes do meu pai. Tomei meu café e fui até a biblioteca pegar um livro escondida.  Klaus ainda dormia e meus pais deviam ter saído. Hellena, nossa cozinheira já começava a preparar o almoço. 

O livro era bem interessante, e eu estava confortável deitada em minha cama com minha coberta fofa me protegendo do frio comum na Polônia. Ouvi duas batidas na porta.

__ Pode entrar!- falei alto pra que a pessoa pudesse ouvir.

Helenna entrou no quarto. Ela era uma mulher de meia idade, cabelos loiros quase brancos de tão claros, olhos azuis e pele rosada. Era um pouco acima do peso, e minha mãe vivia a induzindo a começar um regime. No entanto, ela apreciava a arte de comer, assim como eu. 

__ Bom dia Clair!- ela disse com um sorriso grande, mostrando suas covinhas. Eu tinha uma covinha, mas de apenas um lado do rosto. Klaus disse que os garotos achavam isso um charme. 

__ Bom dia Lenna!- retribuí o bom dia. Eu a chamava de Lenna desde os meus 11 anos, quando ela começara a trabalhar aqui em casa.

__ Seus pais não vão almoçar em casa hoje. Mandaram avisar que foram organizar algumas coisas do seu casamento, papelada eu acho. - ela disse. Graças a Deus não vou ter uma cerimônia de casamento. Apenas iríamos ao cartório e tal.

__ Ah, o casamento.- disse suspirando. Não eram suspiros de felicidade, obviamente. - Tudo bem, obrigada Lenna.-

Ela sorriu e saiu do quarto, fechando a porta novamente. Voltei a ler, mas não conseguia me concentrar. Não sabia o que estava lendo. Só pensava na minha ideia maluca e no casamento. Me levantei e escondi o livro embaixo da minha cama, para que meus pais não o descobrissem. Eu tinha que falar com Klaus, ver o que ele achava da ideia.

O encontrei assistindo televisão na sala. Aquele aparelho havia sido muito caro, e vinha de Londres.  Parece que passava um programa de comédia, pois ele ria. Me sentei ao seu lado no sofá marrom de couro. Fiquei o encarando até que ele percebesse que eu queria conversar com ele. 

__ Por que está me olhando assim, Clair?- ele perguntou, erguendo a sobrancelha direita.

Eu contei todo o "plano". Ele ouviu tudo calado e sem demonstrar nenhuma expressão.

__ Você só pode estar louca.- ele disse quando eu acabei de falar.

__ Klaus! Você não quer tanto formar a banda? Na França tudo seria mais fácil!  Lá tem várias gravadoras famosas, que fazem sucesso na Europa inteira!- falei, tentando convencê-lo.

Ele balançou a cabeça, meio confuso.

__ Clair, isso tudo é muito maluco. Mas... eu vou pensar. 

Sorri animada e baguncei seu cabelo castanho, como sabia que ele odiava.

__ É assim que se fala!- disse.