Shikihime escrita por Ms Saika


Capítulo 10
IX - Segredos de Sangue




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Algum lugar entre Uhr e Denhaar


As quatro montarias trotavam com um rumo certo em meio aos campos verdes daquele fim de verão. Já estavam a uma distância segura do exército de Uhr depois de terem cavalgado quase a madrugada inteira. Todos estavam visivelmente exaustos. Serge guiava seu cavalo com um semblante bastante pensativo enquanto sentia o corpo de Alina totalmente apoiado atrás de si. Foi quando aos poucos a sentiu pender para um dos lados, escorregando por suas costas até cair da montaria, fazendo-o voltar-se a ela surpreso.


–Princesa! – O grito fez os guerreiros estancarem a marcha e olharem o príncipe, que desceu rapidamente do cavalo e foi até a jovem caída ao chão. Alina estava pálida e fraca, mal conseguia manter os olhos abertos, fazendo-o olhá-la com preocupação. Foi então que ele percebeu que ela repousava uma das mãos sobre uma grande mancha de sangue na barriga. Rapidamente ele puxou-lhe a parte superior do uniforme de soldado que ela usava, descobrindo enfim um corte aberto que o fez arregalar os olhos.


–Nossa, isso está feio... – Um dos rapazes disse descendo do cavalo para olhar de perto.


–Vamos parar um pouco, homens. É melhor tratar isso aqui logo antes que piore... – O príncipe disse, tomando a ruiva nos braços com cuidado e seguindo com seus homens para uma pequena clareira no meio daquela floresta aberta. Ele e os demais acomodaram-se num acampamento que logo seria desfeito, mas que já seria suficiente para que pudessem descansar um pouco depois das horas de cavalgada. Tomando de seu bornal, o jovem retirou agulha, linha e alguns retalhos de tecido grosso. Alguns momentos depois, um dos companheiros lhe trazia uma cuia com água recém esquentada da fogueira feita para aquecer aquele princípio de manhã. Serge lavou com cuidado o material que usaria e também o ferimento, ajudado por Liam sob os olhares curiosos dos outros dois. Alina, um tanto entorpecida pela fraqueza, relanceou um olhar ao príncipe sentado ao seu lado. – Por que não disse que estava ferida?


–Não quis atrasar os planos... – Ela disse com voz rouca.


–Quando isso aconteceu? – Serge perguntou, não se lembrava de ter visto Alina ser atingida durante o rápido confronto no acampamento.


–Em Oran, na batalha... Antes de Horen me fazer prisioneira. Fizeram um curativo simples pra conter o sangramento até chegarmos em Uhr, não é um corte sério.


–De fato não é, mas requer cuidados... A movimentação o fez abrir e pelo visto você perdeu uma quantidade considerável de sangue, vou precisar dar alguns pontos.


–Você é médico por acaso? – Ela perguntou com certa impaciência, tanto pela dor quanto pelo estado vulnerável em que se encontrava.


–Não, sou um cavaleiro. Mas fui treinado para lidar com ferimentos assim e ajudar companheiros de batalha. Meu irmão me ensinou. – Serge respondeu preparando agulha e linha. A visão daquele material fez Alina arrepiar-se e virar o rosto na direção contrária. – Bom, isso vai doer um pouco... – Disse com um leve sorriso sem graça.


–Segure minha mão, senhorita. Pode apertá-la se precisar. – Liam ofereceu gentilmente.


–Não precisa, obrigada. – Ela disse fechando os olhos ao sentir os dedos de Serge apoiarem-se ao redor do ferimento como se ele estivesse se movimentando em câmera lenta. – Ande logo com isso, por favor. – pediu impaciente. O príncipe sorriu.


–Tudo bem então... – Dizendo isso ele finalmente deu a primeira agulhada na pele da princesa e com destreza iniciava o primeiro ponto. Alina sentiu uma dor aguda percorrer a espinha e explodir num gemido rosnado, fazendo-a instintivamente esquecer o orgulho e apertar com força o pulso de Liam, que estava coma mão apoiada ao seu lado. – Preciso que fique o mais imóvel possível. – O príncipe dizia enquanto ia habilmente fechando o ponto.


–Isso dói mais do que a própria ferida! – A garota proferiu brava em sua dor, tentando manter-se estática com a ajuda de Liam e Caleb. O príncipe manteve-se concentrado, dentro de mais alguns minutos de gemidos e xingamentos da ruiva o trabalho estava feito. Alina suspirou aliviada quando aquela tortura finalmente terminou, já estava ofegante e transpirando.


–Pelo visto foi a primeira vez que levou pontos. – O príncipe disse-lhe com um ar de graça que fez a princesa sentir-se um tanto envergonhada das possíveis caras e bocas que fez enquanto o curativo era feito. – Mas não se preocupe, vai ficar bem agora. Deu sorte isso aí não ter ficado feio de verdade... - O rapaz envolveu o abdome dela em um curativo que apertava e mantinha o ferimento preso e fechado para que ela pudesse se movimentar. Logo em seguida levantou e quando voltou lhe trouxe um pouco de água e frutas colhidas das árvores próximas. A ruiva ergueu levemente o corpo com cuidado para não abrir novamente o corte e, apoiando-se numa árvore ao lado, serviu-se rapidamente. Estava faminta.


–Você ainda não me disse quem é, nem pra onde está me levando. – A garota perguntou olhando-o com certa desconfiança e curiosidade.


–Bom... Meu nome é Serge Vaughanhaar. – Ao ouvir o nome, Alina franziu o cenho.


–Vaughanhaar... Esse não é o sobrenome da realeza de Denhaar...? – A princesa perguntou um tanto incrédula, olhando-o com surpresa. – Você é da família real de Denhaar?!


–Sim, sou o filho mais novo do rei Frid. – Ele disse.


–Está mentindo. O rei não mandaria seu filho mais novo para correr um risco tão grande assim. – Serge sorriu como se já esperasse tal reação, então puxou da testa a faixa azul que costumava usar, revelando a marca que trazia. Alina surpreendeu-se.


–O segundo filho... – Ela murmurou para si ao observar as duas linhas, inicialmente paralelas, que se encontravam em um ângulo na parte inferior, marcadas no meio por uma curva da qual se ramificavam traços como se fossem raios. A marca lembrava um sol escondido entre duas montanhas. – Então você é mesmo filho do rei... Quer dizer que Denhaar enviou uma missão para me resgatar?


–Não exatamente... – Serge desviou o olhar, coçando levemente a cabeça.


–O que quer dizer?


–É uma longa história, eu explicarei depois. Por enquanto é melhor descansarmos um pouco e seguirmos viagem no fim da manhã. Se formos rápidos, chegaremos em Denhaar à noite.


–Eu não irei até Denhaar, irei para Oran! – Alina disse enquanto ele se levantava, fazendo-o olhá-la surpreso.


–Não pode ir pra lá agora, tudo está tomado pelo exército de Uhr. Como vai chegar lá sozinha e sem um exército? E ainda por cima ferida e cansada. – Serge falava com uma razão que contradizia seu ato inconsequente de ir resgatar a princesa da forma como o fez. Alina baixou a cabeça resignada, sabia que ele estava certo.


–Meu povo está sofrendo, precisa de mim...


–Eu entendo a sua aflição, mas não vai poder fazer nada por ele agora. Se voltar, poderá ser pega de novo ou morta. Em Denhaar você estará a salvo, Oran terá esperança. – Ele disse passando-lhe uma confiança que fez Alina aquietar seu coração perturbado. – Por enquanto, descanse um pouco. Logo seguiremos viagem. – E dizendo isso, Serge afastou-se. Alina deitou-se na cobertura de pele que a separava do chão e lhe servia de forro para acampar. Apesar da falta de conforto e da luz do dia que aos poucos ia se clareando, o cansaço era tamanho que logo ela estava entregue a um sono profundo.


–x-


Trovithera


Do céu nublado daquela manhã começava a cair as primeiras gostas de chuva. Uma brisa fria balançou os cabelos escuros de Abrah, que postava-se na entrada do grandioso castelo observando um homem de capa que se aproximava acompanhado por dois guardas. Quando os viu perto, desceu alguns degraus para receber com um sorriso o recém chegado. O mesmo postou-se diante do comandante Trovitheriano e desfez-se da parte superior da capa que ocultava em sombra seu rosto, deixando os pingos de chuva molharem seus cabelos negros. Era Dankell.


–Finalmente chegou... Estava me deixando preocupado. – Abrah disse-lhe com um leve tom de ironia, antes de saudar o outro com um forte abraço. Com um gesto, dispensou os dois guardas que logo se retiraram e deixaram-nos a sós.


–Pelo visto estava ansioso pelo meu retorno. Já previu que trago boas notícias? – Dankell perguntou sorrindo com sua voz enrouquecida enquanto os dois puseram-se a subir os degraus que os levariam ao castelo.


–Sinto uma grande maré de sorte nos levando à grandeza, Dankell. Principalmente agora que a rainha concordou em vê-lo. Sei que vai conseguir impressioná-la. Mas independentemente das boas notícias... É bom revê-lo finalmente, irmão.


...


Orwen adentrou o salão, fechando cuidadosamente a porta atrás de si e indo em direção à figura mais adiante, de costas para ele, que repousava sobre um divã. Os profundos olhos azuis da loira passeavam pensativos para além da janela, observando a chuva que ia se tornando cada vez mais pesada lá fora.


–O homem de quem Abrah falou acaba de chegar. Eles estão vindo para se reunir com a senhora.


–Espero que toda essa preparação e espera não seja uma perda de tempo... Espero que ele possa me trazer informações valiosas. – Medith disse, levantando-se e caminhando até Orwen e deixando-se cair languidamente nos braços dele, cerrando os olhos e escorregando a cabeça por seu peito numa espécie de afago. As mãos dela lhe percorreram os braços lentamente até repousarem sobre eles delicadamente. O general, por sua vez, apoiou a lateral do rosto sobre os cabelos macios, envolvendo-a num abraço leve, mas ao mesmo tempo caloroso.


–Sabe que eu não confio em Abrah. Sendo assim, também não confio numa pessoa indicada por ele.


–Eu também não confio, e é justamente por isso que eu o mantenho por perto. Mas à essa altura, toda e qualquer ajuda é válida, vamos ouvir o que essa pessoa tem a nos dizer. – Ela disse, separando o corpo do dele e acariciando levemente o rosto do rapaz, antes de dar as costas e ir até a janela. – Traga-os até mim, Orwen. – Ela ordenou, recebendo dele um aceno positivo. O general foi até a porta, mas antes de sair, olhou-a novamente.


–Mantenha os olhos abertos, Medith. – Ele alertou, recebendo dela um leve sorriso misterioso, e então saiu.


No salão de entrada, Abrah e Dankell avistaram a figura dele mais ao longe, aproximando-se através de um longo corredor de iluminação parca.


–Aquele ali é o cão de guarda... – Abrah comentou em voz baixa ao companheiro, que sorriu irônico observando Orwen que chegava. O general por sua vez relanceou um olhar atento à Dankell. Terminantemente a figura dele o fez sentir-se mais desconfiado do que já estava, havia qualquer coisa semelhante entre ele e Abrah, além do sorriso irônico e malicioso. Respirou fundo, aquela situação exigiria ainda mais cautela do que ele previa.


–Então você é o dito informante... Como se chama?


–Sou Dankell Vaumirth. – Disse, unindo os punhos diante do corpo em saudação. Orwen não pôde deixar de reparar nas marcas que ele trazia nas mãos uma vez que a da testa era coberta pela desalinhada franja escura, dois triângulos que, naquela posição, apontavam um para o outro, com um sol dentro deles. Um primogênito. Ao ouvir o nome, Orwen franziu levemente o cenho.


–Dankell Vaumirth...? Eu conheço esse nome.


– Certamente conhece, eu fui um comandante do exército da Trovithera, servi ao pai da rainha antes de seu fim trágico... Ele me mandou à Korneria para que eu me passasse por um deles e ganhasse a confiança do estado. Isso foi há muito anos, desde então tenho servido a Trovithera com informações políticas importantíssimas, atualmente tenho um cargo respeitável no exército.


–Ah... Então você é o general que fingiu durante anos ser um Korneriano a mando do falecido rei Morthred.


–Sim. Depois da morte repentina do rei eu acabei ficando alguns anos afastado, a situação política esteve muito abalada, então achei melhor me manter oculto por algum tempo. Mas sempre estive em contato através de Abrah, um velho companheiro de farda, influente na política local. – Explicou, fazendo Orwen relancear ao outro um rápido olhar. – Agora finalmente estou de volta para prestar meus serviços à nova rainha.


–Hm... Se manteve informado através de Abrah, mas há muito a situação da Trovithera foi reestabilizada. Por que demorou tanto para voltar?


–Eu fiz um nome na Korneria, me tornei um membro importante do exército, e como tal fui encarregado de certas responsabilidades, situações das quais eu não poderia me esquivar sem causar desconfiança. – Orwen o olhava, sua expressão séria e misteriosa não mudara, não denotava um pensamento sequer, mas no fundo havia qualquer coisa de estranho ali. Sua intuição não o deixava ter total confiança nas palavras daquele homem.


–Deixe as demais perguntas para a rainha, Orwen. Estamos perdendo tempo. – Abrah disse-lhe, fazendo o general dispersar seus pensamentos.


–A rainha deseja reunir-se apenas com o recém-chegado. – Determinou o general, antes de dar as costas. Abrah e Dankell se entreolharam antes que o segundo seguisse Orwen, que o guiava à Medith.


...


–Dankell Vaumirth, você disse...? – Medith deixou que sua voz aveludada ecoasse no amplo recinto destinado a reuniões importantes. O trono em que ela se acomodava se encontrava nivelado acima dos dois homens diante de si, de joelhos. A rainha trajava um elegante e belo vestido negro que lhe cobria todo o corpo, deixando exposto apenas o colo alvo de curvas voluptuosas, no qual a pedra escarlate pendurada em sua gargantilha repousava. Ao redor da testa, a coroa de um tom dourado envelhecido confundia-se ao louro de seus cabelos, iluminando o rosto jovem da bela soberana. –Sim, eu sem quem é você... O falso Korneriano informante, ajudou meu pai a prever e se defender facilmente contra dois ataques. – Ela abriu um leve sorriso misterioso, recostando-se no trono para sentar-se mais confortavelmente. – Sim, eu costumava ouvir as reuniões políticas de meu pai.


–No fundo provavelmente já sabia que estava predestinada à grandeza, minha senhora. – Ele jogou palavras macias que fizeram a rainha sorrir irônica. Estava aquele recém chegado tentando bajulá-la? – Eu irei servi-la com a mesma fidelidade que servi seu pai.


–Porém com algum atraso... Espero que esses anos de ausência sirvam ao menos para que boas informações me sejam trazidas.


–Com certeza, senhora. Inclusive estive em Denhaar recentemente, e tenho notícias que com certeza lhe interessarão.


–Tudo que vem de Denhaar me interessa, Dankell. – Ela disse, fazendo-o sorrir levemente.


–Eu estive em missão durante alguns meses com os príncipes Ehren e Serge. Foi acima de tudo uma comissão diplomática, mas também foi realizado o treinamento de soldados e a organização de estratégias políticas. E no fim, também acabou por consolidar uma aliança entre Denhaar e a Korneria. – As palavras fizeram a rainha e Orwen se entreolharem discretamente, uma leve ruga de preocupação formou-se na testa da mesma.


–Aliança...?


–Sim, majestade. Uma aliança de ajuda mútua, o que pode ser perigoso para os planos da Trovithera uma vez que são dois reinos bastante poderosos, embora de postura pacífica. Mas talvez isso esteja para mudar.


–Como assim? – Orwen fez-se presente, intrigado por tais palavras. Dankell sorriu.


–Certamente já sabem do ataque comandado pelo exército de Uhr com o apoio de tropas de Virn contra Oran. O país foi massacrado, não sobrou muita coisa... – O general acenou positivamente com a cabeça. Medith curvou-se para frente e apoiou o rosto na mão, interessada no que o outro dizia. – O rei foi morto e Oran agora não passa de uma dominação de Uhr, mas a princesa sobreviveu e foi levada como prisioneira. Pelo que eu vi quando estive em Denhaar, sou capaz de apostar que Frid tentará resgatar a princesa, filha de seu velho amigo.


–Sim, diplomaticamente. – Medith disse franzindo o cenho.


–Inicialmente, mas eu duvido que Horen abrirá mão de seu troféu, há uma forte intriga pessoal envolvida e todos sabemos que tipo de homem ele é. Então acho possível que haja uma investida à força.


–Você acha que Frid quebraria anos de postura pacífica e defensiva para resgatar a princesa do reino vizinho? – Orwen perguntou com certa incredulidade – Me parece um tanto exagerado.


–Eu não acreditaria se não tivesse ido até lá, eu estive presente nas reuniões, ouvi as conversas, o rei pareceu-me decidido a tomar uma medida drástica. – A revelação surpreendeu a todos, o que fez Dankell sorrir internamente. O guerreiro jogava com as palavras, sabia que naquele momento ele detinha todo o controle da situação e do que era verdade ou mentira. – Se é que já não o fez. Em todo o caso, só recomendo o alerta. E, se me permite um conselho, senhora... – Ele voltou sua atenção à Medith – é bom que comece a aumentar a proximidade com Uhr, pode ser um aliado valioso. – As palavras fizeram a soberana quedar-se pensativa em seu trono. Após alguns instantes de silêncio, Dankell novamente tomou a palavra. – Há outra coisa que eu acho que a senhora vai querer saber, mas... Essa acho que deve ser tratada em particular. – Ele disse, relanceando um olhar a Orwen. Medith franziu às sobrancelhas sem entender e olhou o general, que a fitava um tanto surpreso.


–Orwen é o general líder do exército da Trovithera e meu conselheiro, o homem de maior confiança de todo o reino. Qualquer coisa que tiver para me dizer poderá ser dito na frente dele. – Ela determinou, acuando o homem que achou melhor não insistir.


–Se é assim... Pode parecer desimportante, mas foi algo que me intrigou em minha visita à Denhaar. – A rainha o olhou inquisidora – Uma garota estranha.


–Garota?


–Sim. Uma suposta amiga da princesa, “Eudora”, uma menina de olhos repuxados.


–E em que essa garota poderia me importar? – Medith perguntou.


–Lune parecia querer escondê-la de todos. – Ao ouvir o nome do sacerdote envolvido, a rainha interessou-se – Houve um almoço no castelo para comemorar a aliança selada e o retorno dos príncipes, e eu surpreendi Lune tentando tirar a garota das vistas dos presentes. Quando eu perguntei quem ela era e por que não nos acompanharia, ele me pareceu... acuado. Disse que ela era uma amiga da princesa que estava visitando o castelo por uma tarde, uma história estranha. Eu fiquei desconfiado e antes de ir embora, subornei um soldado para saber sobre a garota. Ele me disse que ela é hóspede do castelo, e o mais estranho, que a primeira vez que ela foi vista foi quando Lune a havia trazido, nos braços, desacordada, dizendo ser alguém doente que necessitava cuidados... Minha pergunta é: Por que Lune precisaria mentir sobre essa tal “Eudora”? E por que não queria que ela fosse vista? Além do mais, por que levar uma garota estranha para dentro do castelo? Por mais que ela necessitasse cuidados especiais, poderia ser cuidada num templo, se fosse o caso.


–Lune é ardiloso... Se tratando dele, é melhor que não ignoremos esse acontecimento. – Medith dizia pensativa, refletindo sobre cada palavra que havia ouvido. – Obrigada por sua contribuição, Dankell, vejo que realmente é um servo digno de confiança. Será recompensado generosamente por sua lealdade. – As palavras fizeram-no sorrir e baixar a cabeça.


–Suas palavras gentis já são mais recompensadoras que todo o ouro do mundo, minha senhora, a sua confiança é tudo o que eu preciso. – Medith sorriu levemente, certamente Dankell era um homem que sabia usar as palavras. Então ergueu-se e com isso os dois presentes curvaram-se ainda mais, baixando o olhar.


–Então vamos dar nossa reunião por encerrada no momento. Pode se retirar. – Ela disse dando as costas e caminhando até uma mesa mais afastada do salão. Ao ouvir a sentença, o informante assentiu e ergueu-se, saindo do salão e deixando a rainha a sós com Orwen. Ao perceber que o outro havia se ido, o general desfez-se das cerimônias, erguendo-se e caminhando até a soberana de costas para si. – Você terminantemente não confiou nele, não é mesmo? – Ela disse ao rapaz que abriu um leve sorriso.


–Não lhe escapa nada. – Ele disse antes que ela virasse a ele sorrindo misteriosa, seu olhar tomara aquele brilho peculiar que só era visto quando estava a sós com ele. – Talvez ele seja mesmo tão leal à Trovithera quanto demonstra, mas há algo nele que não me desperta confiança. É o mesmo sentimento que tenho quanto a Abrah.


–Acho que tenho a mesma sensação que você... Mas meu pai confiava neles, então talvez só precisemos ser prudentes. – Ela disse, tocando-lhe o rosto. – De qualquer forma, eu não me preocupo. Eu tenho você em quem posso confiar plenamente, e que vai me proteger em qualquer circunstância, não é mesmo?


–Mesmo que custe a minha vida. – Ele sentenciou absoluto, num misto de doçura e seriedade no tom, fazendo-a sorrir e cobrir sua boca com um beijo cálido e lento, antes de olhá-lo. – Infelizmente eu preciso que você faça uma coisa para mim, agora... Me traga Irian, tenho uma missão pra ele. – Ela disse, voltando-se á mesa. Nela, uma urna de madeira jazia aberta, na qual ela depositou cuidadosamente a coroa depois de tirá-la. Ao virar-se novamente, estava revelado em sua testa o sinal que trazia, muito semelhante a do príncipe Serge, a marca do segundo filho.


–x-


Denhaar


Yuna quedava-se de joelhos, apoiando o rosto sobre as mãos na mureta do terraço enquanto observava pensativa a paisagem lá fora. Seu olhar estava triste, assustado, havia grande temor e dúvida em seu coração. Tão perdida estava em seus pensamentos que sequer se importava com as leves gotas de chuva que começavam a cair fraquinhas sobre si, e também sequer percebeu a aproximação de alguém.


–Acho que é melhor entrar, está com cara de que um temporal vai chegar. – A voz conhecida de Lune fez a garota virar o rosto para vê-lo vindo, antes de novamente voltar sua atenção à vista.


–Tudo isso aqui ainda é estranho pra mim, embora eu esteja me adaptando. Mas principalmente agora, olhar essa paisagem é uma das poucas coisas que me deixa tranquila... – Ela disse erguendo-se, mas sem desviar o olhar do ponto que observava. – Tem alguma notícia? – Ela perguntou, recebendo como resposta um suspiro resignado e um aceno negativo do homem parado ao seu lado. Respirou fundo. – Quase não consegui dormir essa noite...


–Eu também não. – Ele admitiu. – Pensei se deveria dizer alguma coisa a alguém, mas achei melhor esperar. Em todo caso ainda há a possibilidade de que seja só uma visão equivocada, não é mesmo? Por que assustá-los antes da hora? – Ele dizia tentando acalmar a ela e a si próprio. A garota o olhou por um momento mas depois voltou sua vista ao céu nublado. Yuna jamais havia lidado com a morte, embora já tivesse perdido a mãe, mas era muito pequena para se lembrar. Ainda que Serge não fosse alguém próximo a ela, era próximo a pessoas com quem ela agora estabelecia laços de amizade e afeto, alguém que ela conheceu. Ver a possibilidade da morte assim, mais perto do que ela jamais havia sentido, a assustava. Principalmente por que ela provavelmente sentiu que aconteceria e não pôde ajudar. Este último pensamento a fez suspirar e olhar Lune.


–Eu pensei sobre aquilo que você me disse ontem, Lune... Sobre isso de “dom” e tudo mais, e... Quero que você me ajude a entender caso aconteça novamente. – As palavras dela o fizeram fita-la com certa surpresa. – Você pode me ajudar? – Ela pediu olhando-o nos olhos, seu semblante era como o de uma criança cheia de dúvidas. O sacerdote abriu um leve sorriso e assentiu com a cabeça.


–Claro que sim. Farei tudo o que estiver ao meu alcance. – Ele disse, fazendo-a sorrir levemente, um tanto mais aliviada. – Mas vamos entrar... A chuva vai ficar mais forte e você vai acabar pegando um resfriado. – Ele disse com um zelo que a fez alargar levemente o sorriso, antes de toma-la pelo ombro e acompanha-la para dentro.


–x-


Trovithera


Já era fim de tarde quando Dankell chegava àquela taberna no meio da cidade, sob uma chuva que parecia trazer os céus abaixo. Adentrou rapidamente o lugar chinfrim, que estava relativamente cheio para o horário, boa parte dos presentes estava ali para se proteger do temporal. Mas ele não, estava ali para se encontrar com o homem que bebia sentado a uma mesa no canto, mais afastada das demais. Era Abrah.

Desfez-se da capa molhada que usava e passou a mão pelos cabelos negros, retirando uma parte da água os ensopava enquanto se aproximava de seu alvo, sentando-se na cadeira diante do mesmo.


–O clima nessa época do ano ainda é uma loucura por aqui. Confesso que estava desacostumado com o frio da Trovithera. – Ele disse a Abrah, que sorriu ao vê-lo, antes de sorver um gole da bebida em sua caneca. – Vinho! – Ordenou ao taverneiro.


–Quer dizer que ganhou a confiança da Rainha? – Perguntou o outro com seu costumeiro sorriso irônico.


–Acho que sim. Essa mulher é misteriosa, é difícil saber se ela está pensando exatamente o que diz. O pai era mais fácil de manipular. – Comentou e nesse momento uma mulher chegava com uma rústica caneca de madeira cheia de bebida, na qual ele deu um gole e fez uma careta. – Esse é o pior vinho que já tomei... Está certo que é melhor não parecermos muito próximos, mas não precisava ter vindo a um lugar tão vagabundo.


–É um lugar que tenho certeza de que não seremos vistos por um dos superiores do exército. Mas prossiga, como foi a reunião?


–Bom, como eu disse... Ela é mais difícil de lidar do que o pai, mas o maior problema é o tal Orwen. Ele sim me parece muito astuto, e ela confia plenamente nele.


–Sim, é um filho da mãe esperto, seduziu a vadia.


–Seduziu? Eles têm um caso...?! – Dankell sorriu num misto de surpresa e ironia, recebendo do companheiro um aceno positivo. – Isso sim me surpreende. Quero dizer, não é incomum reis e rainhas se divertirem com soldados e serviçais, mas... Um caso assim, mais próximo, mais... sólido?


–É, ele era Primeiro Cavaleiro do exército, ganhou a confiança do rei e se tornou guarda real, cuidava da segurança pessoal das princesas. Quando o velho morreu e a irmã mais velha sumiu, do dia pra noite ele foi promovido a conselheiro e passou a liderar as forças, um moleque qualquer, só está onde está por que caiu nas graças da vadia que ganhou a coroa por acaso... – Abrah dizia com desdém, havia um brilho de ódio em seu olhar enquanto falava de Orwen, sentimento esse que Dankell captou facilmente enquanto ele falava.


–Bom, foi um golpe de mestre... Mas deve ser pesado pra você ter como superior um rapaz mais jovem, ter que obedecer às ordens de um moleque. – Ele dizia com ironia, salgando a ferida do outro que lhe lançou um olhar cortante.


–Por pouco tempo. Eu vou ser o rei, eu terei o poder e terei a rainha, pra ele só vai sobrar minha espada cravada em seu peito. – Abrah falou de forma assustadoramente determinada, antes de tomar mais um grande gole de bebida. Dankell apenas riu.


–Não diga isso alto, meu irmão, as paredes têm ouvidos... – Ao ouvir tais palavras o outro suspirou com impaciência, desviando o olhar à mesa, mas nada disse. – Nosso plano está indo maravilhosamente bem apesar desses pequenos contratempos.


–O que aconteceu em Denhaar?


–Improvisei. – Dankell sorriu orgulhoso, acomodando-se na cadeira e degustando o vinho que tomava enquanto falava ao outro com certa presunção. – O ataque de Uhr em Oran veio a calhar, me abriu uma brecha valiosa e inesperada...


– Como assim? – Perguntou Abrah sorrindo, embora não entendesse o mistério das palavras dele.


–Não direi nada por enquanto, não até minhas expectativas se tornarem fatos. O que posso dizer é que é muito fácil jogar quando se tem a peça certa para manipular... – E riu – Se tudo sair como eu espero, logo teremos a grande batalha que esperamos, que vai desestabilizar o poder central. Aí será nosso momento de agir. Quando você for rei da Trovithera e eu da Korneria... Seremos os senhores dessa guerra.


–Mal posso esperar por esse dia, irmão...


–A propósito, cuidado para não me chamar de irmão na frente de outros. Vai ser péssimo se desconfiarem do nosso parentesco. Principalmente por que o cão de guarda da rainha parece não confiar nada em nenhum de nós dois.


–Acha que eu seria idiota de cometer um deslize desses? – Abrah perguntou com uma leve ponta de irritação. – A propósito, quando retorna à Korneria?


–Assim que o sol raiar amanhã, não posso me demorar mais. Mas me mantenha informado sobre qualquer coisa até que eu venha novamente, não irá demorar muito. Por isso vamos aproveitar essa noite para comemorar nossa maré de sorte e boas notícias! – Dizendo isso, ele ergueu seu copo num brinde que foi correspondido pelo companheiro com um largo sorriso vitorioso.


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